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Apologia: tem jeito certo de defender a fé

André Reinke|

08/12/2023

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André Reinke

É bacharel em Desenho Industrial (habilitação em Programação Visual) pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e doutor em teologia (concentração em História das Teologias e Religiões) pela Faculdades EST. Vencedor do prêmio CAPES de melhor tese de doutorado em Teologia e Ciências da Religião de 2023. Autor dos livros Os outros da Bíblia, Aqueles da Bíblia, Nós e a Bíblia e Atlas bíblico ilustrado.

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Como citar

Reinke, André Daniel. Apologia: tem jeito certo de defender a fé. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A tradição teológica cristã é profundamente devedora aos apologistas. Foi o movimento apologético dos primeiros séculos que deu origem a uma teologia cristã mais robusta, uma vez que era necessário defender a fé de acusações no contexto do Império Romano. “Apologia significa resposta ou pergunta ao juiz de um tribunal, da parte do acusado”, como explica Tillich.¹ Grandes expoentes dos primeiros séculos defenderam a validade da fé cristã para os “de fora” da igreja, mas também deram início ao debate que viria a ser concretizado nas doutrinas para os “de dentro”, protegendo a substância da mensagem bíblica.²

A defesa pública da fé e a formulação de doutrinas são necessárias à saúde da igreja e estão encravadas no coração da tradição cristã.

Entretanto, não são apenas as nossas palavras que repercutiram no mundo; nossos atos foram ainda mais eloquentes. Nesse sentido, a história da igreja tem sido um discurso contraditório. Protestantes – e eu me enquadro entre eles – têm poucas reservas em acusar católicos pela Inquisição ou pelas Cruzadas; mas raramente reconhecem seus próprios pecados, como na terrível perseguição propagada contra os anabatistas durante o século 16, que provavelmente produziu mais mártires (pelos próprios cristãos!) do que sob a perseguição romana nos três primeiros séculos do cristianismo.³ Não apenas as instituições cristãs promoveram violência contra cristãos de outras vertentes teológicas, mas populares protestantes e católicos foram extremamente agressivos, não apenas destruindo objetos litúrgicos, mas ceifando muitas vidas – como nos lamentáveis episódios ocorridos na França na década de 1560, culminando no massacre da Noite de São Bartolomeu em 1572.⁴

A virulência de cristãos no debate público da fé muitas vezes descambou para a violência física propriamente dita. Infelizmente, não sinto que tenhamos melhorado em relação aos nossos predecessores, embora não estejamos mais acendendo piras para queimar hereges.  Mas vemos pessoas piedosas entrincheiradas em suas posições teológicas, lançando granadas morais contra seus opositores, em situação agravada sensivelmente com o advento das redes sociais.

Infelizmente, não sinto que tenhamos melhorado em relação aos nossos predecessores, embora não estejamos mais acendendo piras para queimar hereges.

Enfim, se a apologia é necessária, e se a preservação da doutrina é uma demanda, há algo a respeito da forma de fazer tal defesa que precisamos refletir. Se a história não nos fornece bons exemplos, busquemos orientações na Bíblia.

A questão da verdade

Jesus afirmou a Pilatos que veio ao mundo para testemunhar da verdade, e que aqueles que pertencem à verdade iriam reconhecê-lo. A resposta de Pilatos foi uma pergunta: “o que é a verdade?” (Jo 18:37-38). Como afirma o teólogo Ênio Mueller, embora Pilatos tenha feito uma pergunta fundamental, “para Jesus, estar na verdade é condição para conhecer a verdade”.⁵ Esse episódio demonstra dois níveis de entendimento da verdade, que são complementares: um como conhecimento, outro como existência. O primeiro está no nível mais superficial, cognitivo, das proposições formuladas em palavras escritas ou orais, na qual a verdade é entendida como exatidão nas formulações. O segundo está no nível profundo, do inconsciente, das estruturas subterrâneas que orientam nosso pensamento, organizadas a partir de metáforas fundantes. Este nível trata da dimensão existencial da verdade, e o equívoco tem sido separar tais níveis.⁶

Teólogos têm definido a verdade mais ou menos em termos de ortodoxia, a ideia ou crença correta, na qual o que importa é o que se crê. Outros acrescentam a ortopraxia, ou seja, a prática correta dessa crença, na qual o que importa é o que se faz. Entretanto, nenhum desses tipos de “retidão” são conhecidos pelo Novo Testamento. É o que ocorre com Paulo quando se defronta com o comportamento de Pedro e os demais da comitiva de Jerusalém com os crentes gentios em Antioquia (Gl 2:11-16). Ele os acusou de hipocrisia, pois não estavam seguindo corretamente o caminho da verdade. A palavra aqui é orthopodéo, literalmente “andar retamente”. Ou seja, o que norteia tanto a ortodoxia como a ortopraxia é a ortopodia do Evangelho: a doutrina e a prática devem ser orientadas pela relação com “o caminho”.⁷

A palavra aqui é orthopodéo, literalmente “andar retamente”. Ou seja, o que norteia tanto a ortodoxia como a ortopraxia é a ortopodia do Evangelho: a doutrina e a prática devem ser orientadas pela relação com “o caminho”.

Trata-se de uma reflexão que aprofunda a relação entre doutrina e santidade, ou entre fé e obras. Quando Jesus chamou determinados fariseus de hipócritas, não estava criticando sua pregação e nem suas boas obras, mas suas atitudes. Havia algo incoerente na sua forma de vivenciar a verdade. Eles não eram “do caminho”, como os primeiros seguidores de Jesus (At 9:2).

A questão do caminho

É significativo que Paulo tenha usado uma metáfora para descrever a forma de viver e testemunhar o Evangelho. “Não andar retamente” é estar em oposição a uma das afirmações mais desconcertantes do Novo Testamento: que Jesus é o caminho, a verdade e a vida (João 14:6). A verdade é uma pessoa, Jesus; nele está o caminho a ser trilhado e uma vida a ser vivida. Não se trata de uma verdade que eu tenha em mãos e que seja dominada por meio de pensamentos e ações, mas algo que está diante de mim e me movimenta. É um jeito de andar, um jeito de viver que eventualmente também chamamos de discipulado, marcando uma trajetória que tem por destino a minha própria transformação.⁸

Seguir um caminho é um ensino profundo, que adentra nas regiões mais escondidas de nosso ser. Por isso, a forma bíblica de explicar tal relação é pela metáfora. A propriedade das metáforas é que, embora seus ensinos possam ser parcialmente abordados pela razão, sua atuação mais poderosa é no inconsciente. Como demonstra Northrop Frye, a metáfora não é apenas um ornamento, mas uma modalidade diretiva do pensamento. Por isso, Simão foi chamado de “Pedro”, porque ele seria a “pedra” na qual Cristo construiria sua igreja (Mt 16:18). Pela mesma razão, o pão e o vinho “são” o corpo e o sangue de Jesus (Mt 26:26-28).⁹

A metáfora é uma designação que primeiramente remete a outra coisa por “semelhança”. Ela invoca símbolos profundos que nos provocam ações e reações, que emergem basicamente de nosso inconsciente. Vejamos um exemplo. Quando conto para alguém que conheci minha esposa em Gramado (RS), é comum se comentar: “que lindo”. Mas por que seria lindo? Porque a própria cidade é uma metáfora do romantismo, um ideal construído socialmente ao longo de décadas de propaganda e ações turísticas. Dizer “ai, que lindo” não é uma reação racional, mas instintiva, baseada na experiência pregressa do meu interlocutor.

Veja como as metáforas são importantes na comunicação, pois elas atuam no inconsciente, na percepção originária dos discursos. Por isso, a verdade do Evangelho não é primeiramente uma proposição teórica, nem um padrão de prática a ser adotado, mas um jeito de caminhar em ambos marcado pelo amor. “Seu amor uns pelos outros provará ao mundo que são meus discípulos” (Jo 13:35), ensinou Jesus. Por isso, a verdade das proposições racionais da Bíblia somente pode ser verificada no nível das metáforas, na vivência do cristão com pessoas reais em situações cotidianas. Nós somos metáforas vivas do Evangelho: nosso ser não fala de nós, mas aponta para Cristo “por semelhança”. 

Em suma: Jesus tornou visível o Pai invisível; nós tornamos visível o Cristo hoje invisível.¹⁰ Isso significa, em outras palavras, que o nosso jeito de ser manifesta a transformação que o Evangelho afirma produzir. Nós somos provas vivas da eficácia do Evangelho.

A questão do testemunho

A igreja primitiva deu os primeiros passos em direção ao mundo gentílico. Essa ampliação de público aparece nas narrativas de Atos, cuja pregação inicia em Jerusalém e chega até Roma. Os cristãos eram minoria, sem poder político ou social, e muitas vezes enfrentavam oposição por parte daqueles que os viam como um perigo para a ordem social.¹¹ Por isso, desde muito cedo os cristãos perceberam que haveria debates e confrontos em meio ao testemunho. Foi quando a apologia se fez necessária, como mencionei no início. Mesmo os apóstolos já viveram essa circunstância que se avizinhava, por isso nos legaram orientações. É deles que tomo as “dicas” listadas a seguir.

Antes de mais nada, tenha respeito pelas crenças dos interlocutores. Foi essa a experiência do apóstolo Paulo. Por mais que estivesse indignado pela idolatria dos atenienses (At 17:16), ao apresentar a verdade de Cristo, partiu do que lhes era elogiável, como o fato de serem muito religiosos, e dos pontos de contato, por adorarem ao Deus verdadeiro sem o saber (At 17:22-23).

Este mesmo Paulo nos deu mais uma orientação ao aconselhar seu discípulo Timóteo: fuja de discussões inúteis e polêmicas gratuitas (2Tm 2:14-16). Aquilo que os algoritmos fazem bombar nas redes sociais e que produzem muita interação – ou seja, a polêmica – apenas traz prejuízo para quem a ouve. O servo de Cristo deve ser amável com todos e apto a ensinar com paciência e mansidão (2Tm 2:22-26).

Nossa vida no mundo é um celeiro de oportunidades, que somente será bem aproveitado se dermos respostas adequadas em cada caso. Por isso, o conselho paulino é que as suas respostas sejam sempre amistosas e agradáveis, “saborosas” (Cl 4:5-6). Isso significa que fazemos apologia na relação de amizade e confiança, jamais no clima de discórdia de dois radicais defensores de suas próprias opiniões.

Apesar de todo nosso empenho pela paz, eventualmente seremos rejeitados e ofendidos pelas nossas posições. Isso é parte da trajetória cristã, assim como foi com Cristo. Por isso, a orientação de Pedro é que você deve estar disposto a sofrer afrontas sem abandonar o bem falar (1Pe 3:13-17), sempre fazendo a apologia de forma amável e respeitosa.

Enfim, todo esse comportamento nada mais é do que o resultado de alguém que vive de acordo com os frutos do Espírito Santo, marcado por amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio (Gl 5:22-23).

Portanto, não precisamos de novos apologistas “lacradores”; já estamos fartos deles. Não se preocupe em mudar seu interlocutor, mas deixe a mudança acontecer em você.

Não se preocupe em mudar seu interlocutor, mas deixe a mudança acontecer em você. Nessa metáfora viva do Cristo, seja testemunha fiel no modo de andar e prova da eficácia do Evangelho.

Tem jeito certo de defender a fé.

Termino com a oração do salmista (Sl 141:3, NVT):

            Assume o controle do que eu digo, Senhor,

            e guarda os meus lábios.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Paul Tillich, História do pensamento cristão, 2015, p. 44.

2. Tillich, 2015, p. 21.

3. Justo L. González, História ilustrada do cristianismo: a era dos reformadores até a era inconclusa, 2011, p. 60.

4. Natalie Zemon Davis, Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna, 1990, p. 129-156.

5. Ênio Mueller, Teologia cristã: em poucas palavras, 2005, p. 16.

6. Mueller, 2005, p. 17-19.

7. Mueller, 2005, p. 19-24.

8. Mueller, 2005, p. 24-29.

9. Northrop Frye, O código dos códigos: a Bíblia e a literatura, 2004, p. 80-83.

10. Ouvi essa expressão certa vez, mas não consegui descobrir a autoria.

11. Dale Irvin e Scott Sunquist, História do movimento cristão mundial: volume I: do cristianismo primitivo a 1453, 2004, p. 76.

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