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O que é vida?

Onde ciência e teologia se encontram

Pamella Carneiro|

26/10/2023

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Pamella Carneiro

Química (UFPA) e Mestra em Físico-Química (UNICAMP). Pesquisa na área de Química Teórica e Dinâmica Molecular com estudos de Estrutura-Atividade, Dinâmica, Modelagem Molecular e Quimiometria.

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Como citar

Carneiro, Pamella. O que é vida? Onde ciência e teologia se encontram. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Para a química, é importante compreender como elementos e moléculas que se acumulam em um planeta primitivo podem se transformar sob condições geoquímicas abióticas. Como as entidades vivas evoluíram a partir de sistemas interativos automontados e autossustentáveis com padrões e comportamentos emergentes? A abiogênese, ou o surgimento da vida a partir da matéria inanimada, é discutida a partir de diversos modelos, desde sistemas proteicos, de RNA, metabólicos, lipídicos e a panspermia.¹

Sara Walker aponta que, para que possamos discutir como a vida emergiu, precisamos pensar menos em uma descrição histórica sequencial desses eventos e mais em termos de uma teoria geral da vida que nos permita compreender se ela só existe na forma como a conhecemos.² A formulação de uma teoria geral para a vida esbarra em alguns desafios, como o fato de só termos uma amostra a considerar: a vida que conhecemos no planeta Terra; e conceitos e definições que não são triviais.

Diversos autores discutem que o problema do surgimento da vida e a questão acerca do que é vida andam lado a lado,³ afinal, podemos perguntar “como a vida se originou?” sem também perguntar “o que é vida?” Outros acreditam que as definições do que é vida limitam a criatividade científica, uma vez que dizem mais respeito a palavras do que sobre a natureza do mundo.⁴ Isto é, abraçar uma natureza indefinida da vida aumentaria as probabilidades de perceber outras formas complexas, tanto em sua origem — como se dá a organização de estruturas — quanto em questões mais atuais, como vida sintética, inteligência artificial e exploração extraterrestre.

Antje Jackelén argumenta, no entanto, que definições não são insignificantes, uma vez que, no problema do que é vida, não somos meros espectadores de definições científicas, pois temos um interesse existencial envolvido.⁵ Portanto, ao se considerar devidamente a complexidade da natureza e da realidade, emerge a transdisciplinaridade desta grande pergunta.⁶ Mesmo que cheguemos à melhor teoria geral para a vida com tudo o que sabemos da história evolutiva, o ser humano ainda fará perguntas, como: a vida é bela? A vida é boa? A vida é triste? A vida é um acaso? O que é a morte? A vida é uma qualidade permanente do universo ou apenas um lampejo?

A teologia é uma das áreas que pode contribuir levantando questões pertinentes ao conhecimento científico de maneira complementar. A teologia reflete sobre a vida a partir de Deus como seu doador último, o que evoca questões sobre ética, sacralidade, sentido e propósito, mas que também pode lançar luz sobre significados e definições. 

no problema do que é vida, não somos meros espectadores de definições científicas, pois temos um interesse existencial envolvido.

A vida é relacionamento

Biblicamente, a “vida” em seus aspectos físicos e espirituais está fortemente associada ao relacionamento com Deus.

A vida física tem início no sopro de vida do Criador. A materialidade da vida surge de um movimento divino em se relacionar, não por sua necessidade, mas por sua livre vontade de demonstrar amor. O sopro divino torna o homem uma alma vivente (Gn 2.7). Aqui o termo nephesh, usualmente traduzido como alma, na verdade está relacionado a algo mais elementar, como aponta Hans Wolff: a garganta ou a traqueia, órgãos usados para se alimentar e respirar, em uma sugestão profundamente ligada a ideia de que Deus é aquele que nutre e dá fôlego.⁷ Dessa forma, a ideia da palavra nephesh não é uma alma que pode ser considerada separada do corpo. Os seres humanos não possuem nephesh, mas eles são nephesh, isto é, seres viventes.

Há dois aspectos importantes na forma como o antigo Israel compreendia a vida a partir desta iniciativa relacional de Deus: matéria e ação divina misteriosa (Sl 139.16).⁸ Isto afirma a sua sacralidade, isto é, a vida que é recebida como dádiva (Gn 1.26).

Neste sentido, a “alma” nunca significa uma existência a ser contrastada com a materialidade da vida ou que poderia também subsistir sem ela. Essa noção de vida integral no antigo Israel tem mais correspondência com a teoria científica moderna da emergência da vida, pois, uma vez que a própria vida, a consciência ou espírito são propriedades emergentes de interações físicas e químicas, eles não podem funcionar sem a infraestrutura biológica do corpo.

O homem compartimentado em espírito e matéria, em que a alma é uma realidade distinta e mais elevada, é decorrente da influência helenística na teologia cristã. Enquanto percebe-se que os hebreus entendiam a realidade espiritual e material como acontecimentos concomitantes, Platão e Aristóteles introduziram a visão de um espírito “real” e a matéria “irreal”, ou seja, o espírito como o aspecto autêntico e a matéria o aspecto mau do mundo.⁹

Ao contrário da ideia grega, vê-se na Bíblia que o ser humano é uma variação divinamente gerada da vida no solo.¹⁰ Na morte, o retorno de um “ser” a Deus, é também o retorno de um corpo para o solo de onde foi tirado.

A vida espiritual é o relacionamento com Cristo. Tendo agora consciência de si pelo Espírito, o ser vivente experimenta a morte espiritual, isto é, uma queda moral (Gn 2.17). Há novamente um movimento divino em relacionar-se com o homem por meio do sacrifício de Cristo, o qual lhe oferece uma vida renovada, uma vivificação (Gl 2.20), um novo nascimento (Jo 3.3); “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14.6); “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10.10b).

Por fim, a vida eterna é o relacionamento consumado: o porvir é a vida no Eterno. O relacionamento que em todos aspectos transcende a vida cotidiana, em tempo, qualidade e intimidade. A vida eterna é a esperança que vence a morte. Deus como criador da nossa vida é, portanto, nossa esperança escatológica.

Biblicamente, não existe vida na ausência de relacionamento com o divino. A vida é também a existência biológica, mas não pode ser reduzida a ela. O movimento de Deus em relacionar-se com o ser humano introduz conceitos de vida que são menos sobre descrições histórico-científicas e mais sobre sentido e identidade. A vida originada em todos os seus aspectos a partir do relacionamento com Deus (física, espiritual e eterna) insere o homem em novos tipos de relacionamento: com os animais (Gn 2.19), com seu igual (Gn 2.23) e com uma comunidade de fé.

Biblicamente, não existe vida na ausência de relacionamento com o divino. A vida é também a existência biológica, mas não pode ser reduzida a ela.

Relacionamento é comunidade

Norman Wirzba indica que a vida possui um caráter profundamente enraizado e simbiótico.¹¹ Se dermos significados teológicos para as interações descritas cientificamente realizadas na natureza, veremos a necessidade de relacionamento e interdependência. Redes autocatalíticas, modelos de matéria auto-organizada, blocos de construção, redes metabólicas ou maquinarias de replicação genética, todos esses modelos dizem respeito, em última instância, a estruturas relacionais.

Em seu caráter enraizado, a emergência da vida não pode ser desconectada de seu ambiente, assim como o homem que foi tirado do solo faz parte dele. C.S. Peirce sugere que a capacidade de resposta ao ambiente e de interpretá-lo é uma condição necessária e fundamental para entidades consideradas vivas.¹² Se retirássemos o homem do planeta para viver em qualquer outro lugar do universo sem uma prévia e lenta adaptação, quanto tempo ele sobreviveria na ausência não só dos aspectos sociais, culturais e psicológicos que fazem parte da sua vida, mas até das trilhões de bactérias que existem no solo e em seu trato digestivo no contexto terrestre? A permanência da vida também está ligada ao ambiente e às relações que a sustentam.

Em seu caráter simbiótico, a existência é suportada pela relacionalidade: a reprodução, a hereditariedade, a informação, a harmonia do sistema vivo, a comunicação entre os órgãos, as sinapses, a neuroplasticidade etc. Norman Wirzba continua desenvolvendo a ideia de que qualquer criatura viva é um ecossistema. Desde as interações entre estruturas que se complexificaram até as formas de vida multicelular que se desenvolveram quando as células fixaram-se umas nas outras e ali sobreviveram. Há um caráter de dependência essencial para se estar vivo:

Nenhuma criatura viva é uma coisa única e individual. Para que qualquer criatura “seja”, deve sempre “tornar-se algo com” os outros e, assim, perpassar caminhos simbióticos que sempre se miscigenam em um complexo estonteante de criaturas, grande e pequenas, por todos os lados [...]. Portanto, “a vida é sempre vida em conjunto” com outros processos e criaturas em um número desconcertante de caminhos de simbiogênese. A nossa existência é sempre caracterizada por dar e receber, tocar e ser tocado, digerir ou ser digerido, influenciar ou ser influenciado.¹³

Vestígios da Trindade

Há especialmente um lugar em que podemos unir, em altíssima estima, os conceitos de relacionamento e comunidade na teologia cristã: a doutrina da Trindade. A similaridade e diversidade inerente às estruturas complexas que dão origem à vida em toda a natureza apontam para o caráter do criador. A natureza mimetiza o poder dinâmico de Deus, a perichorēsis, o “ser-um-no-outro”,¹⁴ ou “permeação sem desorganização”. Como desenvolvido nas seções anteriores, podemos compreender que qualquer corpo vivo é uma comunidade de seres dos quais participamos, enquanto outros participam de nós.

A ciência e teologia se encontram na compreensão da origem da vida não em um caráter unitário, mas comunitário, não como um organismo, mas uma organização. Nesse sentido, a vida que nasce do movimento relacional de Deus indica que ela acontece em termos coletivos e é dependente dos lugares e das outras criaturas, pois Deus fez a vida a partir do e para o relacionamento, e isso é evidência de seu caráter amoroso.

Nesse sentido, a vida que nasce do movimento relacional de Deus indica que ela acontece em termos coletivos e é dependente dos lugares e das outras criaturas, pois Deus fez a vida a partir do e para o relacionamento, e isso é evidência de seu caráter amoroso.

 

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Ramanarayanan Krishnamurthy and Nicholas V. Hud, “Introduction: chemical evolution and the origins of life”, Chemical Reviews, 120, 2020.

2. Sara Imari Walker, “Origins of life: a problem for physics, a key issues review”, Reports on Progress in Physics, 80, 2017.

3. Jack W. Szostak, “Attempts to define life do not help to understand the origin of life”, Journal of Biomolecular Structure and Dynamics, 29, 2012.

4. Stephen Freeland, “Undefining life’s biochemistry: implications for abiogenesis”, Journal of the Royal Society Interface, 19, 2022.

5. Antje Jackelén, “Life: An Ill-Defined Relationship”. Issues in Science and Theology: What is Life?, 2015.

6. Stephen Freeland, “Origins of Life: The Questions Are Big, and The Answers Complex”, 2019. Clique aqui para acessar.

7. Hans Wolff, Anthropologie des Alten Testaments, 1974.

8. Klaus Nürnberger, “Dust of the Ground and Breath of Life (Gen 2: 7): The Notion of ‘life’ in Ancient Israel and Emergence Theory”, Issues in science and theology: What is life?, 2015.

9. Ibidem, p. 8.

10. Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: Como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, 2023.

11. Ibidem, p. 10.

12. Andrew Robinson, God and the world of signs: Trinity, evolution, and the metaphysical semiotics of CS Peirce, 2010.

13. Ibidem, p. 10.

14. Ibidem, p. 12.

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