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A ciência moderna como expressão da teologia cristã renascentista

Humberto Schubert Coelho|

13/07/2023

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Humberto Schubert Coelho

Professor de Filosofia moderna e metafísica da Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em filosofia da cultura, estética, filosofia da ciência e filosofia da religião, sempre sob a ótica metafísica. Historiador da cultura e do pensamento luso-brasileiro e alemão. É Membro de diversas sociedades científicas e grupos de estudo no Brasil e em Portugal, e membro titular da Academia Brasileira de Filosofia.

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Como citar

COELHO, Humberto Schubert. A ciência moderna como expressão da teologia cristã renascentista. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Surgida cem anos antes dos primeiros pensadores declaradamente materialistas e produzida em universidades estritamente confessionais – majoritariamente católicas, mas, aos poucos, também luteranas, anglicanas e calvinistas –, a ciência moderna nasce como empreitada gêmea de uma nova e revolucionária visão de Deus, escorada tanto no neopitagorismo e no neoplatonismo, reintroduzidos pelo Renascimento, quanto pelos ecos finais da escolástica, de inspiração aristotélica.

O monge francês medieval Hugo de São Vítor foi um dos grandes inspiradores das ciências e da educação modernas, recomendando um estudo abrangente e profundo de todas as coisas e todos os assuntos como vocação de um intelecto em sintonia com o divino.¹ No Renascimento português, que foi contrarreformista e celebrou santo Tomás de Aquino em uma “segunda escolástica”, padres de Coimbra, como Pedro da Fonseca e Manuel Gois, formataram o curso que serviria de modelo para os jesuítas de todo o mundo, enfatizando as ciências e a matemática – sem que estas, no entanto, ofuscassem a filosofia e a lógica.

Dois neoplatônicos contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento das ciências e de uma visão naturalista moderna: Giordano Bruno e Paracelso. O primeiro, monge agostiniano rebelde e condenado como herege, concebeu o mundo como harmonia racional, traduzível em linguagem matemática e acessível a uma experiência mística universal. Entendia ser o contato do homem com Deus um contato natural, isto é, regido por leis invariáveis que todos poderiam aprender, não por eleição arbitrária ou por força de sacramentos dependentes de instituições humanas – uma óbvia crítica à Igreja. O segundo, médico e místico suíço, pai da farmacologia, também via na ordem criada um continuum com a ordem divina, especulando sobre a relação entre mente e corpo, sobre os efeitos da vida moral sobre a física, e estabelecendo paralelismo entre a homeostase e a harmonia geral da natureza.

Ambos os autores especulavam sobre a relação entre o micro e macrocosmo, entendendo Deus como uma espécie de espírito do mundo e o mundo como se fosse um corpo de Deus. Analogamente, o corpo humano, microcosmo, conteria em si toda a complexidade cósmica. Nosso espírito seria como um pequeno deus a reger o universo dos humores, processos e fenômenos físicos. Paracelso não se furtou, inclusive, da conclusão de que as reações entre os diferentes elementos – água e óleo, metais e enxofre, sais e ácidos etc – deveriam se repetir dentro de nosso corpo, de modo que o que valia para o laboratório deveria valer para as associações químicas entre os elementos no nosso sangue e nas demais secreções do nosso corpo.

Ainda longe da criação da química, Paracelso e seus discípulos eram, na verdade, alquimistas, mas a maioria de suas intuições, naturalistas, soa mais como ciência do que como especulação mística. Observando, por exemplo, que o corpo é feito de ossos (análogo das pedras), carne e gordura (análogos da terra), sangue (análogo da água, dos óleos), e gases (análogo do ar), que produzia calor (análogo do fogo), os alquimistas renascentistas concluíram que nada haveria no corpo que não se observasse também no cosmo, e que um estudo conjunto da natureza em geral e da medicina seria o caminho ideal para desvendar os segredos desses dois grandes processos: o microcosmo e o macrocosmo.²

os alquimistas renascentistas concluíram que nada haveria no corpo que não se observasse também no cosmo, e que um estudo conjunto da natureza em geral e da medicina seria o caminho ideal para desvendar os segredos desses dois grandes processos: o microcosmo e o macrocosmo.

Bem firmado sobre essa tradição está o místico luterano Jakob Böhme.³ Ímpar na história do pensamento e da cultura, considerado o primeiro filósofo alemão por Hegel e amplamente celebrado e admirado pela geração dos idealistas e românticos – que imprimem, ambos, uma guinada científica e estética à filosofia –, desenvolveu em uma série de livros densos e extensos uma visão integrativa entre teologia, ciência e filosofia. Böhme acolhia como evidente a noção de Bruno, Paracelso ou Galileu de que a estabilidade da ordem cósmica deveria se expressar como constância e previsibilidade de “leis”, as quais testificariam a inteligência e a sabedoria do autor da natureza. Ao mesmo tempo, contudo, os pensadores anteriores não souberam explicar adequadamente o lugar cosmológico dos processos psicológicos e morais, ao que o autor alemão se dedicou com afinco. 

Em um modelo tão arrojado quanto complexo, Böhme não apenas comparou, como estabeleceu fortes associações entre os ciclos naturais e os processos psicológicos. Luz e sombra se alternam, mas também se mesclam na penumbra e na opacidade. O calor dá lugar ao frio, mas também há o choque entre chama e neve, entre o frio metal e o corpo quente. A fera mata a presa, mas carrega cuidadosamente os despojos, fruto da violência, para os inocentes filhotes. Matéria e espírito, espírito contra espírito, matéria em choque com a matéria, bem e mal, Deus e o diabo; desses contrastes e dessas tensões se faz a dramática realidade que conhecemos e experimentamos, tanto na pele, fisicamente, quanto no coração, moralmente.

Em A eleição da graça,⁴ Böhme trata de uma questão que prenuncia a crítica de Leibniz à metafísica mecanicista de Espinosa: o problema da acomodação do mal, e, consequentemente, da condenação e da salvação, ao naturalismo que sustenta as ciências. Nesse livro, Böhme observa que bem e mal devem corresponder a “forças naturais”, que, por sua vez, não podem ser forças ordenadas de modo mecanicista – como faria, pouco depois, Espinosa. Ao contrário desse modelo passivo e mecânico, tão bem-sucedido após o século 17, uma explicação razoável da vida moral tem de ser essencialmente voluntarista, radicando na espontaneidade do querer a causa última do bem e do mal. 

A fera mata a presa, mas carrega cuidadosamente os despojos, fruto da violência, para os inocentes filhotes. Matéria e espírito, espírito contra espírito, matéria em choque com a matéria, bem e mal, Deus e o diabo; desses contrastes e dessas tensões se faz a dramática realidade que conhecemos e experimentamos, tanto na pele, fisicamente, quanto no coração, moralmente.

Assim, explica Böhme, é preciso rastrear até Deus o conflito de vontades que encontramos, empiricamente, em nosso coração. Queremos o bem e fazemos o mal, o mal que não queremos, isso fazemos… (Rm. 7.19) Entender essa contradição só é possível se entendemos que o conflito cósmico remonta à tensão entre o que Deus quer e o que Ele não quer. O que Deus não quer, contudo, tem de ser possível – Leibniz, pouco depois, observaria que aquilo que Deus não quer tem de ser, no mínimo, possível no plano lógico, isto é, livre de contradição. Do contrário, não haveria sentido em escolher, pois só haveria uma opção, a que foi eleita. Isso teria como consequência, por exemplo, que Deus não seria digno de louvor, pois jamais teve mérito em escolher os meios mais excelentes para seus fins.

Em seu opus magnum, o livro Aurora, Böhme define o contraste entre a serenidade e a placidez das leis e a violência dos fenômenos como um análogo do conflito entre bem e mal.⁵ Ora, Deus opera eterna e magnificamente pelas leis, expressão da razão, mas os indivíduos gemem e rosnam, as pedras se batem e despedaçam, o contraste entre calor e frio estilhaça o vidro e o metal, a vida é antagonizada pela doença e pela morte. Tudo o que é individual tem em si o gérmen do egoísmo, de uma vontade que é a preterida por Deus e que torna essa coisa em particular isolada, potencialmente desarmônica com o todo. 

Ao contrário de um quietismo, portanto, que moral, teológica ou cosmologicamente aceita as coisas como são, o pensador luterano propõe uma ação intensa nestes três níveis: atitude moral, engajamento na fé e regulação do cosmo pela ciência. Com relação a esta última, a natureza não está aí para ser contemplada e aceita passivamente, mas disposta como um palco para a ação do homem, onde ele deve exercitar sabedoria, engenho e vontade para contribuir com a ordenação do cosmo. O ser humano, portanto, está vocacionado por Deus a ser cientista, a entender e atuar no mundo para a promoção do bem e diminuição dos males.

Do movimento de pensadores como Böhme surgiram o pietismo e o puritanismo – respectivamente as versões luterana e anglicana do instinto anti-institucional dos protestantes. Essas radicalizações do protestantismo foram imprescindíveis para a aceleração do que Ernst Troeltsch, o grande historiador da religião, definiu como a tendência liberal e individualizante da Reforma.

Embora rivais, Leibniz e, principalmente, Newton admiravam a forma como Böhme conciliou ciência e religião. Newton, inclusive, se considerava um antimecanicista, pois sua teoria da gravidade desbancava a teoria ingênua de que o cosmo funcionaria como mecanismo ou conjunto de objetos em perpétua colisão. A gravidade acrescenta à mecânica celeste uma actio in distans, uma força sem toque, não pontual e uniforme. Newton era suficientemente educado em filosofia e teologia para entender que a gravidade se assemelhava mais a uma força-princípio que a uma força-resultado, sendo, portanto, a verdadeira causa do movimento universal. Inspirado por Böhme, chegou a sugerir que a força da gravidade seria uma análogo físico do amor.

Leibniz foi igualmente grandioso ao perceber que o sentido e a razoabilidade do universo dependem inteiramente de ele resultar de um propósito, de um ato deliberado.⁶ Sem isso, a maior de todas as perguntas metafísicas – concebida por ele mesmo – ficaria para sempre sem resposta. Afinal, por que há algo ao invés do nada? As noções de eternidade de um universo puramente mecânico e de um surgimento casual, como muitas interpretações materialistas correntes do Big Bang, no fundo apenas constatam sua existência. A hipótese de explosão inexplicável ou a de um universo que existe desde sempre apenas atestam que há um universo. Equivalem a dizer “apareceu um universo” ou “há um universo”. A isso Leibniz acrescenta a pergunta: por quê? Sem uma resposta consistente para essa questão, não há sequer a tentativa de explicar a origem e o sentido de tudo o que existe, e as promessas de explicar o universo que terminam na constatação de que ele surgiu de um único ponto afirmam meramente o quando, não o como ou o porquê de sua existência.

Grande lógico, Leibniz observou que a possibilidade de o universo não existir é tão viável quanto a de existir. Sem um bom motivo, uma razão suficiente de ser, a existência dificilmente teria mais sentido que o nada. Afinal, o nada é mais harmônico com a falta de sentido e de propósito.

É muito problemático que nos últimos cem anos, aproximadamente, os grandes cientistas tenham parado de se defrontar com questões semelhantes.

Essa redução do escopo da ciência a uma função técnica, pragmática e atida aos detalhes a tornou, de certo modo, cega para uma faceta essencial de sua própria razão de ser. Em prol de um conhecimento mais preciso das coisas, abdicou do esclarecimento do homem. Será muito difícil encantar as próximas gerações e despertar amor à verdade, mesmo à força de documentários diversos com esse propósito, quando os atuais filósofos da ciência alegam não haver verdade, ou, talvez, sequer conhecimento objetivo, e os cientistas se enfadam com tarefas burocráticas, protocolos e rotinas dos quais não veem o sentido e o propósito em meio à malha tecnocrática.

Essa redução do escopo da ciência a uma função técnica, pragmática e atida aos detalhes a tornou, de certo modo, cega para uma faceta essencial de sua própria razão de ser. Em prol de um conhecimento mais preciso das coisas, abdicou do esclarecimento do homem.

A ciência nasceu como empreitada racional em sentido pleno, não no sentido exótico, desenvolvido no século 20, de meros arranjos técnicos ou úteis. Em sentido pleno, dizer que algo é racional é vislumbrar em plano integrativo o propósito e a finalidade, e fundamentar metafisicamente esse sentido. Todos os grandes pais da ciência moderna, até, pelo menos, a geração de Faraday e Darwin, tinham boa noção dessa integridade. É de espantar que, diante da relativa estagnação de tantas disciplinas, outrora científicas, hoje quase puramente técnicas ou tecnocráticas, a sociedade não tenha suficiente lucidez para resgatar aquele sentido pleno de racionalidade, um sentido em que a ciência não pode e não teria por que estar divorciada ou em conflito com a teologia.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Hugo de São Vitor, Didascálicon, 2007.

2. Siegfried Wollgast, Philosophie in Deutschland zwischen Reformation und Aufklärung, 1988, p. 654-56.

3. Humberto Schubert Coelho, “Revolução na Reforma: a mística e a ciência sob a nova perspectiva teológica de Jakob Böhme”, PLURA, Revista De Estudos De Religião 2, n. 2, p. 123-139, 2011.

4. Jakob Böhme, Schriften Jakob Böhmes (org. Hans Kanser), 1923.

5. Böhme, 1923, p. 122.

6. Leibniz, Discurso de Metafísica e outros textos, 2004.

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