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A indissociável relação entre fé e prática pedagógica*

Jonatas Mariz de Oliveira|

14/04/2023

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Jonatas Mariz de Oliveira

Licenciado em Química pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Mestre em Ensino de Química pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Professor de Química na rede estadual da Paraíba.

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Como citar

OLIVEIRA, Jonatas Mariz de. A indissociável relação entre fé e prática pedagógica. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

Apresentação

A obra Pedagogia cristã: como praticar a fé em sala de aula”, de autoria de David I. Smith, diretor do Kuyers Institute for Christian Teaching and Learning e professor de Educação na Calvin University, teve sua primeira edição publicada no Brasil em 2022 pela Thomas Nelson Brasil. O livro possui 11 capítulos, que podem ser divididos em duas seções principais: uma defesa de que a pedagogia pode ser moldada por uma visão cristã do mundo (capítulos 1 a 5) e a apresentação de uma abordagem pedagógica alicerçada em uma perspectiva cristã (capítulos 6 a 9). Os últimos dois capítulos do livro tratam de observações sobre a metodologia proposta na segunda seção (Capítulo 10) e o estado atual da pesquisa acadêmica cristã (Capítulo 11).

Por uma pedagogia cristã

A primeira divisão do livro advoga a ideia de que a pedagogia praticada por cristãos deve ter características próprias, especificamente no que se refere ao tipo de práticas adotadas em sala de aula, e não somente a quais conteúdos são trabalhados. Esta seção constitui os capítulos de 1 a 5 da obra.

No primeiro capítulo do livro, denominado “A lacuna pedagógica”, o autor expõe o que considera ser um dos problemas da dinâmica de ensino-aprendizagem: aspirações pedagógicas são muitas vezes sufocadas pelos “cães selvagens” do cotidiano, termo utilizado para denotar as pressões e cobranças a que professores estão corriqueiramente submetidos nas dinâmicas de sala de aula. Com esses ideais em xeque, o que professores planejam para suas atividades pedagógicas nem sempre conduz aos resultados esperados.

Dessa forma, os padrões transmitidos em sala de aula nem sempre são gerenciados pelo professor. Nesse sentido, a forma que uma folha de exercícios é aplicada pode, por exemplo, induzir os alunos a limitar-se à memorização, e não engajar-se profundamente nos conceitos; o tom de voz e a postura do professor podem motivar (ou desmotivar) os alunos para aquela ideia ou aquele conceito apresentados; e as atividades propostas podem levar a um aprendizado ativo ou a uma mera reprodução não engajada. Assim, há dois tipos de resultados da prática docente: os que foram pretendidos pelo professor e aqueles outros que passaram despercebidos.

Pensando nisso, o professor precisa ser intencional em sua prática pedagógica e, também, deve atentar para qual tipo de resultado tais ações podem ocasionar e buscar moldá-las de acordo com suas crenças fundamentais. É nesse ponto que o autor afirma não ser possível dissociar as crenças dos professores de suas práticas pedagógicas. Se, por um lado, elas devem conduzi-lo a refletir nos resultados ocultos de sua atividade docente, por outro, tais crenças influenciam subliminarmente sua atitude pedagógica. É seu dever, portanto, discernir o processo pedagógico por ele gerenciado de forma global e buscar alinhá-lo a uma perspectiva coerente com o que crê. E aqui fica evidente que mestres cristãos são chamados a uma reflexão atenta para os resultados que sua prática pedagógica tem produzido e se eles estão (ou não) de acordo com sua fé.

 

É nesse ponto que o autor afirma não ser possível dissociar as crenças dos professores de suas práticas pedagógicas. Se, por um lado, elas devem conduzi-lo a refletir nos resultados ocultos de sua atividade docente, por outro, tais crenças influenciam subliminarmente sua atitude pedagógica.

Em certa altura do quarto capítulo, o autor faz referência à obra Moral, believing animals [Animais morais e crentes].¹ Para este, toda instituição social é um empreendimento moralmente animado. Com isso, ele argumenta que a atividade de ensino-aprendizagem, enquanto prática social, está embebida em certos valores morais, defende determinados princípios e uma visão específica do que é o bom e o certo. Assim, não se trata de o professor cristão escolher tratar ou não de moralidade em suas práticas pedagógicas, mas de decidir qual sistema de valores lhes servirá de fundamento. 

Considerando o exposto, o professor cristão deverá avaliar se os resultados de sua prática docente estão alinhados à sua fé. Os alunos estão sendo guiados por motivações nobres? Estão aplicando princípios cristãos à sua aprendizagem? Ou são implicitamente motivados a apenas “obter uma nota aceitável” e “passar na disciplina”? Ainda que não afirme haver uma forma distintamente cristã de ensinar, o autor defende que a pedagogia adotada gera resultados que podem (ou não) estar em acordo com a fé cristã.

Uma (possível) pedagogia cristã

Aqui, o autor propõe uma (possível) abordagem de pedagogia cristã, e a tônica adotada é de exemplificação, não de prescrição. Com isso, a pretensão é que a metodologia apresentada sirva de ilustração, mas não necessariamente se encaixe em outras realidades pedagógicas sem as devidas adaptações. Esta fase do livro, que consiste dos capítulos 6 a 9, apresenta a estrutura “What if learning”, que será descrita em detalhes a seguir.

A estrutura “What if learning” (Aprendizagem “e se…?” em português) consiste em três facetas principais: (1) ver de maneira nova, (2) escolher o engajamento e (3) remodelar a prática.

O primeiro aspecto da abordagem, “ver de maneira nova”, dá ênfase ao papel da “imaginação” em nossas práticas pedagógicas. Imaginação aqui é entendida não sob o aspecto de criatividade, mas na forma como o sujeito enxerga aquilo que faz, sua perspectiva da vida e de suas ações. O conceito de imaginário social de Charles Taylor é introduzido na obra para aprofundar esse ponto. Taylor defende que cada indivíduo possui um senso inarticulado de como as coisas funcionam e como deveriam ser, que ele denominou “imaginário social”. Essa percepção, presente em professores e estudantes, norteia a experiência pedagógica de ambos. Assim, o que o docente imagina estar acontecendo em sua sala de aula, por exemplo, pode significar algo completamente diferente para o aluno, que enxerga aqueles processos sob a sua própria lente de interpretação.

Atentar para o modo como enxerga a atividade docente pode ser determinante para que um professor desenvolva práticas alinhadas à sua fé. O autor apresenta o exemplo de dois professores de ciências da escola de Ensino Médio de seus filhos. Em uma reunião de pais, o autor e sua esposa conversaram com ambos sobre seu filho e notaram algo que lhes chamou a atenção. Ao se aproximarem do primeiro, este leu em voz alta as notas do aluno e comentou que havia sido um trabalho de semestre bem-sucedido. Ao lado desse professor estava o segundo, para o qual eles se dirigiram. Foram recebidos com um aperto de mãos, e o docente parou para lembrar quem era o filho do casal. Após identificá-lo, comentou que ele costumava auxiliar um colega de classe que apresentava dificuldades e destacou que valorizou esta prática, pois comunicara à turma a importância de criar uma comunidade cristã de aprendizagem dentro da sala de aula. 

O modo como este professor enxergava sua sala de aula era, claramente, diferente do primeiro, e isso influenciou sua prática pedagógica. Foi essa visão diferente que permitiu o surgimento e cultivo daquela atitude alinhada à visão cristã de comunidade.

A segunda faceta do What if learning é “escolher o engajamento”. Trata-se de determinar qual será a abordagem pedagógica para promover o aprendizado dos estudantes alinhado a uma perspectiva cristã. Vale lembrar que o autor não defende que haja tal método de ensino que possa ser registrado como “cristão”, no entanto, a prática escolhida induz certos efeitos na aprendizagem que podem (ou não) estar alinhados à fé cristã. O capítulo sobre esse aspecto da estrutura proposta (Capítulo 8) é a descrição da aplicação de uma disciplina sobre a obra “Vida em comunhão”, de Dietrich Bonhoeffer. O autor explica como organizou a disciplina para que o tema do livro fosse minimamente vivenciado pelos estudantes. A relevância desse tópico pode ser identificada pelas perguntas: as práticas escolhidas são coerentes com o que se pretende ensinar? Os alunos estão desenvolvendo aquilo que se pretende com o ensino? Ou estão apenas a memorizar certos conceitos? Os valores cristãos estão sendo vivenciados?

Por fim, o último aspecto da estrutura é “remodelar a prática”. Aqui, a ideia é que a infraestrutura material do ambiente de aprendizagem também é importante para consolidar a proposta. O autor dá, neste tópico, o exemplo de uma escola católica em que eram feitas orações em diversos momentos do turno escolar, mas que não conduziam os alunos a Deus. Essas orações eram utilizadas para manter a ordem, o que era reforçado pela estrutura material da sala de aula, com cadeiras enfileiradas e rígidas. O aspecto de “tempo” também é incluído nesta faceta. Nesse caso, o exemplo dado é de um professor em uma aula simulada avaliada por Smith, que fazia várias perguntas aos alunos, mas sem lhes dar o tempo de reflexão para resposta e já lhes oferecendo uma nova questão, o que acabava por impedir a discussão. Isso nos mostra que dominar o tempo ou ritmo da aula é também uma tarefa importante para conduzir aos resultados desejados.

Críticas, diálogos e discussões

Um aspecto fundamental da obra de David I. Smith é a defesa de que a pedagogia será necessariamente moldada por determinados valores. A maneira como ensinamos é a concretização de uma cultura, e não somente uma preparação para ela.² Assim, o professor é “obrigado” a escolher sobre qual conjunto de valores deseja trabalhar, e não “se” irá fazê-lo. Essa tese é consonante com trabalhos de diversos filósofos da ciência contemporâneos, para os quais não há tal coisa como uma aproximação neutra da realidade.³ Há também diálogo com a obra de Smith,⁴ para o qual aquilo que fazemos está em interação com o que somos, em uma via de mão dupla: direcionamos nossas práticas de acordo com nossa realidade interior, mas também somos intrinsecamente afetados por aquilo que praticamos. É possível afirmar, portanto, que há argumentos filosóficos para sustentar que não existem práticas pedagógicas neutras e que o professor deverá refletir sobre as suas próprias, de modo que elas se adequem às suas crenças fundamentais.

Com base nisso, o autor prossegue para propor uma abordagem pedagógica fundamentada numa perspectiva cristã. É nesse ponto que as coisas se tornam mais delicadas, pois (1) não existe uma pedagogia distintamente cristã; (2) fenômenos educacionais são multifatoriais, e, portanto, complexos; e (3) aquilo que se aplica a determinados contextos pedagógicos não necessariamente se aplicará a todos. Smith reconhece isso e explicita que seu objetivo não é fornecer um modelo, mas sugerir reflexões.⁵ A proposta da obra, portanto, é gerar autocrítica nos docentes acerca de quais resultados sua própria prática está produzindo.

É possível afirmar, portanto, que há argumentos filosóficos para sustentar que não existem práticas pedagógicas neutras e que o professor deverá refletir sobre as suas próprias, de modo que elas se adequem às suas crenças fundamentais.

Assim, a abordagem “What if learning” deve ser entendida nos limites de um bom exemplo, do qual é possível extrair princípios norteadores para uma pedagogia cristã. Não é possível transpô-la para outras realidades pedagógicas sem a devida adequação, e essa talvez seja a questão que a obra deixa em aberto: para aquelas salas de aula cujas realidades são diametralmente diferentes das retratadas, como praticar a fé? A educação pública brasileira, por exemplo, possui boa parte de escolas cujos professores têm pouquíssimo tempo livre para planejamento e, muitas vezes, pouca abertura para diálogos entre a fé e a educação. Ainda que esse não seja o público-alvo principal do livro, considerando que a maioria da população brasileira é cristã, é relevante notar que os professores cristãos estão em grande parte nessas escolas. Como esses professores podem praticar uma pedagogia cristã? Essa não é uma questão simples, e a obra não apresenta diretrizes claras para um público como esse. 

Por outro lado, o convite à reflexão sobre uma “Pedagogia cristã” é salutar. O autor destaca, inclusive, que seu propósito é conduzir o leitor a uma autoanálise. O professor cristão brasileiro pode, então, questionar a si mesmo sobre quais efeitos sua docência tem gerado. O tipo de atividade que ele propõe conduz os estudantes a uma apropriação adequada do conhecimento? E o engajamento dos estudantes, é justo e íntegro? Suas aulas incentivam a colaboração? A disciplina? Essas seriam algumas questões para reflexão.

Conclusão

Fé e educação são temas complexos, e não é possível apresentar uma receita pronta de como relacioná-los. A obra, no entanto, provoca a reflexão e aponta para o florescer da discussão de como a pedagogia praticada por cristãos pode ser motivada por uma visão cristã do mundo. O surgimento de um movimento intelectual cristão no Brasil pode contribuir fortemente para o amadurecimento dessas questões à medida que se apropria do conhecimento pedagógico e o discute à luz da teologia.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Resenha classificada entre as três melhores na 1ª Chamada do Radar ABC².

1. Christian Smith, Moral, Believing animals: Human Personhood and Culture, 2009.

2. Jerome Bruner, A cultura da educação, 2003.

3. Alan F. Chalmers, O que é ciência afinal?, 1993.

4. James K. A. Smith, Você é aquilo que ama: O poder espiritual do hábito, 2017.

5. David I. Smith, Pedagogia Cristã: como praticar a fé em sala de aula, 2022, p. 97.

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