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ARTIGO

Subjetividade e verdade em Søren Kierkegaard*

Rodolfo Amorim Carlos de Souza|

20/10/2023

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Rodolfo Amorim Carlos de Souza

Obreiro e co-fundador de L'Abri Brasil. Professor na Faculdade Presbiteriana Gammon - FAGAMMON. Possui Mestrado em Sociologia pela UFMG (2009), Graduação em Relações Internacionais pela PUC-MG (2001) e Especialização em Elaboração de Projetos Internacionais (2004). Escritor e co-autor dos livros Fé Cristã e Cultura Contemporânea, Cosmovisão Cristã e Transformação (Editora Ultimato) e Arte e Espiritualidade (Thomas Nelson).

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Como citar

Souza, Rodolfo Amorim Carlos de. Subjetividade e verdade em Søren Kierkegaard. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Introdução

Os estudos em torno da relação entre subjetividade e verdade passaram a apresentar novos contornos com a transição ainda corrente entre uma concepção moderna de verdade, que dominou os séculos 18, 19 e meados do século 20, e aquela da era comumente denominada pós-moderna.¹ A visão moderna, que entronizou a razão e o método científico como bases epistemológicas suficientes e universais para conduzir o homem à verdade, já não encontra no universo cultural contemporâneo uma estrutura geral de plausibilidade. Essa desconfiança e esse “destronamento”, por sua vez, não se têm dado apenas nos meios acadêmicos e científicos, mas se expressa como um espírito (zeitgeist) emergente na cultura ocidental, seja no campo das artes, da política, da economia, da justiça ou da ética. Essa ruptura, abordada de variadas formas no último quarto de século,² aponta para novos rumos da discussão no que concerne à relação entre verdade e subjetividade. O próprio conceito de verdade passa a ser analisado de diversas maneiras, sendo esvaziado de seu sentido clássico por algumas correntes de pensamento³ ou transformado a partir de seu entendimento anterior moderno.⁴ Nesse contexto de reconfiguração do debate em torno do conceito e método de alcance da verdade, o lugar da subjetividade humana e seu contexto cultural imediato ganham novas forças. Se a verdade não é mais uma categoria universalmente abstraída pelo constante e correto uso das faculdades racionais e do método empírico-científico, o indivíduo contemporâneo está lançado no mundo povoado de incertezas, em que as forças do mercado e do consumo se apresentam como alternativas viáveis e plausíveis na condução da vida individual e social.

Em um período de mudanças como o brevemente apresentado, marcado crescentemente pela influência da cultura de massa sobre indivíduos e comunidades e pela superficialidade na condução das escolhas individuais, faz-se necessário explorar opções viáveis contidas no processo histórico ocidental de entendimento da relação entre a subjetividade e a verdade. A partir desse contexto, propomos oferecer uma abordagem cultural específica como possibilidade de aprofundamento do tema que ofereça possíveis direções e opções de encaminhamento cultural sem que caiamos nas opções vigentes entre o conceito já moribundo de verdade no sentido moderno e o abandono da tarefa de busca da verdade com suas consequências apresentado por correntes pós-modernistas de pensamento. Introduziremos um personagem histórico singular que dedicou sua vida e atividade intelectual a compreender como o sujeito se relaciona com a verdade em sua subjetividade no processo existencial de individuação. Este autor é Søren Kierkegaard, conhecido por seu típico temperamento como o melancólico Dinamarquês e apontado por muitos autores como o pai do movimento existencialista moderno, seja em sua corrente secular ou religiosa, ou como peça fundamental na configuração do ethos pós-moderno.

Propomos no decorrer deste artigo introduzir, em um primeiro momento, uma breve biografia e os conceitos principais do pensamento de Kierkegaard relacionados à temática subjetividade e verdade. A partir dessa abordagem central, passaremos a trabalhar no esboço de uma análise comparativa entre o pensamento de Kierkegaard e autores que trataram com propriedade o tema da subjetividade e verdade, colaborando para o contínuo debate sobre essa temática.

Se a verdade não é mais uma categoria universalmente abstraída pelo constante e correto uso das faculdades racionais e do método empírico-científico, o indivíduo contemporâneo está lançado no mundo povoado de incertezas, em que as forças do mercado e do consumo se apresentam como alternativas viáveis e plausíveis na condução da vida individual e social.

Breve biografia de Kierkegaard

Søren Kierkegaard nasceu na cidade de Copenhague, Dinamarca, em 1813, filho mais jovem de uma família composta de seis irmãos. Sua nação podia ser considerada uma calma e estável terra cristã, onde o luteranismo estatal cobria a vida pessoal e as convicções de seus habitantes desde o nascimento até o túmulo. Hans Christian Andersen, que perpetuou em suas fábulas muitos dos valores da Dinamarca de sua época, descreve a situação de seu país em uma de suas estórias: “O sol brilhante e todos os sinos das igrejas chamaram juntamente o povo. Estavam todos vestidos e, com o livro de orações em suas mãos, foram à igreja ouvir o ministro”.⁵ O pai de Kierkegaard, Pedersen Michael Kierkegaard, próspero comerciante em Copenhague, foi uma figura marcante na vida de Kierkegaard, influenciando profundamente seu temperamento e carreira intelectual posterior. Criado em um ambiente de extrema devoção espiritual, iniciado pela presença forte do pietismo morávio na região, Pedersen teria amaldiçoado a Deus em sua juventude, culpando-o por privar-lhe do brilho do sol em sua mais tenra idade. Este evento fora fundamental nas vidas de Pedersen e de seu filho mais moço, pois pelo resto de sua vida ele carregou sobre sua consciência e de sua família o peso daquela “terrível” blasfêmia, não mais apresentando atitude alguma de alegria em relação à vida e a Deus.⁶

Este foi o ambiente em que Kierkegaard foi formado, onde o peso da culpa e a consciência de um Deus extremamente justo estavam sempre presentes, impingindo-lhe uma personalidade de forte melancolia que o acompanhou por toda a sua vida e escritos. Segundo Kierkegaard, testemunhando de sua formação e criação “[…] eu fui tomado desde minha infância por uma sufocante melancolia… meu único gozo sendo, até o ponto em que me recordo, o fato de que ninguém poderia descobrir quão infeliz eu era… eu nunca fora na realidade um homem, muito menos uma criança ou jovem”.

Ainda jovem, Kierkegaard presenciou a morte da mãe e de cinco de seus irmãos. Essa terrível experiência fora interpretada pelo restante da família (o irmão mais velho e o pai) como prova da maldição de Deus, aprofundando ainda mais o sentimento de melancolia e de consciência constante do pecado e da ira divina.

Quando jovem, Søren se dedicou ao estudo de teologia, filosofia e literatura na faculdade, e se lançou à vida de um típico intelectual boêmio, adotando como as mais apropriadas armas de um homem na vida a agudeza e a perspicácia aliadas ao poder do correto raciocínio. Por ter por parte do pai os recursos para seus estudos e vida, Kierkegaard viveu uma juventude despreocupada do ponto de vista financeiro, chegando a acumular algumas dívidas posteriormente saldadas pelo pai.

Uma forte ruptura e influência também marcante na vida e obra de Kierkegaard fora o fim repentino do romance que vivera com Regine Olsen. Fortemente atraído e apaixonado por essa dama, Kierkegaard teria abruptamente rompido o relacionamento sem fornecer razões claras para tal, embora por toda a vida continuasse a demonstrar seu amor por ela. Diversas têm sido as explicações para esse evento. Para alguns, Kierkegaard estava livrando Regine de sua profunda melancolia em uma atitude heróica de resignação, enquanto que, para outros, ele estava se vingando da sociedade dinamarquesa, rompendo com as estruturas familiares tão respeitadas em sua época. O que se tem como certo é que o jovem Kierkegaard nunca se entregaria em toda a sua vida posterior a alguma espécie de relacionamento afetivo, dedicando-se exclusivamente e de forma celibatária, a escrever contra os sistemas de pensamento e a vida formal de seu tempo.

Em seu diário, após uma relação por cartas com Peter Lund, no qual este demonstrava seu prazer em descobrir “alegrias e felicidades paradisíacas no Brasil”, Kierkegaard reflete no que deveria ser sua vocação real na vida, rompendo com a vida estética na qual vivia e com o estilo de pensamento hegeliano prevalecente até então:

[...] aqui eu me posto em frente a um grande ponto de interrogação [...] eu me interesso por demasiadas coisas, e não decisivamente por alguma... o que realmente preciso é ter claro o que devo fazer; não o que devo saber. O que importa é encontrar uma finalidade, ver o que Deus realmente quer que eu faça; a coisa crucial é encontrar uma verdade que seja verdade para mim, encontrar a ideia pela qual eu esteja disposto a viver e a morrer.⁸

Após um período de vivência no que denominaria estágio ético, Kierkegaard teria, em 1838, vivido uma experiência mística semelhante à descrita por Blaise Pascal dois séculos antes. Esta experiência fundamental o teria posicionado pelo resto de sua vida como um defensor de uma posição existencial frente à verdade que ele buscava, sendo esta entendida como resistência e encontro do indivíduo com o absoluto, o Deus de Jesus Cristo. “Há uma alegria indescritível que arde através de nós tão inexplicavelmente quanto à exclamação do apóstolo salta sem razão aparente: Exultai, e novamente digo, exultai!”. Não uma alegria “por isto ou aquilo, mas o brado da alma inteira com a língua e com a boca do fundo do coração”⁹ – palavras de Kierkegaard relatando sua experiência. 

Posteriormente a essa experiência de conversão ao cristianismo, Kierkegaard se dedicou incansavelmente à obra de escritor, publicando em seus últimos 12 anos de vida uma obra monumental de escritos, com 34 obras publicadas.

Kierkegaard faleceu prematuramente e de forma abrupta em 1855 após cair inconsciente nas ruas da capital Dinamarquesa, talvez fruto de uma paralisia espinal progressiva. Poucos dias após ser conduzido ao Hospital Frederik, Kierkegaard faleceu em 11 de novembro, recusando receber a comunhão de um ministro estatal, deixando ao mundo uma vida e legado intelectual instigante, ainda em grande parte inexplorado e incompreendido.

Traçar a influência de Kierkegaard no pensamento ocidental posterior é tarefa complicada, pois além de ter sido descoberto fora da Dinamarca apenas após sua morte, somente em anos recentes suas obras têm sido traduzidas para o inglês e seu pensamento tem recebido um tratamento sistemático. Entre as correntes de pensamento originadas por Kierkegaard está o existencialismo secular encabeçado por Jean Paul Sartre e Camus, a neo-ortodoxia teológica representada por Karl Barth, além de uma influência direta em pensadores como Heidegger e Wittgenstein.

Segundo George Brandes, escrevendo em 1881, Kierkegaard fora “um dos psicólogos mais profundos de todos os tempos, um pensador que, ao morrer, deixou um legado de cerca de trinta volumes, escritos nos últimos doze anos de sua vida que, no seu conjunto, constituem uma literatura dentro da literatura”.¹⁰ Reinhold Niebuhr disse sobre Kierkegaard que este seria o “mais profundo mestre da psicologia religiosa desde Santo Agostinho”,¹¹ e Ludwig Wittgenstein o qualificou como o “maior pensador do século dezenove”.¹²

Quais seriam os temas centrais do pensamento Kierkegaardiano que se relacionam diretamente com os temas de subjetividade e verdade? Como eles posicionam Kierkegaard em relação a outras tradições intelectuais no Ocidente? Passamos agora a responder a essas questões.

O indivíduo, a subjetividade e a verdade

Central no pensamento Kierkegaardiano está a noção de que a verdade se relaciona diretamente com a categoria do indivíduo. Deus, o mundo e o indivíduo não podem ser reduzidos filosoficamente a um sistema compreensivo como tentou apontar Hegel em sua filosofia da história. Os esquemas ideais onde toda a realidade é classificada e encaixada metodicamente não são, segundo Kierkegaard, locais onde se viva, se creia, se exista.

Segundo Kierkegaard, Hegel tentara construir um grandioso sistema universal abarcando toda a existência e história do mundo. Porém, se ele atentasse para sua vida privada descobriria pasmado um enorme ridículo: que ele próprio não habitava esse vasto palácio de eminentes abobadas, mas um barracão lateral, uma pocilga ou, na melhor das hipóteses, uma guarita do porteiro.¹³

Contra a teoria hegeliana e outras tantas que insistiam em compreender objetivamente a realidade, Kierkegaard afirmava que a verdade e a realidade devem ser apreendidas subjetivamente, pois se trata de fundamentar o desenrolar do pensar em algo que seja ligado à raiz mais profunda da existência, que é o indivíduo. As incertezas e as linhas tortuosas do singular são os caminhos seguidos por Kierkegaard em sua filosofia, pois a própria existência reluta contra a dissipação em fatores ideais e sistêmicos. O abismo infinito entre o indivíduo finito e o indivíduo infinito e entre o tempo em que o indivíduo finito deve realizar suas potencialidades e a eternidade que é o próprio Deus, são o fundamento da crítica Kierkegaardiana ao pensamento sistêmico.

Esta ênfase Kierkegaardiana no indivíduo como conceito filosófico central o levou também a aborrecer qualquer vivência conduzida pela ou em meio à multidão. Segundo ele:

Embora todo indivíduo possua a verdade, quando este se une à multidão, a inverdade está presente naquele mesmo momento, pois a multidão é a inverdade. Ela produz tanto a impenitência quanto a irresponsabilidade, ou enfraquece o sentido individual de responsabilidade localizando-o em categorias fracionadas. Imagine no momento um indivíduo caminhando na direção de Cristo e lhe cuspindo ao rosto. Nenhum ser humano teria a audácia de fazer isto. Mas sendo parte de uma multidão, bem, então ele tem a “coragem” de fazer isto – terrível inverdade!¹⁴

Contra a teoria hegeliana e outras tantas que insistiam em compreender objetivamente a realidade, Kierkegaard afirmava que a verdade e a realidade devem ser apreendidas subjetivamente, pois se trata de fundamentar o desenrolar do pensar em algo que seja ligado à raiz mais profunda da existência, que é o indivíduo.

A concepção de Kierkegaard em relação ao cristianismo se sustenta na proposta de que se tornar cristão é basicamente se tornar um indivíduo diante de Deus, ou do Absoluto. Neste momento apenas a subjetividade está em pauta, pois somente nela se dá o encontro existencial. Assim, segundo Kierkegaard, o “Cristianismo não une pessoas […]; ele as separa em ordem de unir cada indivíduo singular com Deus. E quando a pessoa se torna tal que ela possa pertencer a Deus e a Deus somente, ela morreu para as coisas que comumente mantêm as pessoas unidas”.¹⁵

O indivíduo singular, desmembrado da multidão e da convivência de massa, é o único capaz de caminhar na verdade do absoluto. Deus desejaria apenas indivíduos isolados, declara Kierkegaard, porque Deus deseja ser amado.¹⁶ Assim, a própria verdade, em vez de representar uma simples equação entre ser e pensar, torna-se sinônimo de subjetividade, ou seja, deve significar um compromisso pessoal do indivíduo, já que esta tem raízes na existência concreta e integrada de cada indivíduo em particular. A verdade deve tornar-se existencial no ato de o indivíduo viver aquilo em que se acredita, na realização leal dos seus objetos mais profundos.¹⁷

Em sua obra Concluding unscientific postscripts, Kierkegaard fornece um conceito de verdade que localiza o indivíduo e a subjetividade como elementos centrais. Segundo Kierkegaard:

Quando subjetividade é verdade, a definição de verdade necessita também conter em si mesma uma expressão da antítese à objetividade (...) aqui está tal definição de verdade: Uma incerteza objetiva, tomada pela apropriação com a mais apaixonada interioridade, é a verdade, a mais alta verdade existe somente para uma pessoa existente. (...) objetivamente então o indivíduo tem apenas incertezas, mas isto é precisamente o que intensifica a paixão infinita pela interioridade, e verdade é precisamente a ventura arriscada de escolher a incerteza objetiva com a paixão do infinito.¹⁸

Seguindo sua exposição, Kierkegaard afirma que sua definição de verdade é “uma paráfrase da fé. Sem risco, não haveria fé. Fé é a contradição entre a infinita paixão da interioridade e a incerteza objetiva. Se eu sou capaz de apreender a Deus objetivamente eu não tenho fé; mas por que não posso fazer isto, tenho de ter fé. A verdade, sendo esta contradição, é um paradoxo”.¹⁹

Kierkegaard aponta em toda a sua obra a necessidade da fé como único meio de o indivíduo se situar na verdade, rompendo com o elo entre o indivíduo e a verdade eternas típicas da tradição metafísica ocidental. A incapacidade do indivíduo em viver na verdade não é de ordem intelectual, mas se radica na vontade, pois este não consegue se esforçar para enfrentar a verdade a seu próprio respeito, sendo incapaz de chegar ao ponto onde os ideais e as ações formariam uma unidade perfeita. A fé assim afirma uma realidade que o filósofo não poderia admitir. Neste caminho o indivíduo não estaria fruindo algo que está dentro dele, de algo que já possui, como em Sócrates e Platão, mas em ser criado de novo e desafiado a cada dia a poder se unir à verdade.²⁰

Esta união diária à verdade em interioridade e atitude de fé ou do salto subjetivo, é, para Kierkegaard, o ponto central, ou o alvo da própria existência. Para auxiliar neste processo de individuação diante do absoluto, Kierkegaard estabelece, por e através de suas obras, o conceito de estágios da vida.

Esta união diária à verdade em interioridade e atitude de fé ou do salto subjetivo, é, para Kierkegaard, o ponto central, ou o alvo da própria existência.

Os estágios da existência em Kierkegaard

Para estabelecer a fé e o encontro existencial com o absoluto como ponto central da existência, Kierkegaard articula de forma assistemática uma proposta de compreensão de estágios da caminhada existencial humana. Utilizando-se de personagens fictícios e arquétipos literários para apontar o caminho existencial em que cada um se situa, Kierkegaard sugere três modos básicos de existência que, embora compondo um crescendo, não se excluem mutuamente, mas se diluem quando elevados e transformados. Esses estágios da existência (ou Stadier pa Livets Vej) seriam os estágios estético, ético e religioso. O pressuposto por detrás dessa distinção é a compreensão de que, além de ser uma criação temporal, o homem tem também um constituinte eterno, sendo uma síntese entre essas realidades. O movimento existencial ideal seria subordinar o temporal ao eterno, no qual as mudanças se dão em termos qualitativos entre estágios psicológicos.²¹

Na busca pela verdade existencial, o indivíduo não deve optar a favor ou contra uma ideia, mas fazer opções decisivas pró ou contra formas distintas de existência. Esses estágios não seriam sucessivos no tempo, nem mutuamente exclusivos, pois o movimento dialético de transformação de um para outro estágio posterior retém, em germe, aquilo que fora superado.²² Assim, os estágios mais elevados não levam à abolição dos inferiores, mas à sua subordinação. O religioso, dessa maneira, teria “paixões estéticas e entusiasmo ético. Porém, os sistemas mais baixos seriam subordinados, dominados por uma paixão mais elevada que lhes coloca limites”.²³

O primeiro estágio da vida seria o estético, no qual indivíduo, mesmo cercado de possíveis conquistas intelectuais ou de status social, seria orientado existencialmente pelo imediato, não havendo uma aceitação consciente de um ideal. O esteta evitaria compromissos, encarando-os como uma limitação. Vivendo para o momento, o esteta nunca alcançaria satisfação, pois variedade, e não conexão, torna-se o mais importante na vida. As possibilidades sempre estão presentes diante do esteta em detrimento das realizações, de forma que a variedade de experiências de agora o privam de um sentido de continuidade, não havendo neste estágio verdadeira repetição – o que constitui sua vida como excentricidade. A reflexão estética se apresentaria apenas externamente com fins puramente práticos ou intelectuais, sem nenhum esforço para avaliar a verdadeira constituição do eu.²⁴

Por não encontrar respostas aos anseios fora de si, chega o esteta ao ponto de não poder suportar a existência no presente, sentindo-se forçado a voltar a um passado irreal, ou a um futuro impossível, onde procura escapar do tédio do presente sem sentido. Paradoxalmente, o esteta se lança em múltiplas atividades cada vez mais desordenadas e de prazeres sempre mais desregrados, procurando na recordação aquilo que deveria encontrar na esperança, tendo como companheiro o desespero que não vem de fora, mas de dentro do indivíduo – paralisando a vontade, a qual é fundamental no passo para o estágio ético.²⁵ A passagem ao estágio ético se dá, assim, por forças a que o indivíduo está sujeito, não criadas por este. E, na realização desta vontade, ele é conduzido à próxima etapa, o estágio ético. No estágio ético, mais do que a escolha entre isto e aquilo, escolhe-se a escolha em si, ou a opção de escolher, ou a opção entre reconhecer ou não reconhecer a realidade do bem e do mal. No entanto, as exigências éticas tornam o indivíduo consciente das suas falhas sem lhe proporcionar uma nova existência. Neste estágio:

Apenas a realidade da obrigação ética dá significado àquilo que importa à pessoa e ao que ela faz. De outra forma o que a pessoa faz ou com o que ela se importa são apenas preferências pessoais, e estas são eo ipso eticamente insignificantes. Escolher, no sentido mais profundo, é encarar minha escolha como me comprometendo. Eu escolho a mim mesmo; eu não crio a mim mesmo. Isto é, o eu que devo tornar-me é visto como dado; minha escolha é apenas tornar-me ou não tornar-me o que deveria ser. Este tipo de escolha é o começo do que Kierkegaard denomina seriedade, e é a matéria da qual emerge a verdadeira individualidade [...] pela introspecção e subjetividade.²⁶

Porém, o sujeito ético pode se tornar autoconfiante e autônomo, julgando ser capaz de controlar sua existência e de realizar o ideal ético, sendo isso uma auto-afirmação que o diferencia do sujeito religioso.

As dificuldades advindas do esforço em cumprir com as demandas de cada obrigação ética reconhecidas pelo indivíduo, levando assim a um estado de culpa e desespero, são fundamentais para que o indivíduo seja conduzido ao estágio religioso. Neste, deixando-se a auto-afirmação, o indivíduo aceita o fato de que é incapaz de cumprir com as demandas éticas, reconhecendo a mensagem religiosa e especificamente cristã do pecado e da redenção. Essa resistência ou tensão entre o estágio ético e religioso são definidas por Kierkegaard como o confinium, ou humor entre o ético e o religioso. O estágio ético seria uma reservatio mentalis, ou o desenvolvimento de uma receptividade para a religião, um sentimento de necessidade por ela.²⁷

O humor kierkegaardiano, segundo Widenmann, seria o “ponto no qual o indivíduo percebe que tem um eu eterno que é baseado em Deus […] e incapaz de tomar a posição religiosa […] ele tropeça, perde-se em arrependimento e na contemplação do religioso – e não consegue ir adiante”.²⁸ Assim o “humorista acha a existência triste, mas esconde sua tristeza (Vemod) com humor, assim como reconhece a existência do sofrimento, mas prefere ignorá-lo”.²⁹

O estágio religioso ofereceria à existência ética o cumprimento de sua missão, ou seja, revela realidades existenciais não presentes na luta pelo cumprimento de deveres morais, como nas noções religiosas de perdão e reconciliação. O alicerce da vida religiosa seria uma descoberta desagradável sobre si mesmo, já que se revela que a expressão decisiva para a vida religiosa é a culpa, e não apenas culpa perante esta ou aquela infração moral, mas a pessoa culpada perante Deus, sendo reconhecida essa situação como o pecado. A extirpação dessas imperfeições configuraria o sofrimento na relação com o divino, sendo a categoria central do estágio religioso.

Opondo um tipo de religiosidade imanente ainda fundado no esforço ético a um tipo transcendente (que Kierkegaard relaciona com o cristianismo original), este estabelece a fé apaixonada como central na experiência religiosa ideal e define, em distinção ao arquétipo ético (o herói trágico), o cavaleiro da fé como o arquétipo religioso. Como modelo histórico desta fé apaixonada, Kierkegaard utiliza-se de uma leitura psicológica da atitude de Abraão em transcender o nível ético ao obedecer à ordem do Deus absoluto de sacrificar seu filho, eixo central de sua principal obra, Temor e Tremor. O homem religioso seria aquele que, após romper radicalmente com o mundo, em um salto de fé, volta para o mundo, recebe-o de novo, mas com a diferença de estar plenamente consciente de que há uma outra realidade que pede sua opção. Sabe que, para alcançar a existência, é necessário condicionar o incondicionado e o relativo.³⁰ Segundo Giles:

Transformar em andamento normal o salto, exprimir o impulso sublime num passo terreno, é esta a única maravilha que somente o cavaleiro da fé é capaz. Possuir a coragem de tudo ousar e arriscar – é essa a exigência que o cavaleiro da fé deve satisfazer. Para tanto é preciso paixão. Todo o infinito se realiza de modo apaixonado. A fé é uma paixão e é na paixão que toda a existência humana encontra sua unidade [...] o prodigioso é viver a cada instante feliz e contente em razão do absurdo, vendo a cada dia a espada erguida sobre a cabeça, não o descanso na dor da resignação, porém, a alegria em razão do absurdo. Aquele que disso for capaz será grande e, para Kierkegaard, será o único homem realmente grande.³¹

O homem religioso seria aquele que, após romper radicalmente com o mundo, em um salto de fé, volta para o mundo, recebe-o de novo, mas com a diferença de estar plenamente consciente de que há uma outra realidade que pede sua opção.

Tendo abordado os estágios da fé propostos por Kierkegaard, pode-se questionar se sua filosofia se tornara num hiper-existencialismo, ou um mero solipsismo perspectivista sem quaisquer categorias ou referenciais externos que indiquem o caminho no alcance do ideal de existência, ou uma visão de vida religiosa. A verdade seria reduzida ao salto da fé, ou haveria um conteúdo a se conformar, ou uma figura à qual se acomodar mimeticamente na caminhada existencial? Kierkegaard aponta, neste momento, sobretudo em seus escritos especificamente religiosos, para a pessoa eterna de Cristo, que paradoxalmente representa o encontro entre o eterno e o temporal, o finito e o infinito, adquirindo sua força e autoridade como Cristo contemporâneo – e não o crucificado histórico –, desafiando a todo instante o indivíduo singular a um encontro existencial absoluto.

Cristo como referência mimética da existência

Escolas de psicologia e mesmo de filosofia existencialista têm seguido Kierkegaard até o ponto em que este rejeita as noções sistêmicas de verdade e restabelece a subjetividade e individualidade como locus da verdade. Mas Kierkegaard não é seguido à conclusão de seu pensamento, que conduz à noção de verdade como caminho existencial mimético, caminho este sendo encontrado somente na vida de Cristo como revelação do encontro entre o finito e o infinito, o temporal e o eterno. Assim, Cristo seria além do salvador da humanidade, o protótipo para a humanidade, e o objeto de fé ao qual o cavaleiro da fé deve se conformar. Em sua obra Prática no cristianismo, Kierkegaard aponta a necessidade de cristãos serem seguidores ou imitadores de Cristo antes de serem adeptos de um sistema metafísico ou de um ensinamento objetivo:

Agora, é certamente bem conhecido que Cristo continuamente utiliza a expressão “imitadores”. Ele nunca disse que buscava por admiradores, adoradores, aderentes; e quando utiliza a expressão “seguidor” ele sempre explica isto de tal forma que se percebe que “imitadores” foi o significado intentado; que não são aderentes a um ensino, mas imitadores de uma vida.³²

Cristo como padrão de existência e conformação individual, ou mimese, não encontra semelhança nos sistemas platônicos ou metafísicos em que a realidade terrena se configura como a imitação imperfeita ou dialética de formas ideais contidas em um plano metafísico. Em Kierkegaard, a própria metafísica, como sistema de verdades em oposição ao real, é abandonada a favor de uma relação existencial subjetiva e apaixonada, num encontro pessoal, que é o único sentido da religião verdadeira. Ainda analisando a relação de Cristo com a verdade, Kierkegaard utiliza-se de uma passagem bíblica para romper com a noção de que se possa apreender a verdade existencial como um ensino ou um sistema de normas ou algo intelectualmente apreensível:

O que é a verdade, e em que sentido Cristo é a verdade? A primeira questão, como é conhecido, foi perguntada por Pilatos (Jo: 18:38), e é duvidoso se ele se importara realmente em receber uma resposta à sua questão. Pilatos pergunta a Cristo ‘O que é a verdade?’ Que não tenha ocorrido a Pilatos que Cristo é a verdade demonstra precisamente que ele não tinha olhos para a verdade. A vida de Cristo era a verdade (Jo 14:6). Para este fim Cristo nasceu, e por este motivo ele veio ao mundo, para que pudesse carregar o testemunho da verdade. Qual, então, é a confusão fundamental na questão de Pilatos? Consiste nisto, em que perguntara a Cristo desta forma; pois perguntando a Cristo ele denunciara a si mesmo; ele revelou que a vida de Cristo não o havia iluminado. Como Cristo poderia iluminar Pilatos com palavras quando Pilatos não pôde enxergar através da própria vida de Cristo o que a verdade é?!³³

Em Kierkegaard, conhecer a verdade é antes de tudo ser conhecido pela verdade. A verdade teria olhos e ouvidos. Como o absoluto é pessoal e a relação com este se dá pela fé, esta crê contra o entendimento. Segundo Kierkegaard, em questões de fé, em oposição ao conhecimento humano objetificado, “quanto mais eu penso sobre o divino, menos eu o compreendo […] como uma criança eu penso estar perto de Deus; mas à medida que me torno velho, mais eu descubro que somos infinitamente distintos, mais eu sinto a distância e menos eu entendo Deus”.³⁴

Qual seria a relação entre o conceito de subjetividade, verdade e ética de Kierkegaard e aquela defendida por autores que trataram de forma exaustiva do tema no Ocidente? Embora esta pergunta exija um esforço intelectual intenso não pretendido aqui, passamos assim a propor caminhos de aproximação e distanciamento na interseção entre distintas perspectivas de pensamento no tema apontado.

Subjetividade e verdade em Kierkegaard, Sócrates, Kant e Nietzsche

Ao iniciarmos com uma análise entre as concepções de Kierkegaard e Sócrates com respeito ao tema “subjetividade e verdade”, cabe-nos lembrar que o primeiro se refere em toda a sua obra à proposta socrática de busca do conhecimento como primordialmente um processo de individuação, ou com vistas a conhecer a si mesmo antes de convencer interlocutores – ou de propor reformas culturais mais amplas. Segundo Kierkegaard, referindo-se a Sócrates, ele era um “dialético e entendeu tudo em reflexão […] qualitativamente duas magnitudes estão envolvidas aqui, mas formalmente eu posso chamar Sócrates de meu professor, embora eu tenha crido e creio em apenas um: o Senhor Jesus Cristo”.³⁵

Essa alusão a Sócrates como professor estabelece um ponto de contato entre a concepção de ambos em relação ao tema da verdade. O método dialético de questionamento socrático possibilitou a Kierkegaard compreender a dinâmica da fé cristã e combater a falsidade que, segundo este, estava envolvida na fé cristã em sua própria época. Porém, segundo Kierkegaard, Sócrates não possuía as categorias centrais reveladas no cristianismo que apontam o problema central do homem, não na ignorância racional, mas na obstinação da vontade. Se a ignorância é o impedimento à virtude, o que gerou no homem o processo de obscurecimento do conhecimento? Estava a pessoa consciente no início do processo de obscurecimento da verdade? A intelectualidade dos gregos era “muito feliz, muito ingênua, muito estética, muito irônica, muito perspicaz – muito pecadora – para compreender que qualquer pessoa poderia conscientemente não fazer o bem, ou sabidamente, conhecendo o bem, fazer o mal. A mentalidade grega estabeleceu um imperativo categórico intelectual”.³⁶

Além da ausência da consciência da enfermidade da vontade humana no fazer o bem conhecido, podemos indicar que a ideia socrática de alma como uma realidade trans-individual e transubjetiva é negada pelo pensamento kierkegaardiano. Para Kierkegaard, a categoria da verdade não pode ser encontrada em alguma essência metafísica, mas apenas apropriada existencialmente pela paixão da subjetividade e interioridade. A verdade em Kierkegaard seria uma pessoa, com o qual o cavaleiro da fé estabelece uma relação direta e pessoal, tornando-se diante dela um indivíduo singular. O entendimento ou a razão em Kierkegaard trabalham numa direção contrária à concepção grega, seja socrática ou platônica. Como se abordou anteriormente, a fé opera contra o entendimento, estabelecendo no amor de obediência da vontade (e não na capacidade racional), o elo de ligação entre o indivíduo e a verdade. A fraqueza da objetividade e a transferência para o interno e subjetivo numa atitude de “salto” seria a única forma de se unir à verdade que está localizada no paradoxo do encontro entre divino e humano, finito e infinito, temporal e eterno.

Em relação a Kant, o pensamento kierkegaardiano apresenta influências deste e dele se distancia simultaneamente. Como influência, pode-se inferir que a separação kantiana entre as esferas do noumênico e fenomênico estão, de certa forma, presentes no pensamento de Kierkegaard. A razão em Kant, como em Kierkegaard, é incapaz de apreender conteúdos relativos à verdade das coisas em si. A religião em Kant teria seu espaço reservado na esfera do noumeno, onde valores e crenças individuais têm sua limitação e local próprio de manifestação. Essa abordagem kantiana parte em certa medida da mesma tradição pietista que influenciou profundamente a leitura kierkegaardiana de cristianismo. O subjetivo seria o local da religião, onde convicções são estabelecidas sem conexão com o racional. Nesse sentido Kierkegaard pode dizer-se aliado de Kant.

Para Kierkegaard, uma concepção de verdade que permitisse ou favorecesse a articulação desta na esfera pública e sua expressão em categorias racionais, com expressões comunitárias e corporativas de atuação e transformação do mundo, como o faziam os calvinistas do século dezesseis e dezessete, era algo inimaginável e contrário ao verdadeiro cristianismo. A base da convicção em Kierkegaard estava na subjetividade, e apenas ali tinha seu campo de articulação assegurado. Não haveria possibilidades de que convicções pessoais se apresentassem em discussões políticas ou científicas, pois em Kierkegaard, a religião cristã se dedica exclusivamente ao encontro existencial entre o humano e o divino, e não guarda nenhuma relação com o universo próprio da razão e da ciência.

Por outro ângulo, Kierkegaard rejeita o princípio kantiano da “religião dentro dos limites da razão”. A fé em Kierkegaard tem sua dinâmica própria e é o único meio de se conectar à verdade pelo meio da vivência de obediência existencial. Um imperativo categórico para Kierkegaard seria apenas um estágio no caminho existencial de conformação com ideal religioso. Se em Kant o homem moral tem condições de cumprir com seus deveres éticos, em Kierkegaard este é apenas um caminho de preparação para o reconhecimento da necessidade de redenção. A moral e a ética são instrutoras que conduzem o indivíduo, quando obedecidas, ao caminho da verdade religiosa e a suas doutrinas essenciais como o pecado e a redenção.

A moral e a ética são instrutoras que conduzem o indivíduo, quando obedecidas, ao caminho da verdade religiosa e a suas doutrinas essenciais como o pecado e a redenção.

Um estágio religioso em Kant era inimaginável, pois a razão definia eticamente os limites da própria religião. Assim, o Cristo kantiano era aceito na medida em que seus ensinos se limitavam ao código moral imperativo. Ou seja, a razão era a autoridade máxima, e não um suposto Deus pessoal que se relacione com a humanidade. A verdade estaria também confinada ao domínio da razão prática com suas categorias de apreensão, não havendo conhecimento verdadeiro sobre o universo do noumeno, seja pela fé ou por quaisquer outros meios de suposta cognição.

Kierkegaard também demonstra aproximações e antíteses quanto ao pensamento de Nietzsche no que tange o conceito de verdade e subjetividade. Uma aproximação que podemos apontar é a ênfase de ambos no fato de que a vontade e não a razão está no centro de qualquer empreendimento humano. O conceito de paixão movendo a vontade também é um tema comum em ambos os pensadores. Kierkegaard aborrecia como Nietzsche a concepção de Schopenhauer segundo a qual a vontade deveria ser controlada visando ao alcance da paz e à diminuição dos sofrimentos humanos. Em Kierkegaard o movimento humano em direção à verdade se dá pela paixão da interioridade do indivíduo em sua subjetividade. Também em Nietzsche a vontade deveria ser exercitada de forma apaixonada na conclusão de seus objetivos, o que seria plenamente humano em sua concepção fundamental de vontade de poder.

Porém, a direção do exercício da vontade em Nietzsche e Kierkegaard corre em direções opostas. Enquanto em Nietzsche o ideal humano proposto seria o herói trágico, em conformidade com uma visão estética ou artística da vida, em Kierkegaard este se torna o cavaleiro da fé, ou o cristão fiel que vive de forma apaixonada por Deus em Cristo. Nietzsche apontara que o ideal cristão seria a popularização do platonismo, o qual em suas categorias metafísicas havia morrido na Europa. Em Kierkegaard, o cristianismo seria completamente livre com a morte do Deus então cultuado no imaginário europeu, o que seria apenas uma caricatura do verdadeiro objeto da fé, o Cristo contemporâneo.

Algumas linhas filosóficas têm tentado traçar uma análise comparativa entre as filosofias da existência de Nietzsche em Kierkegaard, pois, embora tenham vivido em um mesmo período (Kierkegaard teria precedido Nietzsche em alguns anos) os autores não tiveram alguma forma de influência mútua. Segundo Tom Angier, em sua obra Either Kierkegaard/Or Nietzsche Moral Philosophy in a New Key, o ideal de personalidade nietzschiano seria representado por aquele estágio da existência estabelecido por Kierkegaard como o nível inferior de existência, o estético. Se a análise de Angier é correta, pode-se estabelecer uma ponte interessante entre o pensamento dos autores, apontando como o homem religioso de Kierkegaard, rejeitado por Nietzsche seria na verdade o único portador da verdadeira capacidade de individuação e singularização diante do absoluto. Nietzsche, por sua vez, tinha a ética cristã como fundamentada na crueldade e no ressentimento, nos quais a tradição de ódio judaico pelo diferente teria, no cristianismo, sido direcionada para a introspecção e noção de pecado, travestido externamente em seu ideal de amor. Essa distinção entre os autores não os distanciam, porém, quando de sua localização na história do pensamento ocidental como pais de movimentos de pensamento como o existencialismo e a pós-modernidade.

Conclusão

Como podemos constatar, o pensamento de Kierkegaard tem muito a nos oferecer na compreensão de elementos de interação entre subjetividade e verdade. Embora tenha um fundamento filosófico original que influenciou diversas escolas de pensamento posteriores, constatamos que Kierkegaard se posiciona em todo o seu empreendimento como um escritor religioso, ou especificamente cristão.

Sua concepção de verdade é orientada por um processo de individuação do sujeito em uma caminhada existencial do nível estético ao religioso, tendo na pessoa histórica e contemporânea de Cristo a plenitude de verdade existencial, que ao mesmo tempo oferece a capacidade de uma vida existencialmente verdadeira e a orientação existencial para a imitação da verdade. Ainda que presente em Kierkegaard, uma visão comunitária em sua relação com a verdade é entendida como extensão secundária da capacidade individual de apreensão dos sentidos do verdadeiro, que se dá por uma paixão interiorizada. O locus da verdade em sua abordagem existencial estaria, antes de tudo, no indivíduo, manifestando-se a partir daí em relações comunitárias.

Creio que o diálogo entre propostas seculares e religiosas de compreensão de subjetividade e verdade pode tornar esse campo de estudo ainda mais intrigante e esclarecedor, abrindo-o a compreensões que extrapolam o preconceito moderno com suas interpretações da realidade – alegadamente livres dos dogmas antiquados e primitivos da religião. Aqui aponto a necessidade de uma aproximação elaborada entre as tradições neocalvinista e o pensamento kierkegaardiano, como o faz atualmente Gerrit Glas, psiquiatra e filósofo neocalvinista holandês. Tal diálogo se faz ainda mais urgente ao observarmos pontos de integração e complementaridade entre essas duas correntes, compartilhando um tom antecipatório à crise dos conceitos vigentes de verdade na modernidade, e com propostas que superam o embate entre o fundacionalismo proposicional clássico e o crescente relativismo comunitário e niilista.

 

 

 

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* Artigo originalmente publicado na revista Fé Cristã e Ciência, v. 1, n. 1, 2017, pp. 21-27.

1. Apesar de expressar em muitos pontos um contraponto à visão moderna de mundo, a pós-modernidade compartilha com aquela fase da cultura ocidental seus pressupostos básicos, podendo ser denominada, de forma mais apropriada, como a consequência histórica da tentativa de aplicação e vivência dos ideais modernos. Se isto é verdade, podemos nos referir ao presente estado de coisas na cultura ocidental como uma hiper-modernidade.

2. Jean-François Lyotard, The postmodern condition: a report on knowledge, 1984; Michael Polanyi, Personal knowledge: towards a post-critical philosophy, 1974; Thomas Kuhn, The structure of scientific revolutions, 1996.

3. Richard Rorty, Objectivity, relativism, and truth: philosophical papers, 1990; Jacques Derrida, Writing and difference, 1980; Michel Foucault, Ethics: subjectivity and truth, 2006.

4. Jürgen Habermas, Truth and justification, 2005; Polanyi, 1974; Popper, Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge, 2002.

5. Andersen, apud William Hubben, Dostoyevsky, Kierkegaard, Nietzsche & Kafka, 1997, p. 11.

6. Hubben, 1997, p. 17.

7. Kierkegaard apud Hubben, 1997, p. 14.

8. Kierkegaard apud Ricardo Quadros Gouvêa, Paixão pelo paradoxo: uma introdução a Kierkegaard, 2006, p. 43.

9. Ibidem, p. 48.

10. George Brandes apud James Houston, Mentoria espiritual: o desafio de tornar indivíduos em pessoas, 2003, p. 102.

11. Reinhold Niebuhr apud Houston, 2003, p. 102.

12. Ludwig Wittgenstein apud Houston, 2003, p. 102.

13. Kierkegaard apud Thomas Ransom Giles, História do existencialismo e da fenomenologia, 1989, p. 6.

14. Søren Aabye Kierkegaard, Spiritual writings, 2002, p. 23.

15. Ibidem, p. 315.

16. Ibidem, p. 316.

17. Giles, 1989, p. 7.

18. Kierkegaard, apud Howard V. Hong e Edna H. Hong, The essential Kierkegaard, 2000, p. 207.

19. Ibidem, p. 208.

20. Giles, 1989, p. 13.

21. Gouvêa, 2006, p. 254.

22. Giles, 1989, p. 11.

23. Swenson, apud Gouvêa, 2006, p. 257.

24. Gouvêa, 2006, p. 256.

25. Giles, 1989, p. 9.

26. Gouvêa, 2006, p. 259.

27. Kierkegaard, apud Gouvêa, 2006, p. 262.

28. Widenmann, apud Gouvêa, 2006, p. 264.

29. Ibidem. 

30. Giles, 1989, p. 11.

31. Ibidem, p. 12.

32. Kierkegaard, apud Hong e Hong, 2000, p. 381.

33. Kierkegaard, 2002, p. 51.

34. Kierkegaard apud Kenneth Boa e Robert M. Bowman Jr., Faith has its reasons: integrative approaches to defending the christian faith, 2001, p. 396.

35. Kierkegaard, apud Hong e Hong, 2000, p. 468.

36. Kierkegaard, apud Hong and Hong, 2000, p. 367.

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