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Anjos tomam banho?

Uma interpolação no texto do Novo Testamento

Marcelo Berti|

08/09/2023

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Marcelo Berti

Marcelo Berti é pastor da igreja Fonte São Paulo e professor de teologia. É bacharel em teologia pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida (Atibaia/SP) e mestre em teologia (ThM) pelo Dallas Theological Seminary.

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Como citar

Berti, Marcelo. Anjos tomam banho? Uma interpolação no texto do Novo Testamento. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Tudo o que sabemos a respeito do passado chega até nós por intermédio de livros que foram escritos, copiados e recopiados durante séculos. A prática da cópia manuscrita de documentos era a forma mais apropriada para realizar a manutenção da história e das antigas tradições, afinal, não existiam processadores de texto, máquinas de xerox, impressoras, mimeógrafos, máquinas de escrever ou qualquer outro dispositivo de cópia mecânica. E como acontece com todos os processos manuais, a transmissão de documentos antigos ao longo da história sofreu direta influência do inimigo mais imponente do processo de cópias manuais: os copistas. A principal fragilidade do processo histórico de cópias manuscritas eram as pessoas responsáveis por elas.

É por isso que o texto de todos os livros antigos precisam passar por um rigoroso processo de investigação histórica para entender como chegaram até nós. Considere um dos mais importantes livros do período arcaico da literatura grega, a Ilíada de Homero. Embora o texto reflita o contexto histórico do século 12 a.C., na parte final do período micênico, a organização desse material atribuído a Homero só pode ser datada em algum momento no século 8 a.C. Além disso, as primeiras evidências manuscritas dessa obra são todas fragmentárias e pertencem ao século 3 a.C. É somente no período medieval que encontramos cópias completas do seu texto, como o Códice Venetus do século 10 d.C. Para deixar as coisas ainda mais interessantes, no período medieval as obras gregas passaram por um processo de revisão e ganharam uma série de adições explicativas, conhecidas como interpolações. Infelizmente, essas intervenções feitas pelos escribas acabaram por transformar o texto recebido em uma composição relativamente nova.

Em outras palavras, para se saber qual é o texto original de Homero, é necessária uma investigação de todas as suas cópias, em particular as mais antigas, para se compreender como esse texto chegou até nós e como os escribas alteraram o texto no processo. Martin Litchfield West (1937-2015), um dos maiores eruditos no estudo do texto de Homero e o principal editor de sua obra, afirma que o trabalho para se identificar o texto original da Ilíada é semelhante ao trabalho de um escultor, e propõe uma cômica ilustração: “O verdadeiro método para se esculpir uma estátua de um cavalo: 1. Adquira um bloco de mármore pouco maior que o pretendido para a estátua; 2. Remova tudo o que não se parece com um cavalo.” Ou seja, o editor do texto de Homero deve trabalhar para remover da tradição textual tudo o que não se parece com ele.¹

É por isso que o texto de todos os livros antigos precisam passar por um rigoroso processo de investigação histórica para entender como chegaram até nós.

De certo modo, a história e transmissão do texto do Novo Testamento não é muito diferente. É verdade que o texto do NT não precisa recorrer às emendas conjecturais, que são tentativas bem-informadas de corrigir o texto tradicional quando não existem evidências textuais disponíveis entre os manuscritos sobreviventes. No caso do NT, nós temos tamanha riqueza de evidências manuscritas que as emendas conjecturais não são necessárias. Contudo, como aconteceu com a transmissão da Ilíada, o texto do NT também passou por modificações no período medieval, e os escribas acabaram por adicionar muitas notas explicativas ao texto que recebiam. Entre as muitas notas explicativas adicionadas por escribas no texto do NT, uma é bem famosa e curiosa: trata-se de uma antiga interpolação profundamente criativa feita pelo corretor do Códice Alexandrino no capítulo 5 do Evangelho de João. 

O manuscrito

Mas, antes que você desconsidere o testemunho desse manuscrito, preciso lembrá-lo que o Códice Alexandrino é um dos mais importantes representantes do texto do NT, sendo um dos três (talvez quatro) exemplares completos da Bíblia no primeiro milênio da história da transmissão. Embora saibamos muito pouco sobre sua procedência, F. C. Burkett sugere que ele foi produzido na região do Monte Athos na Grécia,² ao passo que a maioria dos eruditos contemporâneos afirma que ele tenha sido produzido em Alexandria.³ Ele foi escrito em duas colunas por página em um velino de excelente qualidade, o que demonstra o caráter profissional de sua produção. A qualidade do texto desse manuscrito também é reconhecida pelos críticos textuais, muito embora tenha sido copiado de manuscritos de diferentes tradições.⁴

O texto

Embora o Códice Alexandrino seja uma excelente evidência para o texto do NT, o escriba responsável pela correção do Evangelho de João fez uma das mais conhecidas adições ao texto original do documento – como acontece com qualquer outro manuscrito –, criando uma nota explicativa para auxiliar os futuros leitores da história. Para você entender melhor do que se trata, cito aqui a história da cura de um paralítico no tanque de Betesda segundo a tradução Almeida Revista e Atualizada (ARA). Observe atentamente o uso de colchetes dessa tradução: 

Ora, existe ali, junto à Porta das Ovelhas, um tanque, chamado em hebraico Betesda, o qual tem cinco pavilhões. Nestes, jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos [esperando que se movesse a água. Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer doença que tivesse] (Jo. 5:2-4).

A interpolação

A parte da história que os editores colocaram entre colchetes (vv. 3b-4) se refere a uma interpolação histórica que foi incorporada como parte de João no período medieval. Essa interpolação aconteceu em três etapas: (1) Primeiro, o Códice Bezae, um excêntrico manuscrito do quinto século, adicionou a parte final do v. 3: “esperando que se movesse a água; (2) No mesmo período, o Códice Alexandrino adicionou o v. 4: “Porquanto um anjo descia em certo tempo, agitando-a; e o primeiro que entrava no tanque, uma vez agitada a água, sarava de qualquer doença que tivesse”; (3) Por fim, no sexto século, o Códice 078 associa as duas notas explicativas, criando a interpolação que vemos entre parênteses na ARA. Essa interpolação passou a ser consistentemente utilizada e atualmente é encontrada na maioria dos manuscritos sobreviventes.

Ao ler isso, você pode se perguntar: se os vv. 3b-4 estão presentes na maioria dos manuscritos, como podemos chamá-los de interpolação? Excelente pergunta. Sabemos que se trata de uma interpolação por três importantes razões: (1) os vv. 3b-4 são desconhecidos juntos nos seis primeiros séculos da transmissão do texto grego do NT; (2) A primeira indubitável citação do v. 3 em grego acontece apenas com João Crisóstomo no quinto século, ao passo que a primeira citação grega do v. 4 acontece com Hilário de Poitiers, no quarto século. É possível que a primeira citação dos vv. 3b-4 tenha sido feita por Cirilo de Alexandria, no quinto século, no entanto, seu texto é duvidoso; (3) Além disso, a interpolação contém sete palavras nunca usadas pelo evangelista, incluindo quatro que são desconhecidas em todo o NT (kinēsis, dēpote, katechō e nosēma).⁶ 

Em outras palavras, as evidências externas, ou seja, o testemunho dos manuscritos sobreviventes, e as evidências internas, isto é, as características de escrita do texto, demonstram que essa interpolação não pertencia ao momento mais antigo da transmissão e não descreve o estilo literário de João. Trata-se de uma adição feita por copistas e corretores ao texto original desse Evangelho.

O corretor

Mas, o que isso tem a ver com o banho do anjo? Na verdade, tudo! Um detalhe que não mencionei até aqui é que o texto que vemos traduzido na ARA não é o mesmo que encontramos no Códice Alexandrino. A bem da verdade, existem duas diferenças entre o texto da ARA e o do manuscrito que você pode ver na imagem abaixo:

Você não precisa ser um especialista em paleografia ou crítica textual para identificar que existe algo errado no texto desse manuscrito. Como você pode observar, o copista transcreveu uma parte do texto e, então, posteriormente um corretor reescreveu e adicionou a outra parte. Para ajudá-lo a compreender o texto do manuscrito, vou transcrever e traduzir o texto no quadro vermelho. Tudo o que for colocado depois do colchete representa o texto em letras reduzidas que você enxerga na imagem acima:

1. asthenountōn; typhlōn chō  ] lōn xērōn

              inválidos, cegos, man ] cos paralíticos

2. ekdechomenōn tēn tou hydatos ] kinēsin ange

                                                             ] los gar ky

Esperando o da água ] movimento an

                                       ] jo então do Senhor

3. kata kairon eloueto en tē

Na primeira linha, o corretor adicionou lōn xērōn, que seria a parte final do adjetivo chōlōn (lit. coxos) e o termo xērōn (lit. paralíticos). Na segunda linha, que tem evidências de ter sido totalmente reescrita pelo corretor, o texto diz: ekdechomenōn tēn tou hydatos (lit. esperando da água). Em letras menores, para conseguir encaixar no espaço disponível, o corretor ainda adiciona: kinēsin angelos gar ky (lit. movimento anjo então do Senhor). Por fim, na terceira linha encontramos algo muito interessante. A expressão kata kairon eloueto poderia ser traduzida como “de tempo em tempo mergulhava” no tanque. Essa leitura encontrada com algumas variações de escrita em alguns manuscritos do nono século (cf. 017 041 044) representa uma forma textual virtualmente desconhecida do texto do Evangelho de João.⁷ 

O banho do anjo

Considerando o texto do manuscrito como está, podemos traduzi-lo da seguinte maneira: “inválidos, cegos, mancos, paralíticos, esperando o movimento das águas. Então, o Anjo do Senhor mergulhava no tanque agitava a água.” Essa leitura tem duas importantes distinções com o texto da ARA:

1. Em primeiro lugar, para o corretor responsável por esse documento, o anjo mencionado não é qualquer anjo, mas o Anjo do Senhor. O uso não articulado de angelos (anjo) poderia sugerir para alguns que se trata de um anjo qualquer. Contudo, o uso da expressão genitiva ky, como um nomina sacra demonstra sem sombra de dúvidas que o escriba tem em mente O Anjo do Senhor. 

2. Em segundo lugar, o Anjo do Senhor, de acordo com esse escriba, teria o hábito de se banhar nas águas do tanque de Betesda. O texto base por trás do texto entre colchetes da ARA traz o verbo katabainō, frequentemente traduzido como descer. De acordo com a maioria dos manuscritos sobreviventes, um anjo descia para agitar as águas. Contudo, o corretor do Códice Alexandrino o descreveu com o verbo louō, que é comumente usado para descrever um banho cerimonial (At 9:37; 16:33; 2Pe 2:22). No Evangelho de João, esse termo é usado uma única vez: “Quem já se banhou precisa apenas lavar os pés; todo o seu corpo está limpo. Vocês estão limpos, mas nem todos” (Jo 13:10). Ainda mais interessante é que o corretor fez uso do imperfeito de louō, o que descreve um ato recorrente. Em outras palavras, da perspectiva do corretor responsável pela correção do texto original do Códice Alexandrino, o Anjo do Senhor tinha o hábito de tomar banho no tanque de Betesda.

A confiabilidade do texto

Ao observar um caso tão curioso de interpolação textual, você pode estar se perguntando:  é possível confiar em um texto com interpolações desse tipo? Com certeza! Um dos equívocos que alguns cristãos cometem ao estudar o texto das Escrituras é presumir que a transmissão do texto foi um evento sobrenatural operado miraculosamente por Deus. Ao fazerem isso, ignoram a evidente realidade de que os copistas responsáveis por esse processo de cópia eram tão humanos como nós. 

Mas, graças à abundante riqueza de documentos sobreviventes, podemos comparar o texto desses manuscritos e observar quando interpolações como essa são feitas ao texto original do NT. Essas alterações promovidas por escribas enriquecem nosso entendimento do texto e nos ajudam a compreendê-lo melhor. Isso acontece porque em muitas ocasiões eles adicionam tradições associadas ao texto que refletem corretamente o ambiente cultural dos dias dos apóstolos. No caso do de João 5:3b-4, é possível que essa interpolação seja uma representação da fé das pessoas que visitavam o local.⁸ Sendo assim, ainda que a interpolação modifique a escultura do Evangelho de João, ela não a desfigura. Aliás, seria melhor pensar nessa interpolação como um enfeite, algo que empresta à escultura sua beleza, mas sem desfigurar sua magnitude.

É por essa razão que a maioria das traduções para o português mantém o texto entre colchetes. Assim, o leitor pode ver ao mesmo tempo a magnitude da escultura e a beleza da interpolação. O ideal seria, na minha opinião, incluir a interpolação em uma nota de rodapé, pois, assim, a magnitude do texto seria vista antes da beleza da interpolação e daria ao leitor a correta perspectiva sobre o assunto. Pelo menos foi essa a opção da Novíssima Versão Internacional, a revisão da NVI a ser lançada em breve. Que outras traduções sigam esse exemplo.

Sendo assim, ainda que a interpolação modifique a escultura do Evangelho de João, ela não a desfigura. Aliás, seria melhor pensar nessa interpolação como um enfeite, algo que empresta à escultura sua beleza, mas sem desfigurar sua magnitude.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Para saber mais sobre o texto, transmissão e edição contemporânea do texto da Ilíada, considere: Martin L. West, Studies in the Text and Transmission of the Iliad, 2001, p. 158-165.

2. F. C. Burkett, “Codex Alexandrinus”, JTS XI, 1909-1910, p. 603-606.

3. T. C. Skeat, “Provenance of the Codex Alexandrinus”, The collected biblical writings of T. C. Skeat, 2004, p. 119-122.

4. Bruce Metzger e Bart Ehrman, The Text of the New Testament: It’s Transmission, Corruption and Restoration, 2005, p. 67; Dirk Jongkind, An Introduction to the Greek New Testament: Produced at Tyndale House, Cambridge, 2019, p. 58–59; Amy Anderson e Wendy Widder, Textual Criticism of the Bible, ed. Douglas Mangum, Revised Edition., vol. 1, Lexham Methods Series, 2018, p. 133.

5. No gráfico, mencionamos Papiros, mas não os incluímos. A referência é feita aos Papiro 66, do séc. 2-3, e o Papiro 75, do séc. 3. O Códice Sinaítico e o Códice Vaticano são datados no séc. 4. Os códices Borgianus, Rescriptus, Alexandrino, Bezae e Washingtoniensis são todos datados no séc. 5. Embora o Códice  Washingtoniensis tenha sido incluído entre os mss que contém o v.3b no gráfico, é necessário dizer que é bem possível que seja reflexo de uma suplementação de um escriba posterior. Entre os manuscritos listados entre os séc. 6-10, o Códice 078 é do séc. 6, o Códice 0233 e o Regius são do séc. 8, o Códice Athous Laurae é do séc. 8–9, o Códice Ciprus é do século 9, e o Códice 0141 é do séc. 10. É importante notar que manuscritos tardios, como o 0141 nesse caso, mantém a leitura original do texto, mesmo tendo sido escrito séculos mais tarde.

6. Para mais informações sobre esse dilema textual, considere: J. Ramsey Michaels, “The Gospel of John“, The New International Commentary on the Old and New Testament, 2010, p. 290–291; Robert H. Mounce, “John,” The Expositor’s Bible Commentary: Luke–Acts, vol. 10, 2007, p. 425; C. K. Barrett, Gospel according to St John: An Introduction with Commentary and Notes on the Greek Text, 1978, p. 253.

7. O manuscrito catalogado como 041 é também conhecido como Códice Petropolitano e contém apenas os Evangelhos. O manuscrito 044 é conhecido como Códice Athous Lavrensis e contém todo o NT menos Apocalipse. O manuscrito 017 é conhecido como Códice Cipriano e contém apenas os Evangelhos.

8. Jey J. Kanagaraj, “John”, vol. 4, New Covenant Commentary Series, 2013, p. 54; Raymond E. Brown, The Gospel according to John (I–XII): Introduction, Translation, and Notes 2008, p. 207; William Barclay, The Gospel of John, Rev. and updated., 2001, p. 206–210; N.T. Wright, John for Everyone, Chapters 1-10, 2004, p. 55–56; D. A. Carson, The Gospel according to John, 1991, p. 242; Ernst Haenchen, Robert Walter Funk, Ulrich Busse, John: A Commentary on the Gospel of John, 1984, p. 254–260.

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