QUEM SOMOS

ARTIGO

As ciências da história e da teologia

Convergências, divergências e diálogo

André Reinke|

27/07/2023

Screenshot 2023-07-27 at 09.52.22

André Reinke

É bacharel em Desenho Industrial (habilitação em Programação Visual) pela UFSM, licenciado em História pela UFRGS, mestre e doutor em teologia (concentração em História das Teologias e Religiões) pela Faculdades EST. Autor dos livros “Os outros da Bíblia”, “Aqueles da Bíblia”, “Nós e a Bíblia” e “Atlas bíblico ilustrado”.

Baixe e compartilhe:

Como citar

REINKE, André. As ciências da história e da teologia: convergências, divergências e diálogo. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

O historiador Marc Bloch (1886-1944) via, na origem cristã da civilização ocidental, uma das razões para o apreço que temos pela história. “O cristianismo é uma religião de historiador”: suas liturgias celebram episódios da vida terrestre de Deus e os dramas do pecado e da redenção se situam entre a Queda e o Juízo.¹

Diferentemente de outras religiões antigas, nas quais os mitos remetem à essência situada fora do tempo, a religião cristã os situa dentro. Seus mitos se fundem com a história, como poderia dizer Tolkien (1892-1973).² Mais do que isso: a crença de que Deus fala na história por meio de seu Filho produz uma norma em que o tempo passa a ser entendido em uma linha horizontal, partindo do início e caminhando para um final, graças à qual “todos os fatos tomam um sentido”, como Oscar Cullmann (1902-1999) nos explica.³ A expectativa da volta de Cristo implica que a história da salvação irá absorver a história universal.⁴

Ousadia cristã! Cremos que Deus invadiu o tempo humano e que a história encontrará seu fim. Temos, portanto, um diálogo permanente e inescapável com historiadores. Mas sabemos que é um diálogo marcado por tensões, especialmente em eventos extraordinários, como a travessia de um mar entre paredes de água ou a ressurreição de Cristo.

Pois a base das divergências entre historiadores e teólogos sobre os fatos da história está nos distintos objetos e metodologias empregados por uns e outros.

Ousadia cristã! Cremos que Deus invadiu o tempo humano e que a história encontrará seu fim. Temos, portanto, um diálogo permanente e inescapável com historiadores.

A ciência da história

A história é a “ciência dos homens no tempo”. É ciência humana, mas com a especificidade de situar o ser humano no tempo. E isso significa que há uma categoria de duração a ser examinada.⁵ O que mudou nas sociedades humanas? O que permaneceu e qual a razão?

Mas o “homem no tempo” não pode ser observado diretamente. Ninguém que estuda o Egito Antigo viu o faraó Ramsés II enfrentar os hititas na batalha de Cadesh. O conhecimento do passado é indireto. Por isso, a ciência histórica opera por vestígios, seja por meio de testemunhas orais ou escritas, seja pelos resquícios da cultura material.⁶ Mas os testemunhos humanos do passado não podem ser tomados como verdadeiros a priori simplesmente porque seus autores podem mentir. Então, é necessário que o historiador tenha uma atitude crítica com os documentos, comparando-os com outros testemunhos para interpretar o fato do passado.

O jesuíta Michel de Certeau (1925-1986) descreveu o trabalho do historiador como uma “operação historiográfica”. Para ele, o historiador fabrica algo quando faz história, realiza uma operação, pois manipula o vestígio para transformá-lo em história.⁷

Então, o primeiro ponto do processo é que há um lugar social em que a história acontece, e esse lugar é a academia (a universidade), onde se definem os métodos e interesses de pesquisa. Isso é importante porque a academia responde a dois problemas: 1) a morte da ideia positivista de que o historiador reconstrói a plena verdade; e 2) o simples fato de que a interpretação do passado depende da filosofia particular do autor. Para evitar esses dois desvios, outros historiadores testam suas teses. Por isso, o discurso historiográfico é o “nós”, pois é uma atividade coletiva.

O segundo elemento da operação é que a academia define a prática historiográfica. Há uma série de técnicas mediatizando a prática dos historiadores que transformam o vestígio em fato histórico. Por isso, as fontes têm papel central, pois elas são os vestígios. Os historiadores selecionam o que é fonte e o que não é: uma ata, um registro de nascimento, uma carta, uma pintura, uma fotografia, um objeto – que são guardados em arquivos, museus e bibliotecas. Então, as fontes são transformadas em outra coisa diferente do que eram originalmente. Numa carta, por exemplo, serão descobertas informações que pouco têm a ver com a intenção do autor.

O terceiro ponto do processo é a escrita dos historiadores, onde os maiores paradoxos são encontrados. O tempo é contínuo, mas o historiador precisa delimitar início e fim. Então, ele estabelece marcos na sua narrativa, diz onde começa determinado encadeamento de acontecimentos e para onde conduz. Essa é uma operação imaginativa semelhante à dos autores ficcionais. Entretanto, há uma imensa diferença: o historiador deve revelar a construção no seu discurso, explicar a razão da cronologia escolhida, argumentar e apresentar as provas na forma de citação e notas aos seus pares, que avaliarão se suas conclusões estão adequadas.¹⁰

Por isso tudo, o discurso histórico sobre o passado é um discurso sempre provisório, pronto a ser revisto pelos historiadores a partir de novas descobertas, como bem percebe o filósofo Paul Ricoeur (1913-2005):

Com efeito, o vestígio, na medida em que é deixado pelo passado, vale por ele: exerce a seu respeito uma função de locotenência, de representância (Vertretung). Essa função caracteriza a referência indireta, própria de um conhecimento por vestígio, e distingue de qualquer outro o modo referencial da história com relação ao passado. É claro que esse modo referencial é inseparável do próprio trabalho de configuração: com efeito, é só por meio de uma retificação sem fim de nossas configurações que formamos uma ideia do inesgotável recurso do passado.¹¹

o discurso histórico sobre o passado é um discurso sempre provisório, pronto a ser revisto pelos historiadores a partir de novas descobertas

A ciência da teologia

A teologia é o “estudo ou ciência de Deus”. Entretanto, como Deus pode ser objeto de estudo? Nós é que somos objetos da ação divina; Deus é o sujeito em qualquer situação. O teólogo tem, portanto, um impasse na saída de seu trabalho que somente pode ser superado partindo de dois pressupostos: de que existe um Deus, e esse Deus é trino e uno, amoroso, santo e onisciente; e que Deus se revelou em atos que estão preservados em narrativas das Escrituras do Antigo e Novo Testamento. Portanto, como aponta o teólogo Millard Erickson (1932-), a teologia é uma disciplina que procura o conhecimento de Deus baseado na Bíblia.¹²

Assim, o objeto de estudo de Deus não é diretamente Deus, mas um livro considerado pelo teólogo como a palavra revelada de Deus. Esse dado não é passível de verificação, mas aceito pela fé. O labor teológico é sempre um “segundo momento”, como sinaliza o teólogo Dietrich Ritschl (1929-2018). Primeiro houve as narrativas bíblicas nos contando os atos de Deus na história, que é o axioma original. O exame pesa sobre essa narrativa. Por isso, há uma série de conteúdos bíblicos que não são propriamente reflexão teológica. A teologia acontece quando se comparam os conteúdos do texto bíblico e quando buscamos neles a verdade divina. O que é considerado significativo pela comunidade teológica acaba se tornando a doutrina eclesiástica.¹³

Ou seja, a atitude do teólogo é de interpretação do texto bíblico para a produção de doutrinas. Mas Deus permanece sempre Deus e superior; Ele se dá continuamente a conhecer e, por isso, deve ser continuamente redescoberto, como orienta Karl Barth (1886-1968). Por isso, a teologia deve sempre estar em posição de escuta, submissa a Deus. Ela não possui glória em si mesma, mas aponta apenas para Deus – o que faz dela necessariamente uma ciência modesta. Além disso, ela dá a manifestar o Deus da Bíblia, que é um Deus sublime e humilde, sendo sublime justamente em sua humildade. Essa é realmente a boa notícia do evangelho, a de que Deus escolheu andar com o humano. Então, ela é uma ciência grata e uma ciência alegre.¹⁴ Por isso, Barth insiste que o teólogo precisa partir sempre da experiência de fé:

A fé como conditio sine qua non da ciência teológica! Isso quer dizer: a fé é o evento, a história sem os quais uma pessoa, não obstante todas as demais possibilidades e qualidades boas que lhe possam ser peculiares, em verdade não poderá se tornar e ser cristão e, portanto, teólogo.¹⁵

Não há neutralidade nem distanciamento na teologia. O teólogo está a serviço de Deus.

Não há neutralidade nem distanciamento na teologia. O teólogo está a serviço de Deus.

Convergências, divergências e diálogo

Vimos que, embora a história tenha por tema o homem no tempo e a teologia ouse “estudar” Deus, ambas são ciências hermenêuticas. Tanto história como teologia partem da leitura e interpretação de vestígios do passado. A Bíblia é a fonte do conhecimento da teologia, mas  pode servir também como fonte para a pesquisa e análise historiográfica. A diferença – significativa – está na postura com relação a esse documento: teólogos a consideram palavra divina revelada e se colocam em escuta submissa, ao passo que historiadores a tratam como mais um vestígio, entre outros, a ser analisado de forma crítica.

O lugar social da história é a academia, onde a construção do saber historiográfico é realizado entre os pares; o lugar social da teologia é a igreja, onde doutrinas são constituídas a partir da reflexão sobre o testemunho bíblico. A relação da história com o tempo está na análise do passado para esclarecimento da memória e compreensão do presente; a teologia busca no passado orientação para o presente e construção do futuro, pois o passado – onde se situam a cruz e a ressurreição – sustenta a esperança do futuro, o Reino de Deus a ser consumado. Vemos aí uma diferença significativa, pois a história opera na explicação de como homens funcionam no tempo; a teologia opera na explicação do que os fatos significam ontem, hoje e amanhã – o que não deixa de ser a diferença entre as ciências naturais e a religião.¹⁶

História e teologia são ciências com métodos bastante distintos, que conduzem a resultados igualmente distintos. O olhar de ambas para o passado – especialmente na interpretação da Bíblia – tem trazido momentos de tensão. Mas penso que historiadores e teólogos podem “trocar presentes” e fecundar suas pesquisas mutuamente. Historiadores podem aprender a lição de humildade de uma ciência modesta, em escuta da verdade, não perdendo de vista o espanto com o dramático mistério da situação do homem no tempo. Os teólogos podem aprender com a verdade em suspenso da historiografia, uma posição de revisão das próprias conclusões, entendendo que Deus não está limitado aos nossos pressupostos e às nossas interpretações. Afinal, se a Palavra nos informa que os céus manifestam a glória de Deus (Salmos 19:1), também nos alerta que o Senhor age de formas misteriosas (Isaías 45:15).

Finalizo com Agostinho de Hipona (354-430) e seus conselhos de prudência a respeito da interpretação das Escrituras:

E se lermos alguns escritos sobre assuntos obscuros e muito ocultos aos nossos olhos, mesmo divinos, que possam, salvando a fé na qual estamos imbuídos, apresentar várias opiniões, não nos lancemos com precipitada firmeza a nenhuma delas, para não cairmos em erro. Talvez uma verdade discutida com mais cuidado venha destruir aquela opinião. Desse modo, não estamos lutando em favor da opinião das divinas Escrituras, mas pela nossa, de tal modo que queremos que seja das Escrituras a que é nossa, quando devemos querer que seja nossa aquela que é a opinião das Escrituras.¹⁷


Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Marc Bloch, Apologia da história ou o ofício de historiador, 2002, p. 42.

2. Como Tolkien belamente escreveu, “Deus é o senhor, dos anjos e dos homens – e dos elfos. A Lenda e a História encontraram-se e fundiram-se”. J. R. R. Tolkien, Sobre histórias de fadas, 2006, p. 81.

3. Oscar Cullmann, História da salvação, 2020, p. 177.

4. Cullmann, 2020, p. 285.

5. Bloch, 2002, p. 55.

6. Bloch, 2002, p. 69-73.

7. Michel de Certeau, A escrita da história, 1982, p. 65.

8. Certeau, 1982, p. 66-77.

9. Certeau, 1982, p. 78-93.

10. Certeau, 1982, p. 93-109.

11. Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa, volume 3, O tempo narrado, 2010, p. 237-238.

12. Millard Erickson, Teologia Sistemática, 2015, p. 22,30-32. Considero aqui a teologia cristã como referencial para o estudo sistemático de Deus, e não outra teologia, mesmo que judaica. Cristo é essencial na tradição cristã e na metodologia que estou examinando na comparação com a história.

13. Dietrich Ritschl, Fundamentos da teologia cristã, 2012, p. 23-29.

14. Karl Barth, Introdução à teologia evangélica, 2016, p. 9-14.

15. Barth, 2016, p. 65.

16. Alister McGrath, Ciência & Religião: fundamentos para o diálogo, 2020, p. 35.

17. Agostinho, Comentário ao Gênesis, capítulo XIX, 37.

Outros artigos [n. 2]

Screenshot 2023-12-15 at 11.16
Quem é o ser humano?
20110318182437!V&A_-_Raphael,_St_Paul_Preaching_in_Athens_(1515) (1)
Screenshot 2023-12-08 at 09.25
pexels-cottonbro-studio-6153354
compare-fibre-tiSE_paTt0A-unsplash
James Webb Space Telescope
42646461524_5b16709ef7_k
Webb's_First_Deep_Field
Screenshot 2023-11-03 at 16.36
Cibernética e transumanismo
alexander-andrews-fsH1KjbdjE8-unsplash
O que é vida?

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!