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ARTIGO

Ciência, inteligibilidade e coerência*

A visão cristã da realidade

Alister McGrath|

01/07/2023

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Alister McGrath

Possui doutorado em biofísica molecular e em teologia pela Universidade de Oxford, foi professor da cadeira Andreas Ideos de Ciência e Religião e diretor do Centro Iam Ramsey para Ciência e Religião, em Oxford. Autor consagrado de muitos livros importantes no diálogo entre Religião e Ciência.

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Como citar

MCGRATH, Alister. Ciência, inteligibilidade e coerência: a visão cristã da realidade. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Neste artigo, abordo a relação entre as ciências naturais e a fé cristã. Dada a elevada importância que tanto a ciência quanto a religião ocupam nos debates culturais contemporâneos, este é um dos temas culturais mais significativos e intelectualmente estimulantes de nosso tempo. Ainda assim, qualquer discussão sobre a relação entre as ciências naturais e a teologia cristã deve ser localizada em um referencial de entendimento, o qual nos auxilia a posicionar ambos. Precisamos de uma visão ampla da realidade, que, mais do que criar um espaço para a ciência e a teologia, nos ajude a enxergar a natureza, limites e benefícios da interação entre elas.

Existe um interesse crescente, em meio às disciplinas intelectuais, pela recuperação dessa noção de uma visão ampla. Uma forma rica de ver as coisas que objetive enquadrar e unir os elementos de nossa experiência e observação, trazendo um sentido de estabilidade e coerência à vida e ao pensamento. O Novo Testamento fala sobre a mente de Cristo (1 Coríntios 2:16; Filipenses 2:5). Um padrão de pensamento comunal sobre a vida e o mundo que é revelado em Jesus Cristo como Deus encarnado. Desde o princípio, os teólogos cristãos reconheceram o potencial de sua fé para gerar e sustentar uma visão mais ampla da vida.

C. S. Lewis, um escritor que admiro grandemente, declarou certa vez que sua fé cristã lhe permitia dar sentido a todos os outros aspectos de sua vida racional e imaginativa, incluindo as ciências naturais. Todos nós precisamos de alguma forma de arcabouço teórico, por mais modesto, provisório e corrigível que seja, para dar sentido à história, à natureza e à vida. Seja de forma consciente ou inconsciente, todos nós vemos a vida por meio de lentes teóricas que afetam o que vemos e, talvez o mais importante, o que nós não conseguimos ver. E é por isso que se torna importante ter a teoria correta.

Quando mais jovem, eu era ateu. Estava convencido de que as pessoas criam em Deus porque elas eram loucas, más ou tristes. No final dos anos 1960, havia uma crença generalizada de que a religião estava morrendo. Escutamos por décadas que ela seria extinta, relegada aos livros de história. Um alvorecer secular estava às portas. Mas tudo se modificou a partir dos anos 1960 enquanto eu crescia. Naquele tempo, como os sociólogos William Bainbridge e Rodney Stark pontuaram, “as figuras mais ilustres na sociologia, na antropologia e na psicologia” eram unânimes na visão de que “eles viveriam para ver o alvorecer de uma nova era na qual […] as ilusões infantis da religião seriam superadas”.¹ Mas, após uma geração, esse juízo não pode mais ser sustentado. A religião conquistou um retorno inesperado. Longe de estar morrendo, a crença em Deus se recuperou e parece estar pronta a exercer uma influência ainda maior tanto na esfera pública quanto na privada. O tom agressivo do “Novo Ateísmo” reflete essa profunda preocupação e sua intensa ansiedade sobre o futuro do ateísmo dogmático. A razão pela qual eles estão tão furiosos com a religião é que ela ainda está aqui e eles não foram capazes de refutá-la. É por isso que eles usam uma retórica tão agressiva. Eles sabem que falharam em pleitear seu caso racionalmente e, por isso, têm de se basear na ridicularização e na difamação. 

Eu mesmo sou um daqueles que experimentaram esse renovo da fé. Quando jovem, eu havia lido Sigmund Freud e Karl Marx, e estava convencido de que a religião era algum tipo de desordem patológica. Era uma ilusão infantil que nos protegia das realidades da vida. Então, descobri o cristianismo enquanto estudava ciências naturais na Universidade de Oxford. Comecei a reconhecer que os argumentos a favor do ateísmo eram muito mais fracos do que eu havia suposto. Comecei a ficar alarmado pelo tom estridente, desdenhoso, dos escritos ateístas, que pareciam mais preocupados com o ataque à religião do que em buscar a verdade.

E não demorou para que descobrisse duas coisas que modificariam meu mundo pessoal. Primeiro, eu reconheci que o cristianismo fazia muito sentido. Ele me forneceu uma nova forma de ver e entender o mundo — acima de tudo, as ciências naturais. Em segundo lugar, comecei a ver que o cristianismo de fato funcionava, dando um senso de significado à vida. Não era apenas um conjunto de ideias interessantes, mas algo que trazia propósito e dignidade à vida. Esse é um ponto importante. Hoje em dia, o critério de aceitabilidade de nossa cultura pós-moderna não é primariamente “isto é certo?”, mas “isto funciona?”.

Longe de estar morrendo, a crença em Deus se recuperou e parece estar pronta a exercer uma influência ainda maior tanto na esfera pública quanto na privada.

E é óbvio que a crença religiosa funciona para muitas e muitas pessoas oferecendo direção, propósito e estabilidade às suas vidas. As vendas significativas e o impacto do livro Uma vida com propósitos, de Rick Warren, que superaram em muito as vendas de Deus, um delírio, de Richard Dawkins, são um sinal óbvio desse desenvolvimento. Eu continuei estudando as ciências, as quais ainda amo, e terminei o doutorado realizando pesquisas em biofísica molecular. Mas meu coração e minha mente haviam sido seduzidos pela teologia — o estudo sistemático das ideias cristãs —, que até hoje me empolga e emociona.

A ciência é grande — mas precisamos mais do que isso

A ciência é uma das conquistas humanas mais significativas e profundamente satisfatórias. Embora amasse a ciência quando jovem, eu simplesmente sentia que esta não era completa. A ciência me auxiliava a compreender como as coisas funcionavam, mas o que elas significavam? A ciência me fornecia uma resposta apropriada à questão sobre como eu vim a existir neste mundo. Mas ela me parecia incapaz de responder a uma questão mais profunda: “Por que eu estava aqui? Qual era o sentido da vida?” 

A questão, de fato, é se as ciências naturais podem nos ajudar a lidar com essas questões mais profundas, que o filósofo Karl Popper formulou em termos de “questões últimas”. Para Popper, estas eram questões existencialmente significativas e enraizadas nas profundezas de nosso ser, mas que transcendiam a capacidade das ciências naturais de resposta. O físico John Wheeler (1911–2008) argumentou que nossas observações científicas, quando muito, concedem uma “ilha de conhecimento” em um oceano de incerteza. Existem limites à capacidade da ciência em responder às questões filosóficas fundamentais de valor e significado, refletindo parcialmente as limitações dos instrumentos que utilizamos para explorar a realidade e parcialmente a própria natureza da realidade física.

Então, por que simplesmente não nos limitamos à segurança relativa dessa “pequena ilha” de conhecimento? Existem duas respostas óbvias. Primeiro, sentimos que existe mais para ser conhecido e ficamos inquietos até que o encontremos. Encontramos estranhos objetos trazidos ao litoral de nossa ilha, possivelmente apontando para misteriosos mundos desconhecidos além da costa. E talvez ainda mais significativo: o tipo de conhecimento que tem de ser possuído nesta ilha é existencialmente inadequado. Ele não responde às questões realmente grandes da vida.

É por essa razão que o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) argumentou que precisamos mais do que um relato parcial sobre a realidade, que a ciência oferece. Veja o que ele tem a dizer:

A verdade científica é caracterizada por sua precisão e a certeza de suas previsões. Mas a ciência alcança essas qualidades admiráveis à custa de permanecer no plano das preocupações secundárias, deixando intocadas as questões últimas e decisivas.²

Ortega insiste que precisamos de uma visão mais ampla, uma ideia integral do universo que possua profundidade existencial. A ciência tem uma capacidade incrível de explicar, embora, não obstante, falhe em satisfazer às questões e aos anseios mais profundos da humanidade.

Para Ortega, a grande virtude intelectual da ciência é que ela saiba seus limites, que são determinados por seus métodos de pesquisa, e não por restrições artificiais ou arbitrárias. Em seu melhor, a ciência irá apenas responder a questões que ela sabe que pode responder com base em evidências. No entanto, seres humanos querem ir além do ponto no qual a ciência declara que devem parar se quiserem permanecer fiéis aos seus compromissos metodológicos. Nós queremos fazer perguntas mais profundas sobre significado e tentar encontrar uma visão ampla que dê sentido à vida como um todo.

Como Ortega corretamente observou, seres humanos, sejam ou não cientistas, não podem viver sem tentar responder a essas questões mais profundas, mesmo que seja de forma provisória. Ele escreve: “A nós não nos é dada uma escapatória às questões últimas. De uma forma ou de outra, elas estão em nós, quer gostemos ou não. A verdade científica é exata, mas é incompleta”.³ A ciência é muito boa para separar as coisas em partes, no entanto, sua análise não é suficiente. Nós precisamos entrelaçar os vários elementos de nosso mundo para que percebamos a “visão mais ampla”.

O grande físico Albert Einstein explorou esse ponto em uma palestra notável dada no Seminário Teológico de Princeton, em 1939, sobre o tema geral de “ciência e religião”. Observando que até muito recentemente se acreditava amplamente que “havia um conflito irreconciliável entre conhecimento e crença”,⁴ Einstein pontuou como essa visão precisava ser confrontada. Ele está certo. Nós sabemos agora que a ideia de que a ciência e a religião estão permanente e necessariamente em conflito entre si é uma invenção do fim do século 19, o que o “Novo Ateísmo”, com Richard Dawkins e outros, converteram em um dogma secular. Essa ideia do “conflito entre ciência e fé” é agora amplamente considerada desacreditada, mesmo sendo constantemente repetida na mídia contemporânea.

A ciência é muito boa para separar as coisas em partes, no entanto, sua análise não é suficiente. Nós precisamos entrelaçar os vários elementos de nosso mundo para que percebamos a “visão mais ampla”.

Einstein, no entanto, tinha mais a dizer sobre esse tema. Ele salientou que, embora as ciências naturais fossem notáveis em sua esfera de competência, elas têm limites. “O método científico não pode nos ensinar nada além de como os fatos se relacionam e são condicionados uns pelos outros”.⁵ Os seres humanos precisam mais do que uma concepção puramente racional do que nossa existência seja capaz de oferecer. Agora, isso não significa que pensar sobre questões fundamentais relacionadas ao sentido e aos valores nos levem a cair em algum tipo de irracionalidade. Segundo Einstein: “O conhecimento objetivo nos fornece instrumentos poderosos para o alcance de certos fins, mas o próprio objetivo último e o anseio por alcançá-lo devem vir de outra fonte”. Deixe-me destacar a última parte da sentença de Einstein: “O próprio objetivo último e o anseio por alcançá-lo devem vir de outra fonte”.⁶

O ponto de Einstein é ecoado por Sir Peter Medawar (1915-87), um biólogo britânico que defendeu o engajamento público da ciência. Vejam o que ele diz: “Apenas os humanos encontram seu caminho por uma luz que ilumina mais que o próprio pedaço de chão no qual estão”.⁷ Medawar está sugerindo que os seres humanos parecem possuir e ser dirigidos por algum desejo inato de ir além da mecânica do engajamento com nosso mundo, buscando por padrões mais profundos de significância e sentido.

Parece haver algo sobre a identidade humana que envolve a busca por algo mais profundo do que o que encontramos no exame do mundo empírico. Não é fácil resumir o grande corpo de literatura de pesquisa sobre esse tópico, mas parece que os seres humanos lidam melhor com nosso mundo complexo e confuso se sentirmos que podemos discernir significado e valor em nossas próprias vidas e na ordem maior das coisas ao nosso redor. No entanto, a ciência pode oferecer apenas uma direção limitada quando refletimos sobre assuntos de sentido e valor.

Inteligibilidade e coerência

Dois temas são de fundamental importância ao pensarmos sobre a interação entre as ciências naturais e teologia cristã: inteligibilidade e coerência. Tanto os cientistas naturais quanto os teólogos cristãos, embora de formas distintas, oferecem um relato coerente e racionalmente motivado do mundo no qual vivemos e pensamos. A significância do primeiro desses dois temas, inteligibilidade, é facilmente apreendida. Nós aspiramos por um referencial que nos ajude a dar sentido àquilo que observamos ao nosso redor e experimentamos dentro de nós.

Eu fui atraído pelo cristianismo porque senti que ele me permitia apreender e me apoiar na inteligibilidade de nosso mundo. E eu continuo a valorizar a conhecida afirmação de C. S. Lewis (que está agora inscrita em sua lápide na Abadia de Westminster): “Eu acredito no cristianismo como acredito que o Sol nasceu, não apenas porque eu o vejo, mas porque por meio dele eu vejo tudo o mais.”

Meu próprio tempo como cientista me impressionou com o quanto a ciência depende de ser capaz de investigar um universo que é racionalmente transparente e imaginativamente belo, capaz de ser representado em formas matemáticas elegantes. Um dos paralelos mais significativos entre as ciências naturais e a teologia cristã é uma convicção fundamental de que o mundo é caracterizado por regularidade e inteligibilidade. Existe algo estranho sobre o próprio mundo e a mente humana que permitem que uma regularidade padronizada dentro da natureza possa ser discernida, representada e entendida.

Esta percepção de ordenação cósmica e inteligibilidade é de um imenso significado, tanto no nível científico quanto no religioso. Como o físico Paul Davies pontua, “na Europa renascentista, a justificativa para o que hoje chamamos de abordagem científica da investigação era a crença em um Deus racional cuja ordem criada podia ser discernida a partir de um estudo cuidadoso da natureza”.⁸ No entanto, como podemos explicar essa regularidade da natureza? Ou a habilidade humana de representá-la tão bem? Por que a natureza é, afinal de contas, inteligível para nós? A capacidade humana para entender nosso mundo parece estar muito além de qualquer coisa que poderia ser razoavelmente considerada uma estratégia evolutiva para conferir vantagem de sobrevivência ou simplesmente um subproduto fortuito do processo evolutivo. 

Essa é uma das razões pelas quais os filósofos da ciência se afastaram do positivismo radical do início do século 20, o qual afirmava que a ciência meramente estabelecia relacionamentos puramente funcionais entre os dados que observamos por meio de nossos sentidos. Essa abordagem ultrapassada sugeria que não havia uma “visão mais ampla”. Na melhor das hipóteses, haveria correlações funcionais entre observações. Qualquer afirmação que fosse além da observação empírica não estava aberta à demonstração e era condenada como sendo não científica. A ciência era entendida simplesmente como catalogar os relacionamentos entre observações, sem fazer nenhuma tentativa de sintetizar sua própria visão da realidade. Essa visão, agora, foi amplamente relegada ao passado. Muitos concordariam com o filósofo da ciência Michael Polanyi quando ele declarou que “o propósito da ciência é descobrir a realidade oculta subjacente aos fatos da natureza”, o que, antes de mais nada, torna o universo inteligível.

Um dos paralelos mais significativos entre as ciências naturais e a teologia cristã é uma convicção fundamental de que o mundo é caracterizado por regularidade e inteligibilidade. Existe algo estranho sobre o próprio mundo e a mente humana que permitem que uma regularidade padronizada dentro da natureza possa ser discernida, representada e entendida.

O teórico quântico e teólogo britânico John Polkinghorne é um bom exemplo de um cientista reflexivo que vê os métodos centrais e pressupostos das ciências naturais como se ajustando naturalmente dentro de uma maneira cristã de pensar. Existe, ele argumenta, “uma congruência entre nossas mentes e o universo, entre a racionalidade experimentada dentro e a racionalidade observada fora”.⁹ Uma metafísica naturalista é incapaz de lançar luz sobre a profunda inteligibilidade do universo, na verdade sendo forçada a tratá-la como um feliz acidente, um acontecimento conveniente que pode simplesmente ser dado como certo e não requer discussão ou explicação. No entanto, o cristianismo oferece “uma visão ampla”, uma forma de enxergar as coisas que afirma uma origem comum tanto para a racionalidade em nossas mentes quanto para a estrutura racional do mundo físico ao nosso redor na racionalidade de Deus. Em outras palavras, o cristianismo oferece um referencial que dá sentido àquilo que de outra forma seria uma feliz coincidência cósmica ou um acidente.

Outros apontam para o interesse crescente no que agora é geralmente denominado fenômenos antrópicos e sugerem que estes também são consonantes com uma forma cristã de pensamento. O vocabulário carregado do “ajuste fino” é amplamente utilizado para expressar a ideia de que o universo parece ter possuído algumas qualidades do momento de sua gênese que foram favoráveis à produção de vida inteligente capaz de refletir sobre as implicações de sua existência. As constantes fundamentais da natureza verificaram-se como finamente ajustadas para garantir valores propícios à vida. A existência de vida baseada em carbono na Terra depende de um delicado equilíbrio de forças e parâmetros físicos e cosmológicos de tal forma que, se qualquer dessas quantidades fosse minimamente alterada, este equilíbrio teria sido destruído e a vida não teria vindo à existência. Como notei em minhas Gifford Lectures de 2009, na Universidade de Aberdeen, isso não prova nada. E outras explicações são certamente possíveis. Mas o mapa mental cristão dá sentido a esse aspecto do mundo natural assim como o faz com muito do empreendimento científico. Ele é tanto empiricamente adequado quanto existencialmente satisfatório.

A busca por coerência

Além disso, existe outro tema que deve ser estabelecido juntamente com essa busca pela inteligibilidade: a busca por coerência. 

O cristianismo oferece uma teia de significados, uma crença profunda na interconexão fundamental das coisas. É como estar no topo de uma montanha e olhar abaixo para um mosaico de vilas, casas, estradas, campos, ribeiros e florestas. Podemos tirar fotos de tudo o que vemos, mas o que realmente precisamos é de um panorama que contenha essas fotos todas juntas; que nos deixe enxergar que existe uma “visão mais ampla” e que cada uma das pequenas visões tenha seu lugar dentro desse todo maior. 

O temor de muitos é que a realidade consista simplesmente em episódios isolados e desconexos, incidentes e observações. Nossa era moderna tem observado a emergência de dúvidas significativas com relação à coerência da realidade, muitas das quais surgem da “nova filosofia” da Revolução Científica. As novas ideias científicas destroem qualquer ideia de uma realidade significativa? Então, como poderia uma visão coerente do mundo ser sustentada?

Os cristãos encontram esse tema abordado eloquentemente no Novo Testamento, o qual fala sobre todas as coisas subsistindo, ou sendo unidas, em Cristo (Colossenses 1:17). Em uma breve discussão sobre A divina comédia de Dante, C. S. Lewis notou sua visão imaginativa poderosa de um cosmos e ordem universal unificada. Para Lewis, obras como A divina comédia refletiam uma “unidade da mais alta ordem”, porque eram capazes de lidar com “a maior diversidade de detalhes subordinados”, gerando um todo coerente. Lewis não está oferecendo um argumento lógico aqui. Seu apelo não é à razão por meio da lógica, mas à imaginação por meio da beleza. Seu interesse é ajudar os cristãos a ouvirem as harmonias do cosmos e reconhecerem que as coisas se encaixam esteticamente, embora ainda tenham pontas lógicas soltas que precisam ser resolvidas. A visão medieval do universo sugerida era “impressionante em sua grandeza, mas satisfatória em sua harmonia”. Essa ênfase medieval na “harmonia” do universo foi adaptada por Lewis para incluir a ressonância das intuições humanas com uma ordem mais profunda das coisas.

A teologia cristã sempre reconheceu que existe uma teia oculta de significado e conexão por trás do mundo efêmero e aparentemente incoerente que experimentamos. A romancista britânica Virginia Woolf (1882-1941) ocasionalmente experimentava instantes curtos e penetrantes de insight — que ela chamou de “momentos de ser” — que pareciam revelar “alguma coisa real por trás das aparências”.¹⁰ Ainda assim, tais momentos de insights eram tão breves que ela nunca pôde capturar a visão da conectividade que eles pareciam insinuar.

A teologia cristã sempre reconheceu que existe uma teia oculta de significado e conexão por trás do mundo efêmero e aparentemente incoerente que experimentamos.

O filósofo Michael Polanyi argumenta que o discernimento da inteligibilidade do universo também se estende a um reconhecimento de sua coerência. Ele escreveu: “Descobrir uma verdadeira coerência na natureza muitas vezes não é apenas discernir algo que, pelo simples fato de ser real, aponta necessariamente para além de si mesmo, mas também supor que descobertas futuras podem provar que a realidade da coisa é muito mais profunda do que podemos hoje imaginar”.¹¹

No entanto, embora Polanyi levasse a ideia de coerência com a maior seriedade, ele deixou bem claro que a coerência por si só não era um critério adequado de verdade. A coerência é “apenas um critério de estabilidade. Pode igualmente estabilizar uma visão errônea ou verdadeira do universo.” Então, como tal coerência pode ser capturada e representada cientificamente? Polanyi apela à imaginação criativa humana como o meio pelo qual essa noção elusiva deve ser apreendida. Ele escreve: “A sanção final do descobrimento repousa na visão de uma coerência que nossa intuição detecta e aceita como real.”¹² Essa não é uma noção quantificável, mas se baseia no discernimento de um padrão, repousando em um julgamento que é mais estético do que lógico em sua natureza.

O cristianismo nos oferece uma visão da realidade que nos ajuda a apreender tanto essa transparência racional quanto sua interconectividade. Ele nos reassegura de uma coerência da realidade que, por mais fragmentado que nosso mundo da experiência possa parecer, existe uma visão ampla, parcialmente entrevista, que mantém as coisas unidas, seus fios conectados juntamente em uma teia de significados, o que de outra forma pareceria incoerente e sem sentido. A ciência desmonta o mundo para que possamos ver como as coisas funcionam. A fé cristã coloca essas coisas novamente juntas para que possamos ver o que elas significam.

Este tema ressoa em todos os escritos poéticos e religiosos da Idade Média. Como seria de esperar, é uma questão importante naquele que talvez seja o maior dos clássicos literários medievais — A divina comédia de Dante, que termina com o poeta vislumbrando a unidade do cosmos, na qual seus aspectos e níveis parecem convergir em um todo único, sua aparente desconexão e desunião reunidos nas profundezas do ser divino.

Então, nós perdemos de vista essa ideia de uma unidade mais profunda da realidade? No passado, já houve um sentido de coerência moral e intelectual da realidade que agora parece ser o que o poeta e romancista alemão Hermann Hesse (1877-1962) descreveu como uma mera coleção de “modas intelectuais” e “valores transitórios do dia”. Outros desenvolvimentos intelectuais também questionaram a ideia de uma realidade coerente. Por exemplo, Nancy Cartwright desenvolveu uma ideia do mundo como uma colcha de retalhos de ordens e racionalidades divergentes, refletindo leis locais ao invés de leis universais da natureza. Onde C. S. Lewis argumentou que “não estamos impondo racionalidade a um universo irracional, mas respondendo a uma racionalidade com a qual o universo sempre foi saturada”,¹³ Cartwright sustenta que impomos uma ordem ou racionalidade única, quando, na realidade, há uma variedade de ordenações, exigindo múltiplas explicações do mundo natural e suas estruturas. Na verdade, talvez não exista ordem alguma. Para Lewis, nós estamos respondendo ao universo como ele de fato é. Para Cartwright, nós corremos o risco de inventarmos nosso próprio universo, desconsiderando aquele ao nosso redor.

Várias abordagens para uma realidade complexa

A fé cristã tem o potencial de enriquecer a narrativa científica, impedindo-a de colapsar naquilo que o poeta britânico John Keats descreve como “um catálogo estúpido de coisas comuns”. O sociólogo alemão Max Weber utiliza o termo “desencantamento” para se referir a uma forma excessivamente intelectual e racionalizada de olhar para a natureza que é limitada ao que pode ser medido e quantificado. Agora, muitos cientistas, ao ler este artigo, pontuarão de forma justa e razoável que esses processos de quantificação e redução são integrais ao método científico. E eu concordo! Só que há muito mais a ser dito. Os métodos de pesquisa desenvolvidos para atender a uma necessidade específica não atendem necessariamente a outras necessidades igualmente importantes.

A ciência é realmente boa em dividir as coisas para que possamos ver como elas funcionam, mas a fé as reúne novamente para que possamos ver o que elas significam. Uma perspectiva religiosa não nega de forma alguma a utilidade científica de tal abordagem racionalizada ou redutiva, embora desafie sua finalidade. Ela simplesmente insiste que um relato mais pleno e satisfatório da realidade pode ser provido e oferecido como uma suplementação da narrativa científica por meio do qual isso pode ser alcançado. 

A filósofa Mary Midgley¹⁴ sugere que o cenário da realidade é tão complexo que precisamos utilizar “múltiplos mapas” se quisermos apreender a profundidade e os detalhes da realidade. Apreciar a textura complexa de nosso mundo da observação e da experiência requer “muitos mapas, muitas janelas”, pois existem “muitas formas e fontes independentes” de conhecimento. E ela sugere que é útil pensar o mundo como um “grande aquário”. Veja o que ela diz:

Não podemos vê-lo como um todo de cima, então, olhamos para ele através de várias pequenas janelas... Podemos eventualmente entender bastante esse habitat se pacientemente juntarmos os dados de diferentes ângulos. Mas se insistirmos que nossa própria janela é a única pela qual vale a pena olhar, não iremos muito longe.

Para Midgley, nenhuma forma única de pensamento é adequada para oferecer por si só um entendimento sobre o significado de nosso mundo. A ciência pode preencher apenas em partes o “quadro geral” de nosso mundo. Ela necessita da suplementação de outros métodos de pesquisa e tradições se quisermos que o quadro total seja desenvolvido. Ela escreve: “Para as questões mais importantes da vida humana, inúmeras caixas de ferramentas conceituais sempre têm de ser utilizadas conjuntamente”. Se nos limitarmos aos métodos das ciências naturais em geral ou a uma ciência específica, como a física em particular, terminamos nos trancafiando em uma “visão bizarramente restritiva de significado”. Insistir que utilizemos apenas métodos, formas e categorias científicas nos restringe a um mundo estreito que exclui significados e valores, não porque eles estejam ausentes, mas porque o método de pesquisa impede que eles sejam vistos. 

Já falei sobre ciência e fé como oferecendo distintas perspectivas sobre a realidade. Deixe-me agora considerar como elas oferecem níveis distintos de explicação. Ciência e religião oferecem respostas em níveis distintos. A melhor imagem da realidade é aquela que tece conjuntamente de forma coerente o maior número de linhas explanatórias. O distinto geólogo Frank Rhodes, que serviu como presidente da Universidade de Cornell de 1977 a 1995, pontuou isso há algum tempo utilizando a analogia de uma chaleira em ebulição. Ele nos pede para considerarmos esta pergunta: “Por que a chaleira está em ebulição?” Rhodes nota que existem dois níveis de explicação que poderiam ser oferecidos. 

Aqui está a explicação científica: um processo de conversão e transferência de energia eleva a temperatura da água até o ponto de ebulição. No entanto, outra resposta pode ser dada em um nível distinto: a chaleira está em ebulição porque eu a coloquei para fazer uma xícara de chá. Então, qual dessas respostas está correta? A primeira resposta significa que a segunda deve estar errada? Ou são, cada uma delas, partes de um quadro mais amplo?

Aqui está a própria resposta de Rhodes:

Estas respostas são diferentes, mas ambas são verdadeiras, ambas são complementares, e não competitivas. Uma resposta é apropriada dentro de um quadro de referência e a outra dentro de outro quadro de referência. Existe um sentido em que cada uma é incompleta sem a outra.¹⁵

O ponto básico de Rhodes é que ambas as respostas podem estar corretas porque estão interessadas em níveis distintos da realidade. Uma responde à questão “Como?” e a outra à questão “Por quê?”.

É instrutivo compararmos este ponto à análise nada perspicaz oferecida por Richard Dawkins. Para Dawkins, existem formas científicas e religiosas de responder à realidade e, por definição, ambas não podem estar certas. Portanto, precisamos escolher o relato científico. Mas você pode ver imediatamente o problema no que Dawkins está propondo. Vamos voltar à analogia da chaleira. Por que a chaleira está em ebulição? Dawkins nos permite apenas uma resposta científica a essa questão. Uma resposta sobre conversão e transferência de energia. Isso em um sentido é verdade, mas é apenas parte da resposta. E precisamos da resposta completa. Precisamos saber que uma das razões pelas quais  a chaleira está em ebulição é meu desejo por uma xícara de chá. Você pode ver que a abordagem de Dawkins é necessariamente deficiente e inadequada. Precisamos de uma imagem mais ampla que teça conjuntamente muitas linhas explanatórias, apenas algumas das quais são científicas.

O ponto é que um único método de pesquisa pode engajar com apenas um nível daquilo que usualmente é uma realidade multifacetada de fato, impedindo que vejamos ou nos engajemos com outros níveis. O neurocientista escocês Donald M. MacKay (1922-1987) afirmou esse ponto utilizando uma útil analogia:  “O método científico foi comparado a uma rede que pode fornecer conhecimento apenas daqueles aspectos da realidade que esta pode pegar. O tipo de descrição que ela pode oferecer ‘passa ao largo’ de verdades espirituais”. Então, o ponto aqui é que o método de pesquisa determina o que pode ser visto, mas também o que não pode ser visto.

O princípio de Midgley de utilizar múltiplos mapas para representar uma realidade complexa levanta alguns desafios e algumas questões significativas, por exemplo: como desenvolver e empregar um referencial interpretativo apropriado para resolver disputas sobre fronteiras? Mas ele também abre possibilidades importantes para o enriquecimento de nossa visão da vida no mundo. Precisamos de uma paleta generosa de cores para representar a complexidade das observações do mundo ao nosso redor e nossa experiência interna. Se utilizarmos um espectro severo e rígido de cores, tais como os tons monótonos e superficiais de cinza propostos pelo cientificismo, limitaríamos o escopo e a profundidade de nossa apreensão do mundo simplesmente porque nos fecharíamos a métodos de pesquisa e tradições que talvez nos possibilitassem enxergar mais longe e de forma mais clara. 

Um método de pesquisa designado para um propósito não funcionará para outros. Ele simplesmente nos torna cegos para tudo o que está fora de sua própria esfera de competência. A ciência não pode detectar significado. Contudo, isso não significa que não existe significado a ser detectado.

Enriquecimento através do entrelaçamento de narrativas

A abordagem que estabeleci neste artigo é mais bem descrita como o “entrelaçamento de narrativas”, permitindo seu enriquecimento mútuo. É razoavelmente compreensível que os seres humanos construam suas identidades utilizando múltiplas narrativas. É assim que funcionamos como animais sociais. Nós entretecemos conjuntamente narrativas religiosas, políticas, sociais e culturais à medida que tentamos fazer sentido do nosso mundo. É natural para nós tecermos esses fios em conjunto, assim como também é natural para nós tentar entender como eles interagem. Qual deles assume prioridade? Como resolvemos tensões ou aparentes contradições entre eles? No entanto, o ponto realmente importante é este: nenhuma história, nenhum ângulo de percepção ou tradição de investigação é adequado para lidar com a existência humana em toda sua riqueza e complexidade. 

Esse entrelaçamento de narrativas é essencial na medida em que tentamos lidar com as “questões últimas” que persistentemente se recusam em nos deixar. Para respondê-las de forma apropriada, precisamos reunir múltiplas abordagens e reconhecer a existência de múltiplos níveis de significado, tais como nosso sentido de propósito na vida, nossos valores, nosso sentido de eficácia individual e uma base para nossa autoestima.

O que estou propondo não é uma homogeneização grosseira de narrativas. Cada uma precisa ser valorizada em seu próprio direito, mas usada em conjunto com outras para apresentar a rica textura e vibração do nosso mundo. Proponho uma narrativa mais rica conectando entendimento e significado, objetivando endereçar o que o filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952) uma vez declarou como sendo “o problema mais profundo da vida moderna” — o qual, de acordo com Dewey, é “nossa falha coletiva e individual de integrar nossos pensamentos sobre o mundo com nossos pensamentos sobre valores e propósito”.

Talvez eu possa oferecer um exemplo para ilustrar o que tenho em mente. Recordo-me vividamente de olhar para o céu noturno nas noites de inverno no final da década de 1960 e de ver o Cinturão de Órion, aquelas três estrelas brilhantes no centro da constelação de Órion. Eu era ateu naqueles dias, sem qualquer interesse em Deus, mas já conhecendo um sentido profundo de encanto com a maravilha da natureza. Conhecia o suficiente sobre astronomia para saber que a luz demorava centenas de anos para viajar até à Terra. Olhar aquelas estrelas era, de fato, viajar de volta no tempo. Eu as estava vendo como elas eram, não como elas são. Achei esse pensamento profundamente perturbador. Por quê? Porque no momento em que a luz que agora estava deixando aquelas estrelas tivesse alcançado a Terra, eu estaria morto. E aquelas estrelas se tornaram para mim símbolos de minha própria mortalidade,  lembretes silenciosos e arrepiantes da brevidade da vida humana. O universo podia ser muito belo, mas também parecia ser totalmente sem sentido.

Esse é um pensamento melancólico, conhecido por muitos cientistas que descreveram eloquentemente seus sentimentos de desespero diante da aparente futilidade e total inutilidade do mundo que estão estudando. Por exemplo, Ursula Goodenough, uma bióloga da Universidade de Washington, recorda ser “sobrepujada pelo terror” sob o pensamento da imensidão do universo e o fato de que um dia este chegaria ao fim. Ela não poderia mais apreciar a beleza das estrelas; elas agora representavam absurdidade e desespero. Vejam o que ela escreveu:

O céu noturno estava arruinado. Eu nunca seria capaz de olhá-lo novamente. Eu chorei em meu travesseiro as lágrimas longas e vagarosas de um desespero adolescente… Um vazio sombrio me dominava sempre que pensava sobre o que realmente estava ocorrendo pelo cosmos ou no nível dos átomos. Então fiz o melhor que pude para não pensar sobre essas coisas.¹⁶

Mas o que teria acontecido se, vendo o céu noturno, eu tivesse colocado um conjunto diferente de óculos teóricos? Um que talvez estivesse mais bem adaptado à complexidade do mundo? E se, para tornar mais explicitamente teológico, o mundo fosse visto através de lentes dadas por Deus? Através de um esquema teísta? Mais tarde, descobri que o céu noturno era bem diferente visto desse ponto. Sim, era um símbolo de imensidão contra a qual eu parecia ser insignificante. Então eu reconheci que, apesar de minha insignificância cósmica, e um tempo de vida breve, eu importava para alguém e algo mais profundo.

Uma das fotografias mais famosas do mundo foi tirada em 1990 pela sonda espacial Voyager em sua missão para estudar nosso sistema solar. Doze anos após seu lançamento, ela alcançou o planeta de Saturno e enviou imagens deste grande planeta. O astrônomo Carl Sagan sugeriu jocosamente que as câmeras da sonda deveriam mostrar de onde ela veio, não simplesmente para onde estava indo. E, após muita negociação, a NASA concordou que a Voyager enviaria uma imagem da Terra vista desde uma distância de cerca de 6 bilhões de quilômetros. Foi assim que chegamos a ver a famosa imagem do planeta Terra como um “ponto azul pálido” posicionado contra a escuridão do espaço, uma “manchinha solitária na grande e envolvente escuridão cósmica”. Como Sagan apontou com razão, essa “imagem distante de nosso minúsculo mundo” coloca tudo em perspectiva. Quão pequenos, quão insignificantes somos, comparados com a vastidão do espaço!

Até hoje, eu continuo olhando para essa imagem da Voyager — aquele minúsculo “ponto azul pálido” que é nosso lar cósmico. E me pego pensando em um dos Salmos que parece antecipar os pensamentos e as emoções que agora experimento observando aquela “manchinha solitária na grande e envolvente escuridão cósmica”: Leiam estas linhas do Salmo 8:

Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos,
a lua e as estrelas que preparaste;
Que é o homem mortal para que te lembres dele?
E o filho do homem, para que o visites?
(Salmos 8:3-4)

O Salmo exalta que os seres humanos são parte da criação de Deus e são, portanto, nomeados e amados pelo Deus de quem todas as coisas vêm. Nossas vidas são tocadas pela transcendência, pelo fato de que Deus escolhe se relacionar com aqueles que Ele criou.

Alguns podem se preocupar com o fato de a narrativa cristã carecer da universalidade e da necessidade racional que o Iluminismo do século 17 considerava essenciais para qualquer teoria significativa da vida. Essa preocupação deve ser reconhecida, mas também deve ser questionada. Não é mais possível supor que haja alguma maneira de ver a vida que seja permanente e universalmente válida, exceto nos domínios específicos da matemática e da lógica. Infelizmente, essa aspiração do Iluminismo deve agora ser reconhecida como uma utópica “visão de lugar nenhum”, que falha em reconhecer o papel crítico dos valores e julgamentos que estão embutidos no contexto social do pensador. Filósofos como Thomas Nagel¹⁷ argumentaram que todo ponto de vista é, na verdade, uma “visão de algum lugar”. Nagel aponta que “não podemos fugir da condição de ver o mundo a partir de nossa inserção particular nele”, por mais que aspiremos a condições de absoluto distanciamento histórico e cultural. A maneira cristã de ver as coisas se encaixa fácil e naturalmente nesse espectro de possíveis “grandes quadros” da realidade como uma explicação motivada e garantida da realidade.

É dentro dessa estrutura que proponho situar nossa discussão sobre a relação entre as ciências naturais e a teologia cristã. Esta não é uma forma circular de raciocínio; trata-se de habitar e refletir a partir de uma forma de ver o mundo que acredito ser confiável e frutífera. Permite e encoraja o entrelaçamento e o enriquecimento mútuo de uma narrativa científica e teológica, permitindo que cada uma preencha partes do quadro geral.

A maneira cristã de ver as coisas se encaixa fácil e naturalmente nesse espectro de possíveis “grandes quadros” da realidade como uma explicação motivada e garantida da realidade.

Explorei essa ideia em vários dos meus livros. Gostaria de recomendar um em particular que foi recentemente traduzido para o português. É uma versão bem acessível das minhas Gifford Lectures de 2009 publicadas com o título Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e como conseguimos que as coisas façam sentido. Ele é fácil de ler e tem sido bem recebido pelos muitos leitores. Se você desfrutou desta palestra, esta obra lhe auxiliará a explorar de forma aprofundada grande parte de seus temas centrais.

Ele toca em alguns dos grandes temas relacionados à ciência e fé tais como nossa busca por uma imagem ampla da vida e como o cristianismo oferece isso, nosso desejo de entender nosso mundo e nossas vidas, os limites da ciência e a racionalidade da fé, especialmente à luz de críticas feitas por ateístas tais como Richard Dawkins.

Por fim, aqui está o ponto que gostaria de destacar ao concluir. Todos nós precisamos de uma narrativa mais ampla para fazermos sentido do mundo e de nossas vidas, naturalmente tecendo de forma conjunta múltiplas narrativas e múltiplos mapas para nos dar a apreensão mais ampla possível sobre a realidade. A realidade é simplesmente complexa demais para ser engajada e habitada utilizando apenas uma única tradição de investigação. Isso, eu sugiro, é o motivo de precisarmos tanto de uma teologia robusta quanto de uma ciência informada. Precisamos da melhor imagem que podemos obter de nós mesmos e de nosso mundo se queremos habitá-lo de forma significativa e autêntica.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Texto apresentado virtualmente por Alister McGrath na 1a. Conferência Nacional de Cristãos na Ciência, evento realizado pela ABC2 em novembro de 2016, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.

1. Rodney Stark e William Sims Bainbridge, The Future of Religion: Secularization, Revival and Cult Formation, 1985, p. 1.

2. José Ortega y Gasset, History as a System and other Essays Toward a Philosophy of History, 1962, p. 13.

3. Ortega y Gasset, idem, p. 15.

4. Albert Einstein, Ideas and Opinions, 1954, p. 41. 

5. Einstein, ibidem

6. Einstein, idem, p. 42.

7. Peter e Jean Medawar, The Life Science: Current Ideas of Biology, 1977, p. 171.

8. Paul Davies, The Mind of God: Science and the Search for Ultimate Meaning, 1992, p. 77.

9. John Polkinghorne, Science and Creation: The Search for Understanding, 2006, p. 29.

10. Virginia Woolf, Moments of Being, 1985, p. 72.

11. Michael Polanyi, Science and Reality, British Journal for the Philosophy of Science, 1967, p. 193.

12. Michael Polanyi, The creative imagination, in The Concept of creativity in science and art, 1981, p. 102.

13. C.S. Lewis, Christian Reflections, 1967, p. 65.

14. Mary Midgley, The Myths We Live By, 2004, pp. 26-8.

15. Frank H. T. Rhodes, Christianity in a Mechanistic Universe, in Christianity in a Mechanistic Universe and Other Essays, 1965, p. 42.

16. Ursula Goodenough, The Sacred Depths of Nature, 1998, p. 10.

17. Thomas Nagel, The View from Nowhere, 1986, pp. 67-89.

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