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ARTIGO

Como o cansaço afeta a nossa lente cristã

Mariana Albuquerque|

11/08/2023

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Mariana Albuquerque

Jornalista e redatora. Trabalha com comunicação em mídias sociais e internet desde 2012. Coordenadora de projetos da Christianity Today em Português e Gerente de projetos da iniciativa Global da Christianity Today.

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Como citar

ALBUQUERQUE, Mariana. Como o cansaço afeta a nossa lente cristã. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Era uma tarde de quinta-feira, depois das 14h, quando eu simplesmente não conseguia parar de chorar durante uma conversa com a minha chefe. O choro era um pedido de ajuda, não para ela, mas para mim mesma.

Em meio à ansiedade de estar longe da minha família, tendo de lidar com nova rotina, com as demandas intermináveis e com a privação de uma vida em comunidade — em parte por conta do isolamento social, em parte pelo fato de eu estar morando em uma cidade longe da minha cidade natal —, meu bem-estar físico e mental foi afetado ao máximo.

No meio da conversa, os meus olhos foram enchendo de lágrimas. Consegui controlar o choro, mas, assim que a reunião terminou, as lágrimas voltaram a cair. Foi ali que eu percebi que algo estava errado.

O que é cansaço?

Pode parecer uma pergunta besta, mas não é. É comum que o nosso repertório emocional seja algo limitado. Sentimos muitas emoções o tempo todo, mas nomeamos poucas delas. Após uma noite de sono ruim, afirmamos que estamos cansados. Após uma pandemia, afirmamos que estamos cansados. As duas coisas não são exatamente a mesma coisa e, ainda assim, recebem o mesmo nome.

De acordo com o dicionário Aurélio, cansaço é:

s.m. Fadiga, canseira ou fraqueza (física ou mental) causada pelo excesso de exercício, de trabalho ou por doença; fadiga: cansaço físico, mental.

No sentido figurado, é a condição de quem está aborrecido, entediado; aborrecimento.

Como o dicionário afirma, o cansaço vai além do âmbito físico e está fortemente relacionado com aquilo que fazemos. Além disso, essa definição também faz uma ligação importante entre o cansaço, o tédio e o aborrecimento. Isto é, ele tem forte relação com aquilo que nos cerca e também influencia nossas respostas àquilo que nos acontece.

As mudanças impostas pela pandemia, como o isolamento social, a privação das oportunidades de lazer e a modificação da rotina, intensificaram os índices de estresse, ansiedade e depressão.¹ Como se não bastasse uma pandemia de nível global, a humanidade já vinha experimentando uma série de modificações provocadas pela internet e  pelas redes sociais.

Adaptar-se a novas realidades requer de nós muita energia. Enquanto estávamos nos adaptando a uma vida vivida on e offline, fomos surpreendidos por uma pandemia que exigiu de nós um recálculo de rota. De uma hora para a outra, sobreviver era nosso objetivo principal. Tudo isso de maneira online, isto é, num mundo em que a produção e o desempenho ocupam o centro do palco. Não estávamos só tentando nos manter vivos, estávamos produzindo.

Em Sociedade do cansaço, o filósofo Byung-Chul Han afirma algo que facilmente poderia ter sido dito por um cristão: “A síndrome do burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida”.² Caracterizada por sua ligação com o trabalho e pela exaustão extrema, a síndrome do burnout pode ser aplicada ao cansaço, ainda que não seja o meu foco aqui. Se o burnout é a alma consumida, o cansaço é o consumo da alma aos poucos.

Se o burnout é a alma consumida, o cansaço é o consumo da alma aos poucos.

Cansada de quê?

Em uma sociedade que nunca desliga, em que o desempenho nos define, em que todos são produtores de algum tipo de conteúdo e em que o sucesso quase sempre está relacionado à exaustão, talvez seja mais fácil responder o que não nos cansa.

Nessa sociedade, somos agressores e vítimas ao mesmo tempo.³ Estabelecemos as regras sabendo que não conseguiremos cumpri-las. Eu sei que trabalhar das 8h às 22h não me fará bem, mas mesmo assim o faço, porque essa foi a regra estabelecida — por mim mesma — para o meu sucesso e, na era das telas, não há sucesso sem cansaço. Para dizer que sou bem-sucedida, posto uma foto às 22h30 mostrando que só ali o meu dia de trabalho terminou. Eu não parei para ver o pôr do sol, também não consegui fazer um bom alongamento para acordar o meu corpo, meu café da manhã já foi em frente ao notebook, mas o sucesso está garantido porque estou cansada.

Existe um ponto importante quando nos perguntamos: do que você está cansado? A resposta provavelmente não terá apenas um item. A multitarefa sempre existiu, mas estabeleceu-se com as abas. Se você está lendo este artigo no computador ou notebook, é muito provável que você tenha várias abas abertas. Muitas vezes, nossa produtividade está diretamente ligada a quantas coisas podemos fazer ao mesmo tempo. Um dia produtivo é um dia em que nosso checklist foi completado.

Muitas vezes, nossa produtividade está diretamente ligada a quantas coisas podemos fazer ao mesmo tempo. Um dia produtivo é um dia em que nosso checklist foi completado.

Do que estamos cansados? A lista é infinita e ela extrapola o nosso ambiente de trabalho.

Como igreja, por exemplo, talvez precisemos parar de enxergar o cansaço como um problema individual. Quando um membro adoece, todo o corpo adoece junto. Somos o corpo de Cristo imerso em uma sociedade cansada e estamos reproduzindo esse mesmo ambiente. Nossa agenda de congressos e eventos está sempre cheia, falamos pouco sobre a importância do sabático e, aos poucos, a teologia da prosperidade vai ganhando ares de teologia da produtividade.

Deveríamos poder encontrar um lugar de descanso em nossas igrejas. Elas deveriam ser as primeiras a nos mandar desacelerar. Em uma geração que se recusa a parar e que coloca o seu valor naquilo que tem e faz, é essencial reforçar que no sétimo dia Deus descansou. O Senhor de todo o universo descansou. Enquanto isso, nos perdemos em nossa produção de conteúdo e em nossos eventos eclesiásticos. Talvez estejamos contribuindo para essa epidemia.

Deveríamos poder encontrar um lugar de descanso em nossas igrejas. Elas deveriam ser as primeiras a nos mandar desacelerar. Em uma geração que se recusa a parar e que coloca o seu valor naquilo que tem e faz, é essencial reforçar que no sétimo dia Deus descansou.

Quando saber que estou cansado?

Muitos de nós estão tão cansados que simplesmente não conseguem mais identificar o problema. O descanso não é uma fuga. O cansaço é. Do que estamos fugindo?

“Elias teve medo e fugiu para salvar a vida.” (1Reis 19.3, NVI)

Elias fugiu para salvar a sua vida. Durante a sua fuga, ele se deitou debaixo de uma árvore e dormiu. A fuga de Elias era um sinal do seu extremo cansaço. 

Elias era um profeta perseguido que pregava o que muitos não queriam ouvir. Todos os dias, enquanto dava murros em ponta de faca, ele era perseguido por seus inimigos. Talvez você e eu jamais experimentaremos esse nível de exaustão. Ainda assim, temos nossos próprios desafios, medos e fantasmas, e o descanso pode ser uma arma contra todos eles.

Elias provavelmente tinha indícios do seu estado físico e emocional, mas os ignorou. Nós fazemos o mesmo. Ao ignorarmos os sinais, eles se tornam uma grande bola de neve e acabam mudando a forma como enxergamos o mundo. Aqui proponho um desafio. Em meio a situações que te incomodam ou aborrecem, pergunte-se: “quem está agindo neste momento, eu ou o cansaço?”. 

No início de 2023 passei a me perguntar a mesma coisa e me comprometi em não mais ser discípula do cansaço. Inúmeras vezes questiono-me em meio a momentos de estresse: “sou eu ou o cansaço?”. Na maioria dos casos, dou meia volta e recalculo os meus passos.

Quando esqueço de me questionar, sou tomada pelo medo, pela fuga ou pela raiva. O medo nos invade quando não mais temos as certezas que antes tínhamos, quando retiramos o nosso olhar de Cristo e deixamos que as lutas tomem conta do nosso horizonte. A fuga entra em cena quando não queremos lidar com o problema ou quando parece que não conseguimos lidar com aquilo que nos é proposto pela vida. A raiva vem porque acreditamos que não merecemos viver aquilo que estamos vivendo. Tudo isso é o cansaço falando.

Olhe para Elias. Olhe para você. Agora, olhe para Cristo.

O cansaço afeta a nossa lente cristã porque simplesmente atua como uma nuvem de fumaça. Não deixamos de ver as cores impostas por Cristo à nossa realidade, mas não mais as vemos completamente. Existem momentos em que essa fumaça se parece mais com uma neblina indo embora pela manhã, em outras ocasiões é como a fumaça de um prédio em chamas que envolve tudo o que está ao seu redor, do qual é impossível escapar sem ajuda. 

Envolto pela fumaça que o cercava, Elias para embaixo de uma árvore e dorme.

Levante-se e coma

Deus envia o seu anjo, que faz um pedido inusitado para Elias: “Levante-se e coma” (1Reis 19.5, NVI). O anjo poderia ter dito qualquer outra coisa para Elias, mas imagino que, ao escutar isso, o profeta se sentiu abraçado e amado. Deus conhecia Elias.

Não, Deus não pediu para que o profeta lesse as Escrituras e se lembrasse da grandiosidade do seu Senhor ou que ele se ajoelhasse e fizesse uma oração fervorosa. Para descansar, Elias dormiu, levantou e comeu. 

Descanso é aquilo que recentraliza Cristo em nossas vidas.

Muitas vezes, envoltos por nossa religiosidade, encaramos o descanso como algo que precisa expressar ativamente a nossa agenda religiosa descorporificada. Ignoramos completamente o fato de que não somos máquinas mergulhadas em água benta. Nós somos corpos que possuem necessidades espirituais, físicas e psicológicas. Nosso descanso é ativo (levante-se) e corporificado (coma).

Ignoramos completamente o fato de que não somos máquinas mergulhadas em água benta. Nós somos corpos que possuem necessidades espirituais, físicas e psicológicas. Nosso descanso é ativo (levante-se) e corporificado (coma).

Com o sono em dia e alimentado, Elias teve uma boa conversa com Deus. O Senhor não podia falar aquilo que gostaria com alguém que, cansado, não conseguia mais enxergar o que estava bem na sua frente. Que Ele nos ajude a enxergar o que está diante dos nossos olhos: na sociedade do cansaço, o descanso é marca essencial do discípulo de Cristo.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Organização Pan-Americana de Saúde, Pandemia de COVID-19 desencadeia aumento de 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo, 2022.

2. Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço, 2015, p. 15.

3. Ibidem, 2015.

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