QUEM SOMOS

ARTIGO

Ecossistemas como modelo de unidade

Ester Wolff Loitzenbauer|

01/07/2023

Screenshot 2023-06-30 at 13.12.20

Ester Wolff Loitzenbauer

Oceanógrafa e professora de Ciências Biológicas na UERGS/RS. Sua área de pesquisa envolve qualidade de água, variabilidade climática e gestão de recursos hídricos na zona costeira.

Baixe e compartilhe:

Como citar

LOITZENBAUER, Ester Wolff. Ecossistemas como modelo de unidade. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Com minha profissão, aprendi a importância da natureza para o ser humano e, também, a admirá-la em sua beleza e complexidade. Contudo, foi através da minha fé, que tive outra visão, ainda mais profunda, com relação à natureza, que me leva a me conectar com o meu Criador.

Em um ambiente cheio, com crianças, afazeres domésticos e trabalho secular, sair para uma praça perto de casa é o meu refúgio com o Pai Celeste. Nesse sentido, meditar na palavra e conversar com Deus se torna muito mais orgânico em meio a árvores, passarinhos e luz do sol matutino. Em meio a tantos desses momentos e em outros em que consigo me afastar da cidade para longas trilhas em meio a natureza, a meditação e o diálogo com o Criador me levam ao chamado à unidade.

Esse artigo não tem como objetivo um aprofundamento na teologia, mas apresentar alguns exemplos de como podemos conhecer o Criador pela sua obra, assim como aprendemos sobre Burle Marx ao apreciar seus jardins ou sobre Oscar Niemeyer ao observar suas construções. E, especificamente, como tenho aprendido sobre unidade no corpo de Cristo ao observar a criação e os processos ecológicos envolvidos. As palavras aqui colocadas não são de uma teóloga, mas de uma devota a Cristo, que medita nas Escrituras e procura encontrar propósito na integração da minha fé com a área ambiental onde atuo, além de ser completamente fascinada pela criação.

Esse artigo não tem como objetivo um aprofundamento na teologia, mas apresentar alguns exemplos de como podemos conhecer o Criador pela sua obra, assim como aprendemos sobre Burle Marx ao apreciar seus jardins ou sobre Oscar Niemeyer ao observar suas construções.

A visão da natureza como inspiração e conexão com o Criador não é recente. Desde Gênesis, há menção da natureza não apenas com propósitos práticos, mas atuando como sinais das verdades eternas 1: “[…] Sirvam [os luminares] de sinais para marcar as estações, dias e anos,” (Gênesis 1:14, NVI). Nos salmos, os autores já faziam diversas referências à criação: “Os céus declaram a glória de Deus; e o firmamento a obra de suas mãos.” (Salmo 19:1, NVI) ou “Grandes são as obras do Senhor; nelas meditam todos os que as apreciam.” (Salmo 111:2, NVI). No Novo Testamento, a carta de Paulo aos Romanos aponta para a criação como meio pelo qual Deus se comunica: “Desde a criação do mundo, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendido por meio das coisas criadas [(…]) (Romanos 1:20, NVI).

Com base principalmente nesse versículo de Romanos, inúmeros pais da igreja nos primeiros séculos consideravam a natureza um outro livro canônico, como Atanásio (296-373), João Crisóstomo (349-407), Evágrio Pôntico (345-399), entre outros. Em essência, assim como a leitura bíblica é fonte de transformação, a própria mente humana é reescrita em decorrência da sua contemplação do mundo.¹

E assim surge o conceito dos dois livros de Deus: o livro das palavras de Deus, a Bíblia, onde Deus se revela e fala ao homem de sua obra redentora; e o livro das obras de Deus, a criação como realização de um arquiteto, que a idealizou e que reflete os atributos do autor. Nesse contexto, vou falar de dois exemplos de coisas criadas que apontam para a unidade, um atributo de Deus, para o qual Ele também nos chama.

O primeiro exemplo que quero abordar está no oceano, que é um ambiente rico e belo. Sua parte mais acessível está na costa, para onde frequentemente as pessoas se dirigem durante o verão ou férias. Contudo, um ambiente pouco conhecido é o meio dos oceanos, longe da costa. Esses ambientes, que ocupam 65% da superfície terrestre,² e em termos de produtividade biológica são considerados os desertos terrestres, pois estão longe das fontes de nutrientes dos rios e das ressurgências (regiões onde as águas do fundo chegam à superfície, cheias de nutrientes). Contudo, sua extensa área corresponde a cerca de 40% da produção primária líquida da Terra, sendo o ambiente de maior produtividade total.

E assim surge o conceito dos dois livros de Deus: o livro das palavras de Deus, a Bíblia, onde Deus se revela e fala ao homem de sua obra redentora; e o livro das obras de Deus, a criação como realização de um arquiteto, que a idealizou e que reflete os atributos do autor.

A profundidade média do oceanos mundiais é de 3.796 m, podendo chegar a aproximadamente 11.000 m no ponto mais profundo;³ assim, não temos espaço aqui para fundos ricos, como os de recifes e corais, por isso grande parte do ciclo da vida ocorre próximo à superfície, onde há penetração de luz. Nesse ambiente, as cianobactérias são a base da cadeia trófica e responsáveis por 80% da produção primária.⁴ Por serem seres minúsculos (da ordem de 0,2 μm, sendo que 1 μm = 1 mm dividido por 1000), eles passaram despercebidos pelos cientistas até 1980. Todavia, são capazes de fazer fotossíntese mesmo com baixos nutrientes, conseguindo retirar nitrogênio do ar, fornecendo alimento para espécies de microanimais chamados de zooplâncton, os quais, por sua vez, fornecem alimento a pequenos peixes, e assim por diante. Nesse ambiente, também há a presença de baleias, que eventualmente passam nadando. Esses enormes animais, os maiores do mundo, ao fazerem seus mergulhos para respirar na superfície, “quebram” as camadas de águas quentes que impedem a mistura de águas de camadas inferiores, trazendo, assim, os nutrientes que estavam nas camadas mais profundas à superfície, onde está o fitoplâncton, que necessita de luz. As baleias se alimentam nas zonas polares no verão e distribuem esse alimento por meio das fezes por muitos quilômetros de distância, no oceano aberto.⁵ Então, apenas o nadar e o defecar das baleias já contribui para a geração de alimento para outros seres e para produção de oxigênio para o ar!

O segundo exemplo são as florestas. Em nível macro, comparo as florestas nativas da região onde moro, a Mata Atlântica, com plantações de pinus. Plantações, sim, pois florestas são ecossistemas complexos, algo que uma mera plantação de árvores de mesmas espécies não é. Nesse caso, o que temos é a monocultura de árvores, que têm  altura semelhante e ficam bem próximas umas às outras, não dando espaço para outros seres se desenvolverem. Por outro lado, temos  a Mata Atlântica com sua riqueza; esse ecossistema, assim como as plantações, também parece uma coisa só, mas forma uma unidade da diversidade de espécies; em outras palavras, temos diversos tipos de árvores, com folhas diversas, trepadeiras, bromélias e orquídeas nos troncos, musgos — só para citar alguns dos organismos visíveis. Em suma, temos uma (Mata Atlântica) gerando vida e produzindo água e outra (monocultura) limitando a vida e consumindo água.

Quando diminuímos a escala da observação, a unidade na diversidade se destaca ainda mais nas florestas. As árvores se comunicam umas com as outras dependendo de fungos presentes no solo, como se fossem os nervos de um animal, transmitindo, assim, informações de diferentes partes do corpo. Sem eles, não é possível a comunicação, conforme observado em estudos feitos comparando florestas temperadas com plantações de árvores, ambas com as mesmas espécies. Além da comunicação, os fungos podem favorecer as árvores, multiplicando a superfície das suas raízes e permitindo maior captação de água e nutrientes, bem como auxiliando a troca de nutrientes entre árvores de mesma espécie, permitindo, assim, que as árvores mais fortes distribuam alimento para as mais fracas.

Assim, cada espécie tem seu papel no local onde Deus a colocou. A unidade do ecossistema é mantida quando as espécies são mantidas no local a ele destinado. As cianobactérias também podem ser um exemplo de quebra da unidade, uma vez que, em ambientes com influência de esgotos, elas se proliferam massivamente e acabam se tornando um problema de saúde pública, já que produzem poderosas toxinas. Mas, no meio dos oceanos, elas são as principais responsáveis pela vida e pelo oxigênio que respiramos. As árvores precisam estar em uma floresta, com a presença de fungos, para que possam se comunicar e trocar nutrientes com suas irmãs. Do mesmo modo, cada pessoa, imagem do Criador, também tem o local para o qual foram criadas, o local onde vão ser relevantes e onde darão frutos de maneira orgânica e natural. Cada pessoa tem o seu papel, mas depende de outras pessoas também, como num ecossistema. Muitos querem ser a parte que aparece mais, como as baleias no oceano, mas a grande maioria será como as cianobactérias, ou seja, não terão posição de destaque, mas nem por isso terão um papel irrelevante. Pelo contrário. Somos chamados a fazer o melhor e glorificar a Deus no nosso trabalho e na nossa família, e destaco aqui a família porque essa é a base da sociedade e responsável por formar pessoas íntegras e discípulas de Cristo.

Assim, cada espécie tem seu papel no local onde Deus a colocou. A unidade do ecossistema é mantida quando as espécies são mantidas no local a ele destinado.

Na nossa sociedade, algumas pessoas focam quase exclusivamente na diversidade, no fato de as pessoas serem diferentes, e não enxergam pontos em comum. Outras, contudo, querem forçar uma completa uniformidade de pensamento, governo e expressão.⁷ Mas a unidade que Cristo nos apresenta está exemplificada nos ecossistemas, onde cada um é diferente, mas todos estão conectados e um depende do outro.

O evangelho fala da unidade como testemunho: “que eles sejam levados à plena unidade, para que o mundo saiba que tu me enviaste […]”  (João 17:23, NVI) A natureza complementa a palavra de Deus, inspirando a plena unidade do corpo de Cristo em seres totalmente diferentes, mas unidos pela vida, Cristo. Esse movimento é contrário ao rumo da sociedade em que estamos inseridos, cada vez mais egocêntrica.

Observando o perfil de cada pessoa e seu respectivo relacionamento com Deus, passamos a entender que cada uma é diferente. Ou seja, há membros carismáticos, outros reformados, diferentes tipos de louvores e adoração, alguns mais reflexivos e outros impulsivos, uns teóricos, outros mais práticos, uns com temperamento sanguíneos e outros fleumáticos. Mas todos são criados por Deus e estão unidos para o propósito que só ele tem para cada um. Desse modo, cabe a nós buscar nele o nosso papel, pois, assim como ele dá a cada ser, animal, vegetal ou fungo na natureza um propósito específico e conectado aos demais, porventura não o dará também a nós, homens de pequena fé?

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Peter Harrison, Capítulo 3: Sinais e Causas, Territórios da Ciência e da Religião, 2017.

2. Michael L. Cain; William D. Bowman; Sally D. Hacker, Ecologia, 2011.

3. Tom Garrison, Capítulo 4: Ocean Basins, Oceanography, An Invitation to Marine Science, 2010.

4. Tom Garrison, Capitulo 14: Plankton, Algae and Plants, Oceanography, An Invitation to Marine Science, 2010.

5. Joe Roman [et al], Whales as marine ecosystems engineers, Frontiers in Ecology and the Environment, 2014.

6. Peter Wohlleben, A vida secreta das árvores, 2017.

7. Collin Hansen (org.), Devocional: Catecismo da Nova Cidade, 2018.

Outros artigos [nº 2]

Screenshot 2023-12-15 at 11.16
Quem é o ser humano?
20110318182437!V&A_-_Raphael,_St_Paul_Preaching_in_Athens_(1515) (1)
Screenshot 2023-12-08 at 09.25
pexels-cottonbro-studio-6153354
compare-fibre-tiSE_paTt0A-unsplash
James Webb Space Telescope
42646461524_5b16709ef7_k
Webb's_First_Deep_Field
Screenshot 2023-11-03 at 16.36
Cibernética e transumanismo
alexander-andrews-fsH1KjbdjE8-unsplash
O que é vida?

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!