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ARTIGO

Entre galopes e virtudes

Uma ética cristã para os debates entre fé e ciência

Tiago Pereira|

04/08/2023

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Tiago Pereira

Biólogo, mestre e doutor em Botânica pela Universidade Federal de Viçosa. Atua como coordenador dos Grupos de Estudo da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). É casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.

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Como citar

PEREIRA, Tiago. Entre galopes e virtudes: uma ética cristã para os debates entre fé e ciência. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Você já se pegou naquela situação de assistir a alguém respondendo a uma pergunta extremamente complexa em poucos segundos, passando para o público a falsa impressão de que tudo a respeito daquele assunto já está resolvido? Isso acontece com frequência nos meios de comunicação. Os minutos para uma entrevista ao vivo sempre são insuficientes, e o espaço para uma matéria no jornal sempre é menor do que deveria. Com o tempo e o espaço sendo recursos tão limitados, a boa comunicação se torna artigo raro, e um bom comunicador é aquele que consegue usar os recursos à sua disposição com destreza e sabedoria, transmitindo informações da forma mais clara e correta possível.

Talvez este seja, afinal, o grande desafio: oferecer ao público, seja qual for, uma comunicação responsável e, ao mesmo tempo, clara e precisa, reflexo de muita dedicação, estudo e compromisso com a verdade. Contudo, se você já se identificou com a situação descrita anteriormente, ou se já viu alguém sendo “atropelado” durante um debate público, certamente terá percebido que, na maioria dos casos, clareza e precisão costumam ser itens raros nas comunicações em massa.

Se os espaços que a mídia reserva para a comunicação científica geralmente são limitados, as questões que envolvem interações entre ciência e religião recebem ainda menos espaço. Além disso, esse pouco espaço disponível é preenchido com a velha narrativa do conflito, que acaba sendo elencada como a única abordagem que pode interessar e atrair o público, a despeito de uma gama de possibilidades de interações possíveis — da tipologia quádrupla de Ian Barbour a outras propostas que abordam maiores complexidades.¹

Essa ideia de um conflito inevitável e até mesmo necessário entre fé e ciência vem sendo alimentada há mais de um século no imaginário popular, e é curioso perceber que essa narrativa foi igualmente recebida e propagandeada tanto por meios seculares quanto religiosos. No entanto, se é verdade que o conflito é apenas um modelo entre outros, é preciso admitir que, ironicamente, ambos os lados concordaram com a mesma falácia. Ao longo dos anos, temos visto dezenas de matérias jornalísticas, artigos e livros promoverem uma suposta guerra entre ciência e religião, reforçada por debates públicos intermináveis que infelizmente costumam deixar feridos em ambos os lados.

A verdade é que as polêmicas vendem bem, e debates sobre temas controversos podem gerar espetáculos no mínimo interessantes. Não são raros, por exemplo, os debates entre cristãos e ateus, especialmente aqueles que envolvem argumentos em favor ou não da razoabilidade da fé cristã. Alguns debates, aliás, se tornaram clássicos da apologética cristã contemporânea, envolvendo nomes como William Lane Craig e John Lennox do lado dos cristãos, e Richard Dawkins, Peter Atkins e Christopher Hitchens representando os ateus.

No campo dos estudos entre ciência e religião, é possível identificar uma longa história de debates que cumpriram um importante papel na propagação do desnecessário conflito entre fé e ciência na mente do grande público. Podemos traçar uma rota que vai do histórico debate entre o cientista Thomas Huxley, conhecido como o “buldogue de Darwin”, e o bispo anglicano Samuel Wilberforce, realizado em 1860, apenas alguns meses após a publicação do livro A origem das espécies, até o famoso debate de 2009 sobre ciência e religião entre o filósofo ateu Daniel Dennett e o filósofo cristão Alvin Plantinga. Este último rendeu o excelente livro “Ciência e religião – são compatíveis?”,² publicado em português na série Filosofia e Fé Cristã, realizada com o apoio da Editora Ultimato e da ABC². No meio dessas controvérsias, é possível encontrar também o emblemático debate de 2014 entre o ateu Bill Nye e o criacionista Ken Ham, que bateu a impressionante marca de 10 milhões de visualizações no YouTube.

A verdade é que as polêmicas vendem bem, e debates sobre temas controversos podem gerar espetáculos no mínimo interessantes.

Os debates são propostas argumentativas que exigem muito de seus interlocutores. Se a tarefa do bom comunicador, como já destacamos no início deste texto, é conciliar clareza e precisão, o bom debatedor precisará agregar ainda a agilidade de pensamento e grande habilidade oratória, administrando o tempo limitado e um espaço que não é o mesmo de uma sala de aula. Quem já assistiu a debates talvez tenha percebido que, em muitos casos, alguns dos debatedores utilizam uma estratégia retórica muito peculiar. Quando recebem a palavra, oferecem uma avalanche de argumentos e referências, abordando tantos pontos quanto possíveis, gerando a sensação de que será impossível tratar cada uma das questões levantadas ali. Essa estratégia, por exemplo, pode ser claramente observada em debates eleitorais. A técnica é tão conhecida que tem nome próprio: é o galope de Gish (Gish gallop), batizado a partir do nome de Duane Gish (1921-2013), um famoso criacionista que se destacou aplicando essa técnica em mais de 300 debates realizados contra defensores da teoria da evolução. Duane Gish era bioquímico e foi membro-fundador do Institute for Creation Research (ICR, em português, Instituto de Pesquisa da Criação) junto com o também conhecido Henry Morris. Nos anos 2000, o ICR ofereceu uma série de vídeos intitulados “Vencendo o debate da Criação”, baseados em um workshop de Gish sobre “Como vencer debates contra evolucionistas”. Nessa época, a técnica já era amplamente conhecida, e Gish era reconhecido não apenas por atropelar seus “oponentes” com seu galope, mas por ser também um debatedor carismático, gentil e que entretia as plateias.

O galope de Gish pode parecer difícil de vencer, mas é fácil de detectar. Basicamente, a técnica consiste em soterrar — ou atropelar, para fazer jus ao nome — o oponente com argumentos e mudar de tópico rapidamente durante o processo, tornando impossível que suas alegações sejam respondidas de forma satisfatória, especialmente dentro das limitações do formato de um debate. O método parece tentar convencer pelo excesso e vencer pelo cansaço. Geralmente, uma fala que é proferida em poucos segundos pode trazer informações que envolvem áreas de estudo tão díspares ou conceitos científicos tão complexos que uma resposta satisfatória gastaria horas para ser elaborada. Nesse processo, conceitos que exigem todo um curso de graduação ou pós-graduação para serem plenamente compreendidos parecem ser “refutados” em poucos segundos, como se ninguém tivesse pensado naquilo antes ou como se ninguém tivesse visto que aquela ideia tinha um furo tão óbvio. O conhecimento científico, afinal, precisa ser consumido com moderação, nutrido pelas melhores fontes e mastigado lentamente, a fim de se evitar uma indigestão.

O primeiro grande problema do galope de Gish pode ser identificado como o excesso, conforme relatado anteriormente — e concedo que o excesso não seja necessariamente um problema per se, embora o exagero muitas vezes possa causar indigestão. Todavia, há um segundo problema que é mais sério e potencialmente danoso. Infelizmente, é comum observar que, em meio à enxurrada de argumentos e referências apresentada em um debate, nem sempre se leva em consideração a precisão das informações, a qualidade das fontes citadas e a solidez dos argumentos oferecidos. Para o público leigo que recebe uma profusão de informações, não há tempo hábil para julgar tudo que se ouve. E para um interlocutor que possui autoridade em determinada área de estudo, lidar com uma avalanche de imprecisões e perceber que não há tempo suficiente para corrigi-las pode se tornar, enfim, uma atividade extremamente desgastante e infrutífera.

O conhecimento científico, afinal, precisa ser consumido com moderação, nutrido pelas melhores fontes e mastigado lentamente, a fim de se evitar uma indigestão.

A dificuldade de responder de forma satisfatória e refutar informações falsas ou equivocadas também tem nome e endereço: é a Lei de Brandolini.³ Segundo esse princípio, a quantidade de energia e tempo necessários para corrigir informações falsas é muito maior que a rapidez e a facilidade com que elas podem ser criadas e disseminadas. É muito mais difícil refutar maus argumentos do que propagá-los. Durante a pandemia de covid-19, testemunhamos uma verdadeira “infodemia” que frequentemente comprovou esse ponto. Pequenos vídeos viralizaram pelas redes sociais, trazendo desinformações que exigiam muita energia para serem verificadas em fontes confiáveis, exigindo também um tempo considerável para a elaboração de respostas detalhadas.

O galope de Gish, como já mencionamos, é capaz de superar seus oponentes usando uma técnica retórica semelhante à lei de Brandolini, submetendo seus interlocutores a um enorme gasto de energia em um processo que resulta em tensão, irritação e exaustão. E aqui reside o terceiro e último problema que gostaríamos de abordar: o que realmente significa vencer um debate? Ou, ainda: é necessário “vencer” um debate? Os debatedores deveriam ser vistos como adversários a serem derrotados?

Os debates têm raízes tão antigas quanto o discurso humano, e interações argumentativas acontecem o tempo todo nas nossas conversas informais sobre futebol, política, cultura, a vida, o universo e tudo mais. Um debate formal, por sua vez, buscará estabelecer um formato e limites tais que seus interlocutores poderão apresentar seus argumentos de forma disciplinada, com consistência lógica, habilidade oratória e precisão factual, como já mencionamos anteriormente. Toda essa estrutura argumentativa, no entanto, deverá estar posta a serviço de bens mais elevados: o conhecimento compartilhado e o respeito ao interlocutor. 

o que realmente significa vencer um debate? Ou, ainda: é necessário “vencer” um debate? Os debatedores deveriam ser vistos como adversários a serem derrotados?

Um debate pode servir para esclarecer e aprofundar questões complexas pertinentes a diversas áreas, para verificar a validade e a força de argumentos e discutir pontos controversos. Em nenhum desses casos, entretanto, existe a prerrogativa da disputa, como se o debate fosse um jogo que necessariamente envolvesse ganhadores e perdedores. Muitos debates sequer chegam a uma conclusão, enquanto outros podem atingir algum nível de consenso ou até mesmo de convencimento. Ainda assim, de alguma forma, a ideia de entrar em um debate para vencê-lo se tornou senso comum, e técnicas como o galope de Gish acabaram se desenvolvendo em detrimento dos benefícios genuínos de um verdadeiro debate de ideias.

Mas se não vamos entrar em um debate para buscar a vitória, como devemos agir quando nos vermos nessa situação? Eu proponho que a ética das virtudes pode nos oferecer valiosas orientações. As virtudes intelectuais há muito são conhecidas: perseverança, mente aberta, empatia, integridade, coragem intelectual, amor à verdade, humildade intelectual, honestidade, curiosidade, imparcialidade e autonomia. Todas essas virtudes contribuem para a boa formação de um caráter intelectual sólido e podem nos ajudar a estabelecer uma identidade científica que permeie todas as atividades que desenvolvermos nesse campo, incluindo nosso trabalho individual e comunitário e a nossa vida pública. 

Visto que as virtudes intelectuais podem ser consideradas como traços de caráter, compreendemos que o cultivo diário delas é fundamental para o desenvolvimento de boas práticas. Enquanto o caráter orienta nossa conduta, os hábitos que adquirimos ao longo do tempo moldam nosso caráter, estabelecendo um ciclo virtuoso que fortalece nossa identidade intelectual.

Ao observar a lista de virtudes apresentada anteriormente, é possível perceber que muitas se aplicam ao âmbito individual. Virtudes como perseverança, mente aberta e curiosidade, entre outras, estão intrinsecamente relacionadas com as características necessárias para desenvolver um trabalho científico de excelência, independentemente das circunstâncias. Por outro lado, existem virtudes que se estendem à esfera comunitária, indicando traços de caráter indispensáveis para lidar com os demais membros da nossa comunidade e nossos interlocutores. É nesse ponto que devemos destacar importantes virtudes que nos ajudarão a enfrentar a situação muitas vezes desfavorável dos debates.

Enquanto o caráter orienta nossa conduta, os hábitos que adquirimos ao longo do tempo moldam nosso caráter, estabelecendo um ciclo virtuoso que fortalece nossa identidade intelectual.

Um elemento essencial para uma postura pública intelectualmente virtuosa é a humildade. Esse traço tem sido amplamente estudado e pode ser entendido como a disposição de reconhecer honestamente e na medida correta as nossas limitações em relação àquilo que conhecemos e realizamos. Ela envolve, ao mesmo tempo, uma visão realista de si mesmo, uma consideração pelos outros e uma abertura para novas ideias e novos conceitos. A humildade intelectual também se manifesta na disposição de refletir sobre a solidez de nossas crenças e de nossos argumentos, podendo nos levar até mesmo a mudar de ideia, se necessário. É essa virtude intelectual que nos ajuda a reconhecer a complexidade do mundo e a pluralidade do conhecimento, abrindo nossos ouvidos para aprender com aqueles que possuem perspectivas e conhecimentos diferentes, reconhecendo-os como agentes que podem enriquecer nossa própria visão.

A humildade intelectual anda de mãos dadas com outra disposição fundamental que devemos cultivar com relação aos outros: a honestidade. Enquanto virtude epistêmica, a honestidade pode ser entendida como o compromisso com a verdade e  sua propagação. Para isso, precisamos ser honestos conosco, com nossos interlocutores e com nossos pares. Na construção de um diálogo responsável e de um debate respeitoso, é essencial que ambas as partes sejam honestas. Para estabelecer um debate produtivo, devemos prezar por oferecer informações precisas, recorrendo a fontes reconhecidas e autoritativas que tragam as melhores análises dos dados e evidências disponíveis. No campo científico, é crucial que se reconheça os métodos envolvidos e que se respeite as instituições, pois são esses elementos que garantem a autoridade necessária para que a comunidade científica se estabeleça como uma estrutura responsável e autônoma perante a sociedade. 

Todas as virtudes intelectuais, em última instância, convergem no amor pela verdade. Para o cientista e para o debatedor cristão, isso assume conotações ainda mais profundas, uma vez que, para ele, a Verdade é uma pessoa. Tudo que é verdadeiro vem de Deus e aponta para Deus, como já afirmado e reafirmado por grandes teólogos ao longo da história, como Agostinho de Hipona e João Calvino. A habilidade oratória e a retórica galopante podem vencer inúmeros debates, mas, se fizermos disso um fim em si mesmo, sem o amor pela verdade e o amor ao próximo, estaremos errando o alvo.

A habilidade oratória e a retórica galopante podem vencer inúmeros debates, mas, se fizermos disso um fim em si mesmo, sem o amor pela verdade e o amor ao próximo, estaremos errando o alvo.

Um caráter intelectual virtuoso, por fim, é sinal de uma pessoa que busca viver com sabedoria. E uma vida sábia é uma vida que floresce, que dá frutos e testemunha o Criador, aquele em quem reconhecemos o princípio de toda sabedoria e que, de fato, se tornou a Sabedoria encarnada. Uma vida intelectualmente virtuosa teme a Deus acima de tudo e reconhece que a única vitória possível em um debate é ser um testemunho vivo e fiel.



Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. A tipologia quádrupla foi inicialmente proposta por Ian Barbour no seu livro Issues in Science and Religion, de 1966, em que ele descreve quatro modelos de relação entre ciência e religião, a saber: conflito, independência, diálogo e integração. Ao longo dos anos, estudiosos deste campo apresentaram várias outras propostas, entre os quais podemos citar a “tese da complexidade” de John Hedley Brooke, apresentada em seu livro Science and religion: Some historical perspectives, de 1991. Também disponível em John Hedley Brooke, “Science, Religion, and Historical Complexity”, Historically Speaking, v.8, n.5, 2007. E os “dez modelos” em Ted Peters, “Science and Religion: Ten Models of War, Truce, and Partnership”, Theology and Science, v.16, n.1,  2018.

2. Alvin Plantinga e Daniel Dennet, Ciência e religião: são compatíveis?, 2022.

3. A “Lei de Brandolini” nasceu de um aforismo elaborado por um programador italiano em 2013, que rapidamente se popularizou na internet. O princípio que ela traz, no entanto, representa algo que já tem sido estudado por acadêmicos da filosofia e da epistemologia há muitos anos.

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