No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus. No princípio, ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito. [...] E o Logos se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como filho único, cheio de graça e verdade. (João 1:1-3,14, BJ)
Sempre me fascinou o fato de que, ao iniciar o famoso prólogo de seu evangelho com apenas alguns poucos e preciosos elementos, João tenha lançado os princípios fundantes de toda uma teologia bíblica da criação. E mais: realizou isso fazendo uso de Logos, uma expressão polissêmica carregada de sentidos filosóficos. Não é minha intenção recapitular aqui e agora os múltiplos significados que esse termo ganhou ao longo dos séculos. Contudo, anuncio já que pretendo explorá-lo em outras ocasiões dada a consonância com temas centrais do debate sobre fé cristã e ciência, que serão tratados nas próximas colunas.
Antes, porém, creio que devo alguma explicação quanto ao próprio título da coluna, In Logos Omnia. Na verdade, trata-se de uma paráfrase de In Deo Omnia (literalmente, Em Deus todas as coisas). Tomei-a por empréstimo dos escritos da filósofa polonesa Anna-Teresa Tymieniecka (1923-2014), mais precisamente de seu trabalho The fullness of the Logos in the key of life [A plenitude do Logos na chave da vida]¹.
Minha apreciação por esse título vem do fato de que, num triunfo de concisão, ele manifesta sucintamente talvez a mais profunda e impactante afirmação bíblica: Cristo é tudo em todos. A sua ocorrência em Colossenses 3:10-11 não só expõe a nova ordem relacional instaurada por Cristo, mas ecoa o hino de Colossenses 1:15-20, em que Paulo estabelece a supremacia absoluta de Cristo sobre toda a criação, enfatizando que “tudo foi criado por meio dele e para ele” (v.16), em inteira conformidade com o texto de João em epígrafe.
Mas o que isso tem a ver com fé e ciência? Muita coisa. Por ora, vamos ficar com apenas um aspecto.
Para nós que cremos, as ciências naturais, especialmente ao investigar as questões mais fundamentais, estão lidando com a criação de Deus decorrente da atividade do Logos divino. Já cheguei a defender que “não obstante a predominância do naturalismo metafísico no campo científico, toda ciência, vista pelos olhos da fé, é teologia natural involuntária”. Bem, pode até ser intencional. Afinal, no fundo, era essa a natureza e o propósito do trabalho de alguns dos pioneiros da ciência moderna. Mas o ponto que quero enfatizar é que a investigação científica implica inerentemente uma componente de teologia natural, ainda que à revelia do cientista.
Para nós que cremos, as ciências naturais, especialmente ao investigar as questões mais fundamentais, estão lidando com a criação de Deus decorrente da atividade do Logos divino.
De onde tiro isso? Por exemplo, das palavras de Paulo no início da Carta aos Romanos: “Desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas” (Romanos 1:20, NVI). Se isso era válido à época de Paulo, como não seria agora que temos meios muito mais efetivos de perscrutar “as coisas criadas”? Como já dizia o teólogo e botânico de Oxford Aubrey Moore no final do século 19: “Para os cristãos, os fatos da natureza são os atos de Deus”. Portanto, investigar esses fatos está intimamente associado a indagar sobre a ação divina.
Observo muitas vezes em círculos cristãos que, quando emerge o que se convencionou chamar de revelação geral — as verdades gerais sobre Deus que podem ser conhecidas a partir da natureza criada —, parece haver uma espécie de urgência em se contrapor logo a ressalva de que dela não se pode inferir a revelação especial, constituída pelas Escrituras, que dão testemunho dos atos salvíficos do Senhor Jesus. Nenhuma objeção a isso: está corretíssimo. Não quero diminuir nenhum mícron da importância desse ponto fundamental. Minha preocupação, porém, é que essa maneira de expor as coisas não raro é acompanhada de uma atitude — certamente inconsciente — que parece menosprezar e esvaziar a criação de Deus de seu aspecto revelatório. Contudo, as palavras do salmista continuam reverberando: “Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos” (Salmo 19:1).
Não quero diminuir nenhum mícron da importância desse ponto fundamental. Minha preocupação, porém, é que essa maneira de expor as coisas não raro é acompanhada de uma atitude — certamente inconsciente — que parece menosprezar e esvaziar a criação de Deus de seu aspecto revelatório.
Quando isso acontece, minha suspeita é que alguém se deixou capturar pela armadilha da ruptura conceitual entre natural e sobrenatural. Trata-se de uma sutil expressão atitudinal, mas que, afinal, acaba operando em favor do secularismo reinante na sociedade e se ajustando suavemente ao deísmo irrefletido de muitos cristãos (que o negariam, claro!). Mas isso é assunto para uma outra coluna.
Concluo com um corolário do texto em epígrafe. A forma como o mundo físico foi estruturado é revelador da centralidade de Cristo na criação. Como isso pode ser? Para sabê-lo, continue nos acompanhando aqui. In Logos Omnia!
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Ao tocar na questão da relação entre criação e ciência, não posso deixar de recomendar aos leitores o excelente Discutindo a criação: um encontro entre a Bíblia e a ciência, de Mark Harris, lançado recentemente pela editora Thomas Nelson Brasil com apoio da Academia ABC².
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1. Anna-Teresa Tymieniecka, The fullness of the Logos in the key of life, 2009.
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