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Roberto Covolan

Mistérios da Ciência*

16/06/2023

Talvez hoje, mais do que nunca, o conhecimento científico de ponta mais facilmente nos aproxime do mistério. Contraditório? Só os ingênuos e os presumidos podem imaginar que a ciência explica todas as coisas. Cada avanço científico significativo abre imensas fronteiras para a vastidão do desconhecido.¹

Creio que isso nunca foi tão verdadeiro quanto agora, dadas as descobertas recentes feitas pela cosmologia e a astrofísica de que apenas 4% do universo é formado de matéria ordinária (dita matéria bariônica visível). O restante é composto das chamadas matéria escura e energia escura que, a rigor, ninguém sabe o que são. Nossa ignorância, neste caso, corresponde à constituição de 96% do universo, o que já é algum conhecimento, pois pelo menos sabemos dimensionar o tamanho do que desconhecemos. 

Contudo, o assunto que gostaria de tratar aqui desta vez não se refere propriamente à ignorância do que é aparentemente “misterioso”, porém passível de conhecimento científico, mas ao que é realmente misterioso: os fundamentos disto que chamamos ciência. 

O fazer científico consiste, em grande parte, no manejo conceitual e/ou instrumental de certos procedimentos técnicos, conceituais e metodológicos, cujos fundamentos – como veremos – extrapolam a própria ciência, mas que na prática científica cotidiana raramente são reconhecidos como tal. O usual é que a prática científica transcorra sem maiores reflexões quanto aos pressupostos filosóficos e teológicos implícitos nessa atividade por parte de quem faz ciência. Paul Davies, um físico teórico renomado, faz uma confissão explícita sobre isso, até com certa candura:

Aprendi ciência como um conjunto de procedimentos que revelaria como a natureza funciona, mas nunca questionei por que fomos capazes de fazer essa coisa chamada ciência com tanto sucesso. Foi somente depois de uma longa carreira de pesquisa e estudos que comecei a apreciar quão profundo é o conhecimento científico e quão incrivelmente privilegiados somos nós, seres humanos, por sermos capazes de desvendar os segredos da natureza de maneira tão poderosa.²

Nossa ignorância, neste caso, corresponde à constituição de 96% do universo, o que já é algum conhecimento, pois pelo menos sabemos dimensionar o tamanho do que desconhecemos.

É interessante observar que, mesmo para um cientista maduro como Davies, embora o fazer científico revele cada vez mais elementos a respeito do mundo, há algo fundamental que permanece oculto: aquilo que possibilita a própria ciência, a inteligibilidade do universo. 

Albert Einstein expressou sua profunda admiração diante deste fato, ao dizer: “O eterno mistério do mundo é a sua compreensibilidade… O fato de [o mundo] ser compreensível é um milagre”.³ Não deixa de surpreender que alguém com a autoridade científica de Einstein, imerso no secularismo do mundo acadêmico, descreva a capacidade cognitiva que temos em relação ao mundo natural como resultante de um milagre. Alguém poderia alegar que, ao falar em milagre, muito provavelmente ele estaria usando uma linguagem metafórica. Ainda que fosse este o caso, não podemos deixar de notar que metáforas são verdadeiras e falsas ao mesmo tempo: semelhança e dessemelhança estão ambas presentes. Seja como for, Einstein nos alerta para o fato de que, não obstante a imediatez com que esta capacidade de conhecer o mundo se apresenta, trata-se de algo que está longe de ser trivial. Ou, dito de outra forma, trata-se de uma faculdade trivial em sua manifestação, mas transcendente em sua natureza. 

Diretamente associados à capacidade de cognição humana diante do mundo, há dois aspectos que vão além da própria ciência e fogem ao seu alcance explanatório:  1) a racionalidade inerente aos processos naturais e 2) o caráter contingente da natureza. Na sequência, abordarei brevemente cada um desses aspectos.

Não deixa de surpreender que alguém com a autoridade científica de Einstein, imerso no secularismo do mundo acadêmico, descreva a capacidade cognitiva que temos em relação ao mundo natural como resultante de um milagre.

O primeiro ponto é algo que tenho tratado com certa insistência, mas ao qual preciso voltar aqui. Está intimamente relacionado ao fato de que o conhecimento científico pode ser expresso na forma de leis que governam a dinâmica dos processos naturais e que, por isso mesmo, são chamadas de leis naturais. Há o fato adicional de que, nas ciências mais básicas (tipicamente, na física), essas leis podem ser expressas através de uma formulação matemática. Na prática científica cotidiana, esses fatos são tomados corriqueiramente como dados a priori, óbvios em si mesmos e que, portanto, não demandam qualquer elucidação. Nada mais enganoso.

Antes de tudo, precisamos reconhecer que não há nenhuma razão a priori para que o mundo seja como ele se apresenta de fato. O físico teórico húngaro-americano Eugene Wigner, ganhador do prêmio Nobel de física de 1963, deu a esta questão o status devido num artigo de 1960⁴ ao enfatizar que “a enorme aplicabilidade da matemática nas ciências naturais é algo que beira o mistério e não há nenhuma explicação racional para isso.” Mais adiante, no mesmo artigo, ele complementa: “… não é nada natural que existam ‘leis da natureza’, e é muito menos natural ainda que o homem seja capaz de descobri-las.” Wigner expressa em outras palavras a mesma perplexidade de Einstein quanto ao misterioso fato de os processos naturais terem um caráter de racionalidade, que, por conta de um mistério maior ainda, pode ser acessada pela nossa inteligência. 

Para Owen Gingerich, astrofísico e ex-professor da Harvard University falecido há poucas semanas, a compreensão desses aspectos misteriosos acerca do universo demandam uma visão de mundo que extrapola o alcance limitado da ciência: 

A crença na existência de profundas leis ontológicas implica em um salto de fé. A ciência, na medida em que assume a realidade das leis matemáticas, opera segundo uma tácita suposição teísta a respeito da natureza do universo.

O pensamento de Gingerich ressoa com o que diz a teologia cristã, pois esta permite uma perspectiva intelectual inteiramente satisfatória do universo e uma visão integradora entre fé e ciência ao propor que, em última análise, as leis da natureza refletem a racionalidade e a criatividade do Criador. A inteligibilidade do universo, por sua vez, além deste mesmo aspecto, reflete também o fato de termos sidos criados à imagem e semelhança de Deus, segundo as Escrituras. 

O segundo ponto, mencionado acima, refere-se ao caráter contingente da natureza. Por contingente quero dizer que a natureza não é auto-originária nem  autônoma: para nós, cristãos, a natureza foi criada por Deus e dele depende continuamente. Por outro lado, Deus não atua no mundo através de milagres contínuos. Ele criou uma rede de causas secundárias (leis naturais) que atuam de forma regular e consistente. Ou seja, a criação tem uma ordem real, promovida por leis naturais, mas que está condicionada pela maneira específica como esta criação foi constituída. A expressão usada pelo teólogo protestante escocês Thomas Torrance para designar isso é ordem contingente. Torrance articula esses dois aspectos, ordem e contingência, dizendo que: 

A contingência da criação, que deriva de Deus, está inseparavelmente ligada à sua ordem, pois é o produto não apenas de sua vontade todo-poderosa, mas de sua razão eterna. Portanto, não é apenas a matéria do universo que surge do nada, mas também a sua forma, pois sob a criatividade racional de Deus matéria e forma se fundem indivisivelmente desde o início. Não há contingência sem ordem e nem ordem sem contingência, pois a contingência é inerentemente ordenada e a ordem é essencialmente contingente.⁶

O próprio método científico, conjunto de procedimentos que gradualmente emergem e se estabelecem como central na fundação da ciência moderna, está diretamente relacionado ao fato de a natureza ser constituída como ordem contingente. A linha de conexão entre uma coisa e a outra é bem resumida numa afirmação do teólogo escocês John Baillie: “Embora tudo na natureza siga um padrão racional e, portanto, seja, em princípio, inteligível por nós, não podemos saber a priori qual padrão racional [a natureza] irá seguir.”⁷ Sendo assim, é necessário que a ciência não seja um empreendimento conduzido tão somente pelo uso da razão, mas requer experimentação, observação cuidadosa e exame minucioso das informações e dados auferidos. Evidentemente, a ciência não se resume a mero empirismo, contudo demanda profundo envolvimento com a realidade concreta no que esta possui de mais sutil e abscôndito. 

Assim, o fato de o universo ser constituído de uma forma específica e contingente, implica que o conhecimento sobre sua natureza requer que se interaja com ele de forma inteligente e criativa, pelo emprego de metodologia experimental e observacional. Deriva daí o fato de que a ciência é essencialmente experimental no sentido que ideias e teorias sobre como a natureza funciona só podem ser plenamente aceitas quando corroboradas por dados experimentais ou observacionais. Sem a devida sustentação experimental, ideias e conceitos, por mais brilhante que sejam, não passam de simples hipóteses ou mera especulação. 

Em resumo, temos que as teorizações acerca do mundo e as exigências de corroboração experimental decorrem da ordem contingente que organiza o universo, mas para esta não há nenhuma explicação científica. E nem pode haver. A ordem contingente que propicia a ciência é ela mesma, em sua origem, intangível ao fazer científico.

Em resumo, temos que as teorizações acerca do mundo e as exigências de corroboração experimental decorrem da ordem contingente que organiza o universo, mas para esta não há nenhuma explicação científica. E nem pode haver.

Com isso, vemos que tanto o caráter de racionalidade das leis que governam os processos naturais quanto o caráter de contingência que marca a constituição do universo são fundamentos que transcendem a ciência. Torrance expressa essa faceta da realidade melhor do que ninguém:

Evidentemente, a ciência deve assumir concepções e princípios que não são logicamente deriváveis, explicáveis ou prováveis, mas sem os quais ela não poderia funcionar. Contingência e ordem são pressupostos desse tipo: nós não os derivamos das ciências naturais, mas sim de uma perspectiva fundamental sobre a natureza do universo que é o correlato de uma doutrina especial de Deus como o Criador do universo.⁸

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Partes deste texto, publicadas nos boletins da ABC² de junho e novembro de 2018, aparecem aqui com modificações substanciais.

1. Partes deste texto, publicadas nos boletins da ABC² de junho e novembro de 2018, aparecem aqui com modificações substanciais.

1. Roberto Covolan, Davi, Einstein e os mistérios da natureza, Boletim no. 1 da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, Setembro/2015.

2. Paul Davies, The Appearance of Design in Physics and Cosmology, in God and Design, ed. Neil A. Manson, p. 147.

3. Albert Einstein, Physics and Reality, Journal of the Franklin Institute, March 1936.

4. Eugene P. Wigner, The unreasonable effectiveness of mathematics in the natural sciences, Communications on Pure and Applied Mathematics 13: 1–14, 1960.

5. Owen Gingerich, Kepler and the Laws of Nature, Perspectives on Science and Christian Faith, 63 (1) 2011.

6. Thomas F. Torrance, Divine and Contingent Order, 1981, p. 109. 

7. John Baillie, Christianity in an Age of Science, in Science and Faith Today by John Baillie, Robert Boyd, Donald Mackay, Douglas Spanner, 1953, p. 17.

8. Thomas F. Torrance, op. cit., p. 27.

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