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Roberto Covolan

Ainda sobre a “crise” do Big Bang

Faz sentido dizer que uma teoria científica está certa ou errada?

15/12/2023

Nos tempos bicudos em que vivemos, o efeito Dunning-Kruger ataca de todos os lados. Tal como o pop, a síndrome opiniática não poupa ninguém: há muita gente por aí se achando no direito de pontificar sobre ciência, apontando a torto e a direito o que estaria certo ou errado. Assim, meio que provocado por esses ventos, me aventuro nesse terreno pantanoso para tecer algumas considerações — que, espero, sejam razoáveis — sobre quando e, mais importante, se faz sentido dizer que uma teoria científica está certa ou errada.

Usando um corte epistemológico bastante rudimentar, em primeira aproximação, podemos dizer que há coisas que são matéria de opinião e outras, matéria de conhecimento. Se uma família decide se mudar para um novo apartamento, a cor que a sala de estar e os demais cômodos serão pintados é uma questão de opinião, que certamente renderá boas discussões. Dada a apreciação que temos por um verniz intelectual, a defesa desta ou daquela cor muito provavelmente se fará acompanhar de argumentos apoiados em algum tipo de “ciência”, feng shui ou coisa que o valha. Contudo, a despeito da plausibilidade das justificativas apresentadas e salvo a existência de alguma necessidade específica, esse problema não deixará de ser, mais do que tudo, uma questão de opinião ou de apreciação estética.

Agora, se o que você tem de fazer é resolver uma equação do 2º grau, não há muito espaço para opinião, pois trata-se simplesmente de uma questão de conhecimento. Para encontrar as raízes da equação, pode-se usar a fórmula de Bhaskara, tentar um ou outro caso especial, ou recorrer à força bruta e testar uma enfiada de números até acertar. Seja qual for o método escolhido, será sempre uma questão de conhecimento: ou você sabe do que se trata ou não.

E quanto à validade das teorias científicas?¹ Será que é exclusivamente uma questão de conhecimento ou haveria espaço para opinião? Em particular, tem cabimento dizer que uma teoria científica está certa ou errada no mesmo sentido que eu digo que 2 + 2 = 4 está certo e 2 + 2 = 5 está errado?

O interesse em escrever sobre isso vem na esteira de um artigo em duas partes que publicamos aqui na Unus Mundus, intitulado “O telescópio James Webb refutou mesmo a teoria do Big Bang?” (Parte 1, Parte 2). Como vimos, do ponto de vista teórico-conceitual, a ideia de expansão do universo decorre da Relatividade Geral de Albert Einstein, que é essencialmente uma teoria da gravitação. É possível que o leitor ou leitora já tenha visto em algum lugar que a teoria de Einstein “engoliu” a teoria de Newton, por ser muito mais abrangente e precisa, e por dar conta de fenômenos que a gravitação newtoniana não teria como prever ou explicar — por exemplo, ondas gravitacionais.

Aí alguém dirá: se a Relatividade Geral de Einstein é a teoria de gravitação certa, então a lei da gravitação de Newton está errada, certo? Errado! Já vamos entender por quê. Primeiro, deixe-me dizer alguma coisa sobre o que é, de fato, uma teoria científica.

É claro que a palavra teoria pode apresentar diferentes sentidos e conotações a depender do contexto em que é utilizada. Mas é frequente que, na conversação livre do dia a dia, se use falar de teoria quando se deveria dizer hipótese. Esse uso relaxado e fluido da palavra passa, frequentemente, a impressão de que, em “teoria”, qualquer coisa vale, quando é exatamente o oposto — pelo menos quando se fala de uma teoria científica autêntica.

Enquanto redigia esta coluna e refletia sobre o assunto, decidi testar esses chatbots de inteligência artificial e pedir-lhes uma definição formal de teoria científica. A melhor resposta me foi dada pelo Bard:

Uma teoria científica é uma explicação bem fundamentada de algum aspecto do mundo natural, do universo ou de um fenômeno. Ela é:

  1. Baseada em um conjunto de fatos que foram repetidamente confirmados através de observação e experimentação. Isso significa que a teoria foi testada rigorosamente e produziu consistentemente resultados confiáveis.
  2. Mais ampla do que uma lei ou hipótese científica. Uma lei é uma afirmação que descreve um padrão consistente observado na natureza, mas não explica por que esse padrão existe. Uma hipótese é uma tentativa de explicação que precisa ser testada mais detalhadamente. Uma teoria, por outro lado, é uma explicação mais abrangente e bem estabelecida que integra múltiplas leis e hipóteses.
  3. Capaz de fazer previsões sobre observações ou experimentos futuros. Se uma teoria for verdadeiramente precisa, deverá permitir aos cientistas prever o que observarão se a teoria estiver correta. Essas previsões podem então ser testadas para apoiar ainda mais ou refutar a teoria.
  4. Aberta à revisão à luz de novas evidências. Nenhuma teoria científica é considerada verdade absoluta. Se surgirem novas evidências que contradigam a teoria, ela deve ser revisada ou mesmo abandonada por completo.
 

Gostei dessa definição. A partir dela fica fácil compreender que uma teoria científica vai muito além de meras hipóteses ou modelos teóricos elementares, ou mesmo simples opiniões de cientistas sobre elementos ou fenômenos naturais, pois, para ganhar o status de teoria, ela deve constituir-se em um corpo de conhecimentos muito bem estabelecidos.

Tendo em mãos essa definição, gostaria agora de dar um exemplo de teoria física bem-sucedida. Trata-se da Eletrodinâmica Quântica, conhecida tecnicamente como QED (de Quantum Electrodynamics). Essa é a teoria das interações eletromagnéticas entre partículas elementares carregadas eletricamente (como os elétrons) intermediadas por fótons. Trata-se possivelmente da teoria científica mais precisa que temos na atualidade:² em alguns casos, suas previsões chegam a mais de 10 casas decimais.

Nessa teoria, há uma quantidade física denominada razão giromagnética (g) cujo valor estabelecido no modelo original de Paul Dirac é g = 2. Em 1947, medidas experimentais revelaram um pequeno desvio desse valor, que passou a ser expresso em termos do chamado momento magnético anômalo do elétron e dado pela expressão a = (g – 2)/2. Como g é muito próximo de 2, os valores de a são muito pequenos. Desde a descoberta desse pequeno desvio, há uma competição tácita entre físicos teóricos e experimentais para ver quem consegue determinar essa quantidade física com mais precisão. Um cálculo teórico³ recente do momento magnético anômalo do elétron, realizado por meio da QED, resultou em 

a (teo) = 0,001 159 652 181 61,

enquanto medidas experimentais⁴ dessa mesma grandeza publicadas este ano resultaram em um valor de

a (exp) = 0,001 159 652 180 59.

Como se vê, a concordância entre o valor teórico (produzido pela QED) e o valor experimental dessa grandeza física atinge (absurdas) 11 casas decimais! Isso equivale à precisão de 1 mícron em 100 Km ou a medir a distância rodoviária entre São Paulo e Salvador com a precisão de um fio de cabelo muito fino. Esse é o nível de precisão e de concordância entre teoria e experimento de que estamos falando aqui!

A linguagem científica polida e o bom tom nos recomendam dizer que teorias científicas descrevem a natureza, mas, quando se chega a esse nível de precisão, um pensamento começa a rondar nossa cabeça: será que esta teoria não está a nos dizer que a natureza é, de fato, assim? Ok, por ora fiquemos com a polidez e o bom tom, mas não sem antes notar que, a esta altura, estamos a anos-luz de uma mera questão de opinião.

Ainda assim, consideremos algo que, neste momento, parece totalmente impensável. Suponhamos que, num futuro próximo, seja descoberta (ou construída) uma nova teoria das interações eletromagnéticas ainda mais precisa e abrangente que a QED. Seria correto dizer então que a QED estava errada? Diante do que acabamos de ver, isso soa muito estranho, não soa? Pois é: autênticas teorias científicas nunca estão completamente certas (conforme o ponto 4 do Bard) e jamais estarão completamente erradas.   O adequado será sempre especificar o nível de precisão — e de limitação — com que uma dada teoria consegue descrever os fenômenos aos quais ela se aplica.

Na verdade, essa linguagem de certo e errado não se aplica às verdadeiras teorias científicas, dado que, para alcançar esse status, terão atingido um nível considerável de corroboração e consenso.

Voltando ao ponto inicial, creio que agora fica mais fácil entender por que eu disse no início que é errado afirmar que a teoria de Newton está errada e a de Einstein, certa. Não se trata simplesmente de certo ou errado. Não se pode esquecer que, antes de a teoria de Einstein vir à luz, a lei da gravitação de Newton já acumulava mais de dois séculos de dados experimentais e observacionais que lhe davam suporte.

Além disso, e aqui vai uma informação, a lei da gravitação de Newton pode ser derivada como um caso especial das equações de Einstein, ou seja, a Relatividade Geral, por assim dizer, contém a gravitação de Newton. Isso é o que se espera de autênticas teorias científicas: quando superadas por um novo arcabouço teórico mais abrangente e mais preciso, que sejam reproduzíveis como um caso especial desse novo formalismo. 

O mesmo provavelmente acontecerá com o modelo cosmológico padrão (popular teoria do Big Bang), que alguns consideram atualmente em crise: o modelo teórico que o superar deverá contê-lo.   As verdadeiras teorias científicas são desenvolvidas e aprimoradas, mas conformidade e consistência entre elas é algo que sempre se espera, afinal, o que lhes confere credibilidade é o que todas buscam e têm conseguido em boa medida: descrever, cada vez mais e melhor, o mesmo unus mundus.

Portanto, nada mais enganoso do que tentar passar por científica a opinião de que a teoria do Big Bang está simplesmente errada, como alguns têm tentado.

 

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Partes deste texto, publicadas nos boletins da ABC² de junho e novembro de 2018, aparecem aqui com modificações substanciais.

1. Para um artigo muito esclarecedor sobre o status epistêmico das ciências, em especial das Humanidades, publicado na Unus Mundus, clique aqui.

2. Há outras candidatas: a própria Relatividade Geral, o Modelo Padrão das Partículas Elementares e a Relatividade Restrita são outros exemplos de teorias físicas extremamente precisas.

3. Tatsumi Aoyama et al, “Theory of the Anomalous Magnetic Moment of the Electron”, Atoms v. 7, n. 1, 2019.

4. X. Fan et al, “Measurement of the Electron Magnetic Moment”, Phys. Rev. Lett.,v. 130, n. 7, 2023.

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