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Roberto Covolan

Por que será que Deus gosta tanto de hidrogênio?

18/04/2024

Quando atentamos para certas discussões sobre religião e ciência que ocorrem nas mídias sociais, é inescapável notar a avidez de certas pessoas em usar a ciência contra a própria ciência. Em geral, isso se dá quando certas teorias científicas não se encaixam na cosmovisão delas, e seu envolvimento nessas discussões é ditado sobretudo por uma agenda, declarada ou não.

Um exemplo recente e emblemático dessa tendência surgiu das descobertas feitas pelo observatório espacial James Webb (JWST).¹ Este observatório tem revelado galáxias que parecem extraordinariamente maduras e massivas para a época em que se situam, muito próxima do início do universo. Surpreendentemente, algumas pessoas apressaram-se em utilizar essas descobertas para contestar a teoria do Big Bang.² De fato, quando esses dados do JWST se tornaram disponíveis, parecia que abriam algum espaço para um questionamento mais profundo da cosmologia padrão, mas alguns já avançavam o sinal e sofregamente se perguntavam quais seriam as bases para construir um novo paradigma cosmológico. Não precisou passar muito tempo para este cenário começar a mudar. Embora nada ainda esteja solidamente assentado, as últimas avaliações sobre este quadro parecem convergir para a suspeita de que o problema detectado é de natureza astrofísica, e não de natureza cosmológica.³

Mesmo assim, alguns adeptos do Criacionismo da Terra Jovem⁴ continuam convictamente a alegar — em artigos populares e nas mídias sociais — que tais achados contradizem a cronologia cósmica postulada pela cosmologia atual e aproveitam a oportunidade para insistir em uma interpretação literalista de Gênesis 1 como se esse texto descrevesse a história natural do universo.⁵

Entretanto, ao analisarmos de maneira mais profunda essas descobertas do JWST, torna-se evidente que a precipitação em refutar teorias estabelecidas muitas vezes carece de uma compreensão completa do contexto científico. Em alguns casos, ao defender a ideia de um universo jovem com base na aparente maturidade de certas galáxias,⁶ cita-se fontes científicas, mas oculta-se que as mesmas fontes falam dessas galáxias conforme eram, por exemplo, há 11 bilhões de anos, o que, de fato, se alinha com a narrativa cosmológica do Big Bang. Ignorar esse aspecto é um lapso comum — intencional ou não — cometido por aqueles que buscam utilizar a ciência como arma contra a ciência.

É crucial reconhecer que a teoria do Big Bang não é uma conjectura arbitrária, mas sim um modelo científico amplamente sustentado por evidências observacionais e teóricas.  Desde a descoberta da expansão do universo até a detecção da radiação cósmica de fundo, uma série de fenômenos astronômicos têm confirmado as previsões da teoria do Big Bang. Portanto, simplesmente rejeitá-la com base em descobertas isoladas é um equívoco grave que subestima a robustez do edifício científico construído ao longo de décadas de pesquisa e observação.

No entanto, mesmo que se conceda o benefício da dúvida às críticas ao Big Bang, é importante ressaltar que a refutação de uma teoria não implica automaticamente a validade de outra. Este é um ponto frequentemente esquecido em debates polarizados entre ciência e religião. A ciência não opera em um sistema binário de verdade e falsidade; é um processo contínuo de revisão e refinamento que busca explicar a complexidade do universo de maneira cada vez mais precisa.

A ciência não opera em um sistema binário de verdade e falsidade; é um processo contínuo de revisão e refinamento que busca explicar a complexidade do universo de maneira cada vez mais precisa.

Portanto, a conclusão precipitada de que uma teoria está “errada” não deve ser vista como uma vitória para outra visão de mundo.⁷ Em vez disso, deve-se reconhecer que a ciência é um empreendimento humano sujeito a revisões e correções constantes. As descobertas científicas precisam ser submetidas a um escrutínio rigoroso e replicadas por outros pesquisadores antes que seus resultados sejam utilizados para fundamentar ideias que podem ter um caráter anticientífico.

Um aspecto frequentemente negligenciado nessas discussões é o seguinte: se é afirmado que a teoria do Big Bang está errada, o que fazer das evidências que a sustentam? À guisa de ilustração, deixe-me destacar um ponto sobre o qual pouco se fala. O universo observável é formado por centenas de bilhões de galáxias e cada uma delas compõe-se de centenas de bilhões de estrelas. Contudo, essa infinidade de galáxias e estrelas é composta quase que essencialmente de um único elemento químico, o hidrogênio! Para ser mais preciso, em número de átomos, o universo é composto, aproximadamente, de 92% de hidrogênio e 7% de hélio. Desse modo, os demais elementos químicos somados situam-se ao redor de 1%.⁸

Ora, esses valores — a chamada abundância relativa de elementos químicos leves — encontram uma descrição bastante razoável no âmbito da cosmologia e da astrofísica contemporâneas. Na verdade, é notável que a abundância de átomos leves prevista pela chamada nucleossíntese do Big Bang seja tão bem confirmada pelas observações.⁹ Com um simples clique e uma breve inspeção num artigo especializado, Light Elements in the Universe, pode-se ter uma ideia do nível de complexidade do assunto e do grau de expertise necessário para tratar desta matéria.

Agora, sem entrar em detalhes técnicos esotéricos, podemos entender que os demais elementos químicos tiveram sua origem exatamente a partir do hidrogênio, o elemento mais simples que existe, composto apenas de um próton como núcleo e um elétron na eletrosfera. A física nuclear vem se desenvolvendo há mais de um século e hoje se conhecem todos os detalhes das reações que permitem, a partir do hidrogênio e através de processos consecutivos de fusão nuclear e captura de nêutrons, chegar aos elementos químicos mais pesados. É o que ocorre no interior das estrelas, por exemplo.

Essa maneira (científica) de ver as coisas faz todo sentido e permite entender como toda a matéria (ordinária) do universo foi gerada a partir do hidrogênio, o átomo mais simples, e isto é simplesmente divino. 

Essa maneira (científica) de ver as coisas faz todo sentido e permite entender como toda a matéria (ordinária) do universo foi gerada a partir do hidrogênio, o átomo mais simples, e isto é simplesmente divino.

No entanto, há quem resolva dispensar as excelentes interpretações de Gênesis que temos à disposição,¹⁰ preferindo adotar a visão de que esse texto corresponde a uma narrativa factual de como o universo veio a existir — ênfase no como, por favor. Sendo assim, e dadas as informações científicas de que dispomos hoje, esta pessoa praticamente estaria obrigada a se perguntar: mas por que será que Deus gosta tanto de hidrogênio? Sim, porque, de bilhões de galáxias e das bilhões de bilhões de estrelas, quase tudo é hidrogênio! Por que tudo isso? Por que esse desperdício? Questões dessa natureza se impõem, visto que, para este tipo de visão literalista, simplesmente não haveria razão alguma para existir tanto hidrogênio: estamos falando da quase totalidade do universo. Por que Deus gosta tanto de hidrogênio? Eis aí uma boa questão para a reflexão dos criacionistas da Terra jovem.

Perdoem-me pelo tom irônico deste último parágrafo, mas, voltando ao ponto em questão, é necessário enfatizar que, quando se tenta refutar uma teoria estabelecida, é necessário dizer o que se deve fazer com as evidências que a sustentam. Não podem ser simplesmente varridas para debaixo do tapete. Não basta colocar o dedo em algum ponto crítico e simplesmente ignorar o contexto científico mais amplo que dá sustentação a essa teoria.

Entendo que alguns, de boa fé e sem tanto acesso ao conhecimento especializado, possam imaginar que estão defendendo a integridade e a inerrância das Escrituras ao impor a textos tão complexos, como os capítulos iniciais de Gênesis, uma interpretação literalista. Mas há outros, com amplo acesso a informações científicas e exegéticas, que fazem desse tipo de  interpretação um totem sagrado. Estes deveriam saber mais.

Com extrema reverência por uma daquelas mentes que o Senhor iluminou no início da história do cristianismo, recordo aqui as palavras de Agostinho em sua obra Sobre o Significado Literal de Gênesis (De Genesi ad litteram):

Normalmente, mesmo um não cristão sabe algo sobre a terra, os céus e os outros elementos deste mundo, sobre o movimento e a órbita das estrelas e até mesmo sobre o seu tamanho e posições relativas, sobre os previsíveis eclipses do sol e da lua, os ciclos dos anos e das estações, sobre os tipos de animais, arbustos, pedras, e assim por diante, e esse conhecimento ele tem como certo a partir da razão e da experiência. Agora, é algo vergonhoso e perigoso para um infiel [não cristão] ouvir um cristão, presumivelmente dando o significado da Sagrada Escritura, dizer coisas absurdas sobre esses tópicos; e deveríamos usar todos os meios para evitar uma situação tão embaraçosa como essa, na qual as pessoas se deparam com uma vasta ignorância num cristão e riem disso com desprezo. A vergonha não é tanto que um indivíduo ignorante seja ridicularizado, mas que pessoas fora da família da fé pensem que nossos autores sagrados tinham tais opiniões e, para grande perda daqueles por cuja salvação trabalhamos, os autores de nossas Escrituras sejam criticados e rejeitados como homens iletrados. Se encontrarem um cristão equivocado num campo que eles próprios conhecem bem e o ouvirem sustentar as suas opiniões tolas sobre os nossos livros, como irão acreditar nesses livros em assuntos relativos à ressurreição dos mortos, à esperança da vida eterna e ao reino dos céus, quando pensam que suas páginas estão cheias de falsidades sobre fatos que eles próprios aprenderam com a experiência e à luz da razão?¹¹

Pois é: parece escrito para os dias de hoje, não é mesmo?

Concluindo, é essencial cultivar uma abordagem mais cautelosa e reflexiva em relação à interpretação e aplicação das descobertas científicas assim como das Sagradas Escrituras. Isso implica reconhecer as limitações do nosso conhecimento atual e evitar conclusões precipitadas que podem ser mais reflexo de preconceitos pessoais do que de uma compreensão genuína da natureza do universo assim como da revelação escriturística. Assim fazendo, poderemos promover um diálogo mais construtivo entre a religião e a ciência, baseado no respeito mútuo pela busca da verdade em todas as suas formas.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Algumas dessas descobertas podem ser vistas neste artigo: The 10 greatest JWST discoveries, so far.

2. Já tratamos dessa questão, de forma detalhada, em um artigo publicado em duas partes aqui na Unus Mundus: “O telescópio James Webb refutou mesmo a teoria do Big Bang?” (Parte 1Parte 2).

3. Jonathan O’Callaghan, “JWST’s Puzzling Early Galaxies Don’t Break Cosmology—But They Do Bend Astrophysics“, Scientific American, February 9, 2024.

4. Para uma excelente discussão sobre as diferentes visões cristãs da origem do universos, veja A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente, de Ken Ham, Hugh Ross, Deborah B. Haarsma e Steph C. Meyer, 2021.

5. Para um contraponto a esta visão, ver Hugh Ross, “Big Bang Model Is Not Dead“, Reasons to Believe, January 1, 2024.

6. A ideia aqui é basicamente que não teria havido um longo processo de formação de galáxias; estas já teriam sido criadas prontas, por assim dizer.

8. Veja detalhes, por exemplo, em Composition of the Universe – Element Abundance.

9. Uma visão geral desse assunto pode ser encontrada no verbete Abundance of the chemical elements na Wikipedia.

10. Derek Kidner, Genesis: An Introduction and Commentary, 1967; Bruce Waltke, Genesis: A Commentary, 2001; Tremper Longman III, Como ler Gênesis, 2009; John Walton, O Mundo Perdido de Adão e Eva: O Debate Sobre a Origem da Humanidade e a Leitura de Gênesis, 2016; apenas para citar alguns.

11. Agostinho, tradução própria a partir de “The Literal Meaning of Genesis”, Ancient Christian Writers, vol. 41, traduzido e anotado por John Hammond Taylor, 1982.

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