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Roberto Covolan

Teleologia vs. Ideologia

Há propósito no universo?

04/08/2023

De todas as questões em ciência e religião, creio que a mais fundamental é se o universo tem um propósito.¹

A ideia de teleologia tem a ver com o fato de que certas coisas existem ou ocorrem por causa de outras, ou seja, tais coisas constituem a finalidade, o objetivo, o propósito ou a meta final de outras. Por exemplo, estou escrevendo esta coluna para que você a leia. Meu esforço em expor aqui algumas ideias tem como finalidade — ou telos — capturar a sua atenção por alguns minutos para juntos conjecturarmos acerca de alguns aspectos polêmicos quanto à natureza da realidade física.

Um aspecto importante a ser considerado quando se fala em teleologia é se ela é de natureza intrínseca ou extrínseca: ela é inerente ao agente ou processo causador ou é imposta de fora? Minha inclinação para escrever a coluna é de natureza interior: trata-se de uma ação teleológica intrínseca. Mas o funcionamento do aparelho de ar condicionado que mantém amena a temperatura do meu escritório é de natureza extrínseca. Algum agente externo — o projetista — planejou a construção desse equipamento de forma que fosse dotado das funções que executa com o propósito definido de manter a temperatura ambiente dentro de certos limites. 

No caso do aparelho de ar condicionado, a teleologia é extrínseca ao falarmos da funcionalidade do equipamento, mas obviamente são intrínsecas as ações teleológicas de quem o concebeu e construiu. E aí vemos entrar em jogo uma outra faceta do problema: a questão da intencionalidade. Parece tranquilo supor que o aparelho de ar condicionado não tem — nem pode ter — ele próprio intenção alguma, mas embutidas em seu sistema operacional estão as intenções do projetista que o desenhou. Note que há aqui, por assim dizer, um telos de 2a. ordem: não se trata apenas de o equipamento operar para que a temperatura permaneça dentro de certos limites físicos, mas que isso aconteça para que o ambiente seja agradável a quem estiver presente. Então, embora o equipamento por si mesmo não tenha intenção alguma, as intenções de outrem são inerentes ao seu funcionamento. 

Bem, a esta altura você deve estar se perguntando: Mas qual é o telos dessa verborreia toda? Antes de responder, não posso perder a chance de chamar sua atenção para o fato de que a sua inquietação decorre justamente de sermos seres propositados, somos seres teleológicos: você, com toda razão, quer saber onde vai dar essa conversa, qual a finalidade dela. Bem, as questões de fundo aqui são as seguintes: Afinal, há algum propósito no universo físico? É possível discernir indícios de telos nos processos naturais ou eles simplesmente ocorrem de maneira aleatória, sem nenhuma direção preferencial? E, falando nisso, por que será que a ideia de propósito no universo desperta tanta ira em algumas pessoas?

Como alguns já devem saber e outros, imaginar, vejo a natureza como aberta à transcendência, em contraste com a visão naturalista, predominante nos meios acadêmicos, pela qual o universo é visto como um sistema fechado, constituído de matéria/energia e regido por férreas leis naturais e forças cegas impessoais. 

De passagem, deixe-me mencionar que o princípio do fechamento causal, pelo qual se postula que todos os efeitos físicos são devidos tão somente a causas físicas e que frequentemente é usado como fundamento para uma visão naturalista, é um princípio metafísico e não uma teoria científica. Pode fazer sentido que alguém o defenda, mas não há como prová-lo cientificamente.  

Minha perspectiva é magistralmente traduzida por John Polkinghorne ao tratar da inteligibilidade do mundo natural:

A metafísica naturalista é incapaz de lançar luzes sobre essa inteligibilidade profunda, pois deve tratá-la como um feliz acidente. No entanto, uma metafísica teísta pode vir em nosso auxílio, pois sugere que a razão de nossas mentes e a estrutura racional do mundo físico ao nosso redor têm uma origem comum na racionalidade do Deus que é a base tanto de nossa mente quanto de nossa experiência física. Na compreensão cristã, nossa capacidade de explorar a beleza racional do universo faz parte da concessão da imago dei. (...) Em termos trinitários, eu diria que, quer saibam ou não, os cientistas por meio de suas descobertas estão se encontrando com o Logos divino, "por quem todas as coisas foram feitas e sem o qual nada do que foi feito se fez" (Jo 1, 3).²

De passagem, deixe-me mencionar que o princípio do fechamento causal, pelo qual se postula que todos os efeitos físicos são devidos tão somente a causas físicas e que frequentemente é usado como fundamento para uma visão naturalista, é um princípio metafísico e não uma teoria científica.

Esse aspecto inerente de inteligibilidade com o qual a natureza é dotada e do qual toda ciência depende é mais prontamente discernido pelos padrões e regularidades observados nos processos naturais. Ao longo da história do pensamento, esses padrões e regularidades inspiraram os filósofos a identificar na natureza não apenas um comportamento governado por leis naturais, mas também um caráter teleológico. 

No entanto, a visão de mundo mecanicista que emergiu com o advento da ciência moderna e se estabeleceu como o novo paradigma para entender o mundo natural – e, diga-se, o fez de maneira extremamente bem-sucedida – enfatizava sobretudo o ponto de vista das leis da natureza em detrimento de seu caráter teleológico. Este, ao longo do tempo, acabou sendo totalmente expurgado do raciocínio científico.³ No entanto, como afirma o teólogo David Bentley Hart: “A etiologia material e a teleologia formal talvez sejam separáveis teoricamente, mas não empiricamente, e o privilégio que concedemos à primeira como nosso índice do que é verdadeiramente real não decorre de nenhuma descoberta da razão ou das ciências, mas apenas de uma decisão que tomamos coletivamente”.⁴ 

Seja como for — ou como tenha sido —,  esta visão disteleológica do mundo natural tem prevalecido no meio acadêmico nos últimos 150 anos. Alguns personagens notáveis desse meio tem enfatizado este ponto com a estridência de militantes. Na parte final de seu livro The First Three Minutes, Steven Weinberg, ganhador do prêmio Nobel de Física de 1979, afirma: “Quanto mais o universo parece compreensível, mais ele parece também sem sentido”. O biólogo Richard Dawkins, em seu livro River Out of Eden: A Darwinian View of Life, vai na mesma direção: “O universo que observamos tem precisamente as propriedades que devemos esperar se, no fundo, não houver nenhum design, nenhum propósito, nenhum mal, nada de bom, nada além de indiferença implacável.”

No entanto, a visão de mundo mecanicista que emergiu com o advento da ciência moderna e se estabeleceu como o novo paradigma para entender o mundo natural – e, diga-se, o fez de maneira extremamente bem-sucedida – enfatizava sobretudo o ponto de vista das leis da natureza em detrimento de seu caráter teleológico.

Não obstante a inércia massiva do aluvião acadêmico dominante, em tempos recentes, alguns cientistas e filósofos tem-se colocado claramente contracorrente. De acordo com Mark Perlman, “a teleologia certamente voltou aos círculos filosóficos nos últimos trinta anos. Passou de uma noção suspeita ou de má reputação, pronta para ser eliminada, ao tópico mais quente das filosofias da biologia, da psicologia e da mente”.⁵ 

Um dos estudos recentes mais contundentes na defesa de uma retomada da perspectiva teleológica é Mind and Cosmos (2012), de Thomas Nagel. Nagel, hoje professor emérito de filosofia da New York University e que, brincando, às vezes costumo chamar de “meu ateu favorito”, é figura carimbada em qualquer curso de filosofia da mente. Seu paper de 1974, What Is It Like to Be a Bat?, é um clássico com quase 13.000 citações, de leitura obrigatória para qualquer um interessado no estudo da consciência. 

Pois bem: em seu livro, Nagel considera que o reducionismo científico tem sido muito eficaz em revelar aspectos profundos do mundo material, mas não é suficientemente abrangente para dar conta de todos os aspectos predominantes da realidade física. Ele argumenta que precisamos de mais do que apenas as ferramentas mecanicistas das leis da física, seleção natural e outros componentes teóricos do neodarwinismo para explicar eventos como o surgimento da consciência, da subjetividade e do poder transcendente da razão. 

Para ele, além das leis físicas que regem o mundo natural como o conhecemos, haveria leis teleológicas — atenção: leis teleológicas! — para dar conta de certos eventos e fatos inexplicáveis pela ciência contemporânea, como a existência da vida e de seres dotados de consciência. Em suas palavras, “a teleologia natural significaria que o universo é governado racionalmente de mais de uma maneira – não apenas por meio das leis quantitativas universais da física que fundamentam a causação eficiente, mas também por meio de princípios que implicam que as coisas acontecem porque estão num caminho que leva a certos resultados – notavelmente, a existência de organismos vivos e, sobretudo, conscientes”.

Para ele, além das leis físicas que regem o mundo natural como o conhecemos, haveria leis teleológicas — atenção: leis teleológicas! — para dar conta de certos eventos e fatos inexplicáveis pela ciência contemporânea, como a existência da vida e de seres dotados de consciência.

Mesmo para mim, com meus vieses cognitivos sobre este assunto faceis de advinhar, ver um filósofo da estatura de Nagel falar em leis teleológicas foi quase assustador. Mas a reação de alguns “notáveis” da academia — do meu ponto de vista, the usual suspects — foi de indisfarçável ira. O filósofo Daniel Dennett chamou Nagel, na revista the weekly Standard, de membro de uma “gang retrógrada” cujo trabalho (Mind and Cosmos) “não vale nada — é fofo e inteligente, mas não vale um níquel”. Steve Pinker, professor de Harvard, sapecou no Twitter que as ideias de Nagel em seu livro são “um raciocínio esfarrapado de alguém que já foi um grande pensador”. Jerry Coyne, biólogo da Universidade de Chicago, disse ao The Chronicle of Higher Education que “Nagel é um teleologista, e apesar de não ser um criacionista explícito, suas opiniões são simplesmente anticientíficas e não merecem destaque algum”. Incomodado com o fato de o The Chronicle estar publicando uma matéria sobre o Mind and Cosmos, declarou: “Se eles querem um artigo sobre astrologia (que é o equivalente ao que Nagel está dizendo), well, fine and good”.

Menciono aqui essas reações pois são representativas de como a intelligentsia contemporânea vê a questão da teleologia natural. Agora, é possível que você esteja se perguntando: Mas qual é mesmo o problema de alguém identificar aspectos teleológicos na natureza? Bem, se esses aspectos teleológicos são reais e não uma ilusão, cabe a pergunta lá do início: eles são intrínsecos ou extrínsecos? Se respondermos que, como no caso do condicionador de ar, esses aspectos teleológicos são extrínsecos, logo teremos que responder à questão que vem em seguida, sobre intencionalidade. E depois virá outra: intenções de quem? Note então que, dependendo de como essas questões forem respondidas, isso acaba nos levando para alguém, para uma pessoa. E a pergunta final, claro, será: Quem dotou a natureza de sentido e propósito? Aí é que está o busílis.

Não obstante os esforços de Nagel para defender, com base em sólidos argumentos filosóficos, a existência de leis ou princípios teleológicos que governariam a dinâmica da realidade física, em seu livro, ele fornece apenas algumas vagas sugestões sobre o que essas leis ou princípios seriam e como eles operariam. Contudo, mais ou menos à mesma época, um outro autor estava propondo ideias sobre o mesmo assunto, mas bem mais específicas. Mas isso é assunto para a próxima coluna…

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Partes deste texto, publicadas nos boletins da ABC² de junho e novembro de 2018, aparecem aqui com modificações substanciais.

1. John Haught, “Science, God and cosmic purpose, in The Cambridge Companion to Science and Religion, ed. Peter Harrison, 2010, pp. 260-261.

2. John Polkinghorne, Physics and Metaphysics in a Trinitarian Perspective, Theology and Science, 2010.

3. Peter Harrison, Os Territórios da Ciência e da Religião, 2015.

4. David Bentley Hart, The Experience of God, 2013.

5. Mark Perlman, The modern philosophical resurrection of teleology, The Monist, 2004.

6. Thomas Nagel, Mind and Cosmos: Why the Materialist Neo-Darwinian Conception of Nature Is Almost Certainly False, 2012.

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