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Roberto Covolan

Princípio Teotrópico: por Ele e para Ele

13/11/2023

Pois nele [Cristo] foram criadas todas as coisas nos céus e na terra [...], todas as coisas foram criadas por ele e para ele.¹

Se tivesse que escolher apenas um único versículo como o orientador da minha visão sobre as relações entre fé e ciência seria este citado na epígrafe. Aliás, o próprio título desta coluna — In Logos Omnia — fundamenta-se nele.

Embora não seja adepto do concordismo bíblico — entendido como a ideia de que Bíblia e ciência devem concordar literalmente quanto ao que expressam sobre o mundo natural —, tomo as expressões desse versículo todas as coisaspor ele e para ele em sentido forte, assumindo que, além do amplo espectro de significados que possam acolher, tenham, sim, implicações reais e visíveis quanto à forma como a natureza é constituída e opera.

Consideremos o seguinte trecho da epígrafe: todas as coisas foram criadas por ele. O prólogo do Evangelho de João é claríssimo ao afirmar a origem de todas as coisas: “No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus, e o Logos era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez”.²

A natureza, criação de Deus, está repleta de pistas logóicas, a começar pelo fato de que a razão é constitutiva da ordem natural. Não há um centímetro cúbico do mundo material que não seja repleto de uma profusão de entes e eventos governados por padrões, princípios e leis cuja descrição preencheria bibliotecas. Tudo isso, obviamente, concebido e produzido pelo uso da razão mais acurada. A razão (logos) governa tudo.

Em The Order of Things, Alister McGrath resume seu pensamento apresentado obras anteriores, estabelecendo uma conexão crucial:

A mesma racionalidade divina que as ciências naturais discernem dentro da ordem criada deve ser identificada no Logos encarnado, Jesus Cristo. Esta única racionalidade divina está, portanto, tanto “arraigada à criação” quanto “incorporada em Cristo”.³

Mais adiante, ele reafirma as mesmas ideias, dizendo que:

A ordem racional da criação está correlacionada com a encarnação, de forma que estudar a criação é estudar o mesmo Logos que foi encarnado em Cristo e que também dá forma aos contornos da racionalidade humana. Assim, em Jesus Cristo, a criação e a razão humana estão interrelacionadas por sua relação fundamental com o Logos divino.⁴

Embora seja necessário estabelecer uma clara distinção entre a encarnação enquanto corporificação pessoal do Logos de Deus num ser criatural particular e a criação do mundo a partir do nada como um cosmos ordenado, é central perceber o quanto a conexão estabelecida por McGrath nos ajuda a dar sentido à realidade em que estamos imersos.

Essa visão permite-nos, por exemplo, elucidar um dos grandes enigmas que temos diante de nós: a própria inteligibilidade do universo. Curiosamente, Albert Einstein referia-se a isso como um milagre: “O eterno mistério do mundo é a sua compreensibilidade… O fato de ele ser compreensível é um milagre.”⁵ Para nós que cremos, a racionalidade divina expressa na criação do mundo, pode ser — ao menos, parcialmente — discernida pela mente humana, já que fomos criados à imagem de Deus, e com isso propiciar a essência da própria ciência: entender o mundo.

O físico e teólogo John Polkinghorne coloca a questão nos seguintes termos:

Existe uma congruência entre nossas mentes e o universo, entre a racionalidade experimentada internamente e a racionalidade observada externamente. (...) Se for para encontrar uma explicação verdadeira para a congruência profundamente arraigada entre racionalidade presente em nossas mentes e a racionalidade presente no mundo, ela deve certamente residir em alguma razão mais profunda que seja a base de ambas. Tal razão seria suprida pela racionalidade do Criador.⁶

Se, por um lado, marcas logoicas na natureza são prontamente discerníveis⁷ — citamos aqui apenas a inteligibilidade do mundo natural por concisão —, por outro lado, identificar nessa mesma natureza que todas as coisas são para Ele certamente não é algo tão imediato. Contudo, uma leitura antrópica da realidade física pode fornecer ao nosso entendimento subsídios para isso.

No último quartel do século 20, os conhecimentos acumulados de física e astronomia permitiram estabelecer uma visão surpreendente do universo: o cosmos se apresenta como se tivesse sido detalhadamente planejado para permitir o desenvolvimento de vida dentro dele em algum momento de sua história.

De imediato, isso pode soar como se fosse uma afirmação tautológica. Ora, estamos aqui! E se estamos aqui, isso só pode ser porque o universo deveria ter condições propícias para acolher a vida, de forma que, algum dia, seres viventes poderiam voltar os olhos para o céu e constatar: “Estamos aqui apenas porque o universo foi generoso o suficiente para nos acolher”. Porém, não se trata de mera tautologia. Há uma clara função teleológica sendo atribuída ao universo a partir de constatações — notem bem — de caráter inteiramente científico: é a ciência revelando estreitos vínculos causais entre a constituição da matéria bruta e a existência de vida . Esse pensamento entrou para a literatura científica com o nome de princípio antrópico, que, como se pode imaginar, tem sido alvo de grande polêmica desde então.

Há uma clara função teleológica sendo atribuída ao universo a partir de constatações — notem bem — de caráter inteiramente científico: é a ciência revelando estreitos vínculos causais entre a constituição da matéria bruta e a existência de vida.

Um artigo publicado pela revista científica Nature no final dos anos 1970 dizia o seguinte:

Um dia pode ser que tenhamos uma explicação mais física para algumas das relações (...) que agora parecem autênticas coincidências. Por exemplo, podem eventualmente ser incluídas como consequência de alguma teoria unificada não formulada atualmente. No entanto, mesmo que todas as coincidências aparentemente antrópicas pudessem ser explicadas dessa maneira, ainda seria notável que as relações ditadas pela teoria física fossem também aquelas propícias para a vida.⁸

O artigo, intitulado O princípio antrópico e a estrutura do mundo físico, tem como um de seus autores Martin John Rees, cosmólogo e astrofísico britânico, que era o astrônomo real e foi presidente da Royal Society entre 2005 e 2010 — alguém de quem se poderia dizer que personificava integralmente o establishment científico à época. Isso que está dito nesta citação, ainda que de forma um tanto enviesada, é — antes de tudo — um reconhecimento. Embora a citação seja bastante cautelosa — algo de se esperar de tal figura e de tal publicação —, ela sintetiza a perplexidade do mundo científico ao deparar-se com um universo que revela, antes de seu completo desenvolvimento, um direcionamento, uma finalidade, um telos! O princípio antrópico marcou, assim, a reentrada triunfal da teleologia no debate científico — para desagrado de muitos. 

O princípio antrópico marcou, assim, a reentrada triunfal da teleologia no debate científico — para desagrado de muitos.

Deixe-me destacar apenas um aspecto dessa história. É certo que o ser humano enquanto ente físico sintetiza em si tudo o que se conhece sobre o universo — sem exaurir o que ainda possa revelar —, em especial o fato de sermos constituídos de átomos. São exatamente os mesmos átomos que dão substância e forma a todo o mundo material. Embora não possamos ser reduzidos aos átomos que nos constituem, eles perfazem parte significativa de quem (ou do que) somos. E de onde provém os átomos?

A resposta completa sobre como se originaram os átomos é um pouco demorada — o processo real, muito mais: da ordem de um bilhão de anos. Em síntese — por favor, tome essa expressão ao pé da letra: o processo foi de síntese mesmo —, os átomos foram forjados no interior das estrelas. E continuam sendo: nosso Sol que o diga.

Uma resposta expressa é a seguinte: os elementos químicos mais leves — os primeiros elementos da tabela periódica: hidrogênio, hélio e um pouco de lítio — foram gerados por um processo de nucleossíntese que ocorreu algumas centenas de milhares de anos após o Big Bang. Mais tarde, com a formação das primeiras estrelas constituídas justamente desses elementos leves, iniciou-se um processo chamado de nucleossíntese estelar. Esses elementos leves passaram a funcionar como “combustíveis” de reações termonucleares no interior das estrelas, gerando os elementos mais pesados e toda a energia luminosa e térmica que é irradiada para o espaço. É essencialmente este o processo pelo qual o Sol nos ilumina e aquece.⁹

A razão de eu mencionar este assunto aqui é porque as reações nucleares que ocorrem no interior das estrelas são governadas pelas quatro forças fundamentais da natureza (sim, volto a falar delas): força nuclear forte, força nuclear fraca, força eletromagnética e força gravitacional. Essas quatro forças possuem propriedades específicas tais e atuam de tal maneira que a estrutura das estrelas e a dinâmica que se estabelece em seu interior fazem delas verdadeiras fornalhas nucleares que sintetizam átomos de matéria e geram energia abundante, substratos fundamentais para a nossa existência.

Eventualmente, uma estrela entra em fase de exaurimento e primeiro colapsa para então explodir, dando origem a uma supernova, uma imensa explosão que expele para o espaço interestelar os elementos que sintetizou. Assim, boa parte da matéria de que somos constituídos vem daí. 

Tendo em vista este processo, alguns assumem a liberdade poética de dizer que somos feitos do pó das estrelas, o que não deixa de ser parcialmente verdade. Vemos daí o quanto estamos conectados ao cosmos como um todo. Não se trata de algo esotérico: simplesmente somos feitos de matéria cósmica mesmo.

Com esta brevíssima referência à astrofísica estelar, espero ter oferecido um vislumbre de um dos aspectos que aponta na direção do princípio antrópico. Mas, se desde os seus primórdios o universo parece destinado a abrigar a vida, seria este o seu ponto de chegada? Vida para quê?

Ocorre que, mais do que meros seres viventes, somos seres dotados de consciência reflexiva e inteligência, que nos possibilitam chegar aos fantásticos achados científicos referidos anteriormente, demonstrando a posição de privilégio que ocupamos em toda a criação. Não obstante isso, é flagrante a nossa imperfeição.

Agostinho abre seu livro Confissões citando os Salmos: “Grande é o Senhor e digno de ser louvado; sua grandeza não tem limites; é impossível medir o seu entendimento” (Sl 145.3; 147.5), para em seguida, dirigindo-se a Deus, confessar abertamente a nossa incompletude:  “[…] o ser humano, mera partícula de tua criação, quer te louvar. Tu nos despertaste para o prazer de te louvar, pois nos criaste para ti, e o nosso coração não tem sossego enquanto não repousar em ti”.¹⁰

Há aqui em Agostinho dois pontos importantes. Primeiro, sua declaração “pois nos criaste para ti” responde, em parte, ao que estamos buscando: evidências de que todas as coisas foram criadas para ele. Contudo, gostaríamos de encontrar essas evidências na natureza, quem sabe, em nossa própria natureza.

Agostinho continua: “o nosso coração não tem sossego enquanto não repousar em ti”. Embora não seja exatamente a isso que Agostinho está se referindo, há em sua oração algo da noção que, mais tarde, veremos nascer com Calvino: a ideia de que somos portadores de uma espécie de sexto sentido em relação à existência de Deus, ou seja, um senso inato que nos permitiria intuir a divindade. Calvino afirma:

Consideramos indiscutível que existe nas mentes humanas e, na verdade, por instinto natural, algum senso de divindade (sensus divinitatis), uma vez que o próprio Deus, para evitar que qualquer homem finja ignorância, dotou todos os homens com alguma ideia de sua divindade…¹¹

Nos dias de hoje, o filósofo cristão Alvin Plantinga cita essa ideia: “[…] há uma espécie de faculdade ou mecanismo cognitivo, a que Calvino chama de sensus divinitatis, ou sentido do divino, que em muitíssimas circunstâncias produz em nós crenças acerca de Deus”, para então redefini-la à sua maneira: “O sensus divinitatis é uma disposição ou conjunto de disposições para formar crenças teístas em várias circunstâncias, em resposta aquelas condições ou estímulos que desencadeiam o funcionamento desse sentido do divino”.¹² Ao mencionar que condições e estímulos poderiam desencadear o sensus divinitatis, Plantinga curiosamente acrescenta:

Calvino pensa, especialmente, em alguns dos espetáculos grandiosos da natureza. Como Kant, Calvino, a esse respeito, impressionava-se principalmente com as maravilhosas e intrincadas estruturas dos céus estrelados acima de nós.¹³

Podemos entender perfeitamente. E concordar.

Dentro de uma perspectiva mais empírica, atualmente a ciência cognitiva da religião tem realizado pesquisas científicas para tentar entender como as mentes humanas processam naturalmente pensamentos, sentimentos e práticas religiosas a partir de suas faculdades cognitivas. Dois estudiosos desse assunto concluem um artigo recente sobre o sensus divinitatis com o seguinte pensamento:

A teologia e a ciência cognitiva argumentam que a crença no divino é, pelo menos até certo ponto, natural. Calvino e Plantinga afirmaram que a humanidade é dotada de um sensus divinitatis pelo qual todos podem sentir Deus. Vários cientistas cognitivos concordam que a crença em seres sobrenaturais é natural para a espécie humana e o resultado de processos cognitivos naturais do desenvolvimento.¹⁴

Essas ponderações — talvez excessivamente sucintas — têm o sentido de mostrar, a partir de uma perspectiva ampla, que o próprio universo — ou a própria criação — se volta para Deus por meio do ser humano, que enfeixa em si o caráter antrópico da história cósmica.

Penso, então, que para além do princípio antrópico, o que temos efetivamente a operar é um princípio teotrópico. Para entender a ideia, pense nas plantas como o girassol, que sempre se voltam para o Sol e, por isso, são chamadas de heliotrópicas. Da mesma forma, somos seres teotrópicos, necessitados de nos voltarmos constantemente para Deus. 

Para entender a ideia, pense nas plantas como o girassol, que sempre se voltam para o Sol e, por isso, são chamadas de heliotrópicas. Da mesma forma, somos seres teotrópicos, necessitados de nos voltarmos constantemente para Deus.

Entendo, então, que sim: todas as coisas foram feitas por ele e para ele. De inúmeras e inesperadas maneiras, a ciência também dá testemunho desse fato.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Partes deste texto, publicadas nos boletins da ABC² de junho e novembro de 2018, aparecem aqui com modificações substanciais.

1. Colossenses 1:16.

2. João 1:1-3.

3. Alister McGrath, The Order of Things: Explorations in Scientific Theology, 2006, p. 6.

4. Idem, p. 14.

5. Albert Einstein, “Physics and RealityJournal of the Franklin Institute, March 1936.

6. John Polkinghorne, Science and Creation: The Search for Understanding, 2006, pp. 29, 31.

7. Exatamente por isso, o apóstolo Paulo chama de “indesculpáveis” aqueles que não as reconhecem (Carta de Paulo aos Romanos, 1:20).

8. Bernard Carr & Martin Rees, “The anthropic principle and the structure of the physical world, Nature, 1979, pp. 605-612.

9. No momento em que esta coluna está sendo redigida, há uma grande discussão a respeito da validade da teoria do Big Bang. Dados recentes do telescópio espacial James Webb parecem ter levantado dúvidas a este respeito. Este assunto está sendo discutido aqui na Unus Mundus em um artigo de duas partes. A primeira parte, já foi publicada e pode ser acessada aqui. A segunda parte será publicada em breve.

10. Agostinho, Confissões, 2017.

11. João Calvino, Institutes of the Christian Religion, tradução própria da versão de Henry Beveridge, 2008.

12. Alvin Plantinga, Crença Cristã Avalizada, 2018, p. 190.

13. Ibidem.

14. Tyler Greenway e Justin Barrett, “Cognitive Science, Sensus Divinitatis, and Christ, in Andrew B. Torrance and Thomas H. McCall (org.), Christ and the Created Order, 2018, p. 252.

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