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Ellipse 1

Roberto Covolan

Mecânica Quântica e Teologia

É possível relacionar esses campos?

25/05/2023

To see a world in a grain of sand
And a heaven in a wild flower
Hold infinity in the palm of your hand
And eternity in an hour.¹

Auguries of Innocence, William Blake (1803)

Pode ser só uma questão de percepção pessoal, mas a estrofe em epígrafe me parece o naco de literatura que os físicos mais gostam de citar. Talvez por enxergarem nele uma espécie de antecipação, em linguagem fantástica, do surpreendente fato que a teoria da relatividade e a mecânica quântica revelariam: o macrocosmo emerge do microcosmo. Não faço ideia se foi mesmo a algo assim que o poeta quis aludir — ainda mais sendo ele William Blake —, mas para os meus ouvidos de físico suas palavras soam como se fosse. Afinal, o caráter relativo do transcurso do tempo pode ser evidenciado por uma adequada transformação de coordenadas entre sistemas referenciais. Além disso, pode-se dizer que, metaforicamente, os físicos conseguiram capturar o infinito na palma da mão, pois muitas vezes tiveram que fazê-lo desaparecer na ponta do lápis para que a realidade física, formalmente derivada, fizesse sentido. Sim, a matemática permite muitas coisas, inclusive escapar pela tangente. 

Bem, o ponto aqui é que — fato extraordinário — a realidade transcende a poesia e o macrocosmo maravilhosamente emerge do microcosmo. Se Blake de fato pensava assim, é algo que seus exegetas poderão conjecturar. Mas, para nós que temos evidência dessa realidade, há um grande enigma oculto no singelo verbo empregado para conectar os extremos: emerge. Emergência aqui não consiste apenas em ir encaixando os bloquinhos básicos de construção do universo como se fosse um jogo de lego — quarks e glúons, prótons e nêutrons, átomos e moléculas, agregados moleculares e nanopartículas — até chegarmos às coisas que habitam o mundo em que vivemos. Deixando de lado, por ora, o enorme problema das propriedades emergentes, na transição da escala micro para a escala macro há a misteriosa conexão entre o mundo quântico e o mundo clássico. 

Aqui uma explicação: o “mundo clássico” é o mundo em que vivemos, assim chamado por ser regido pelas leis da física clássica. O mundo quântico é o microcosmo de átomos, moléculas e partículas subatômicas regido pela mecânica quântica, onde coisas muito estranhas acontecem. Opa! Temos, então, a existência de dois mundos? Como assim? Bem, é mais ou menos isso, mas convém ir com calma num assunto como esse, sobretudo quando você escreve numa revista denominada Unus Mundus. Para muitos, na verdade, este é já um problema resolvido, pois a descoerência, um fenômeno que ocorre quando um sistema quântico interage com o seu ambiente fazendo com que ele perca suas propriedades quânticas e se comporte de forma clássica, é que seria o responsável pela transição de um mundo ao outro. 

Bem, o ponto aqui é que — fato extraordinário — a realidade transcende a poesia e o macrocosmo maravilhosamente emerge do microcosmo.

Portanto, segundo essa visão, a despeito das diferenças entre os mundos clássico e quântico, ambos fazem parte da mesma realidade física. Os paradoxos da mecânica quântica não negam as leis da física clássica, mas revelam suas limitações na descrição do comportamento da matéria em um nível fundamental. Isso significaria, então, que vivemos essencialmente em um mundo de natureza quântica e que, de alguma maneira, as leis da física clássica resultam das leis que regem o mundo quântico. 

A mecânica quântica, originada em meados dos anos 1920 com os trabalhos pioneiros de Heisenberg, Schrödinger e Dirac — a propósito, estamos próximos de comemorar um século dessa proeza científica —, passou por um grande desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial, dando origem a algo chamado teoria quântica de campos. De acordo com essa teoria, em essência, toda a materialidade existente decorre de campos quânticos que permeiam todo o espaço. Partículas subatômicas — os building blocks do universo — nada mais seriam que excitações desses campos. 

E o que isso tem a ver com teologia?

Se, de fato, a realidade última do ponto de vista físico é de natureza quântica, isso não deveria, de alguma maneira, informar a nossa teologia natural? Como poderia ser isso? Diante desse desafio, alguns autores importantes — dentre os quais o físico e teólogo Robert John Russell e o filósofo Alvin Plantinga — responderam com a ideia de ação divina ao nível quântico. 

Colocando a questão de forma bastante sucinta, pode-se pressupor três tipos de ação divina impactando o mundo natural: a ação divina ordinária, pela qual Deus cria e sustenta os padrões regulares do mundo físico, através de leis e processos naturais; a ação divina singular, pela qual Deus realiza prodígios, maravilhas e milagres; e, entre esses dois tipos, uma forma de ação divina especial, pela qual se dão atos providenciais específicos, previstos, pretendidos e de alguma forma realizados por Deus neste mundo. O interesse dos nossos pensadores Russell e Plantinga voltou-se principalmente para este terceiro tipo de ação divina. 

pode-se pressupor três tipos de ação divina impactando o mundo natural: a ação divina ordinária, pela qual Deus cria e sustenta os padrões regulares do mundo físico, através de leis e processos naturais; a ação divina singular, pela qual Deus realiza prodígios, maravilhas e milagres; e, entre esses dois tipos, uma forma de ação divina especial, pela qual se dão atos providenciais específicos, previstos, pretendidos e de alguma forma realizados por Deus neste mundo.

Veja: não se cogita aqui de teorizar quanto ao aspecto sobrenatural da ação divina que, por definição, está fora do alcance científico. Contudo, presume-se que haveria uma instância em que a ação divina atravessaria uma membrana metafísica² e adentraria o mundo natural, provocando os efeitos pretendidos por Deus. [Ok, alguns certamente já colocariam as suas objeções neste ponto. Aliás, eu mesmo o faria. Mas, prossigamos com o raciocínio.] Segundo esta forma de pensar, haveria aquilo que Austin Farrer chamou de causal joint e que costumo traduzir por articulação causal: uma instância em que as intenções divinas se articulam eficazmente com a realidade física, mas sem violar as leis naturais, não sendo, portanto, cientificamente identificáveis. 

Mas como Deus poderia interagir com a realidade física sem violar as leis naturais?

Um dos aspectos mais proeminentes da mecânica quântica — cercado, aliás, de controvérsias — é que esta é eminentemente não determinista. Se este aspecto não advém tão somente de dificuldades epistemológicas, mas diz respeito ao caráter ontológico do mundo subatômico, os fundamentos da realidade física parecem, então, se desvanecer em uma bruma de incertezas e imponderáveis. Russell, porém, defende que a indeterminação quântica é justamente o mecanismo pelo qual Deus interage com a natureza: Deus seria o determinador das indeterminações quânticas. Para ele, esta é a forma como a ação divina pode se dar de maneira objetiva e não intervencionista já que, segundo os próprios fundamentos da teoria, não haveria causas naturais eficientes para determinar eventos quânticos específicos. 

esta é a forma como a ação divina pode se dar de maneira objetiva e não intervencionista já que, segundo os próprios fundamentos da teoria, não haveria causas naturais eficientes para determinar eventos quânticos específicos.

Plantinga defende essencialmente a mesma ideia, embora abrace uma interpretação da mecânica quântica distinta daquela adotada por Russell. Para ele, 

… se o mundo físico macroscópico decorre do microscópico, como se supõe, Deus poderia controlar o que acontece no nível macroscópico, causando os resultados apropriados de colapso microscópico. Dessa forma, Deus pode exercer uma orientação providencial sobre a história cósmica; ele poderia, dessa forma, guiar o curso da história evolutiva, fazendo com que as mutações certas surjam no momento certo e preservando as formas de vida que levam aos resultados que ele pretende. Da mesma maneira, poderia também guiar a história humana. Ele poderia fazer isso sem, de forma alguma, “violar” a natureza das coisas por ele criadas.³

Plantinga fala em “colapso microscópico”. O ponto aqui é que o estudo de um sistema quântico leva, em geral, a uma variedade (ou mesmo, infinidade) de estados físicos possíveis, dos quais a priori só se conhece suas probabilidades de ocorrência. Quando se realiza uma medida experimental sobre o sistema e este apresenta um resultado específico, se diz que ocorreu o “colapso” do sistema para aquele determinado estado (dando-se também a supressão de todos os demais). O que Plantinga conjectura aqui é que Deus poderia atualizar (fazer colapsar) estados específicos dando direcionamento aos eventos quânticos e determinando, assim, a realidade macroscópica a partir de seus fundamentos microscópicos. 

Faz sentido isso? Bem, trata-se de um ponto de vista defendido por alguns pensadores de peso, como Russell e Plantinga, mas questionado por outros do mesmo calibre. Diante da impossibilidade presente de sermos totalmente assertivos acerca dessas ideias, convém ficar com o que costumam dizer os italianos: Se non è vero, è ben trovato. De fato, é um belo palpite. 

Seja como for, esta é apenas uma amostra de como um dos aspectos da mecânica quântica pode ser relevante do ponto de vista da teologia. Qual não seria, então, o impacto na nossa teologia natural se, ao invés de presumirmos uma ontologia clássica para o mundo físico, entendêssemos que devemos partir de uma ontologia quântica? Eis aí um belo tema para um doutorado em teologia ou em filosofia da religião. Quem se habilita?

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Para ver um mundo em um grão de areia 

E um céu em uma flor silvestre

Segure o infinito na palma da mão

E a eternidade em uma hora.

(Tradução própria)

2. A ideia de membrana aqui é de Mark Harris; o adjetivo é por minha conta.

3. Alvin Plantinga, Where the conflict really lies: science, religion, naturalism, 2011, p.116 (Tradução própria).

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