QUEM SOMOS
Ellipse 1

Roberto Covolan

John Polkinghorne, o açougueiro vegetariano*

08/03/2024

John Polkinghorne costumava se divertir com a perplexidade causada ao se apresentar a alguém como físico e teólogo. Dizia que as pessoas o olhavam como se tivesse dito que era um “açougueiro vegetariano”. Na verdade, ele era um daqueles raros indivíduos que detêm expertise intelectual significativa tanto em ciência como em teologia, em um nível que os capacita a formular análises e escrutínios academicamente fundamentados sobre as questões centrais que surgem da interconexão entre esses campos.

Créditos: Louis Monier/ Gamma-Rapho.

A maior parte da vida acadêmica de Polkinghorne se deu no Trinity College, na Universidade de Cambridge, instituição que teve em seus quadros figuras da magnitude de Isaac Newton e James Clerk Maxwell, dois dos maiores físicos de todos os tempos. Portanto, foi também com grande perplexidade que seus colegas de Cambridge assistiram ao seu gesto de abdicar de umas das cátedras mais importantes e tradicionais do mundo da física, antes dos 50 anos de idade, para ingressar num seminário teológico. 

Portanto, foi também com grande perplexidade que seus colegas de Cambridge assistiram ao seu gesto de abdicar de umas das cátedras mais importantes e tradicionais do mundo da física, antes dos 50 anos de idade, para ingressar num seminário teológico.

Falecido há quase exatos três anos da data em que escrevo — o que, aliás, me motivou a homenageá-lo com esta singela coluna —, sua obra é um dos esteios sobre o qual se erigiu a investigação contemporânea acerca da relação entre ciência e religião.

Polkinghorne nasceu em 1930, no seio de uma família de classe trabalhadora, em Weston-super-Mare, uma cidade litorânea situada no sudoeste da Inglaterra. Desde menino, revelou um talento especial para a matemática. Uma mudança fundamental em sua vida aconteceu ao final da Segunda Guerra Mundial, quando seu pai foi promovido a chefe dos correios da cidade de Ely e sua família se transferiu para lá. As dificuldades iniciais para encontrar-lhe uma escola nas vizinhanças de sua nova residência levaram-no a estudar na Perse School, em Cambridge, para onde se dirigia diariamente de trem. 

A mudança da família para uma localidade próxima à Universidade de Cambridge durante sua adolescência facilitou-lhe o acesso a uma formação educacional de qualidade e, mais tarde, a conseguir uma bolsa de estudos para estudar matemática no Trinity College, uma das instituições de maior prestígio daquela universidade, da qual, como vimos, viria a se tornar professor. Durante o curso de graduação em matemática e física teórica no Trinity, fez parte da CICCU (the Cambridge Inter-Collegiate Christian Union), período em que consolidou a fé cristã que já trazia da infância.  

Depois dos estudos de graduação, Polkinghorne continuou em Cambridge para fazer o seu doutorado em física teórica no grupo de pesquisa de Paul Adrien Maurice Dirac, um dos pioneiros da mecânica quântica. Às vezes, se gabava um pouco desse fato, dizendo que aprendeu mecânica quântica com um de seus criadores. Seu orientador de doutorado durante esse período foi Abdus Salam, que viria a ganhar o prêmio Nobel de física de 1979. Concluído o doutorado em Cambridge, realizou estágio de pós-doutorado no famoso Caltech (California Institute of Technology), nos Estados Unidos, onde trabalhou sob a supervisão de Murray Gell-Mann, um dos criadores da teoria de quarks e que também viria a receber o prêmio Nobel de física (1969). 

Tendo alcançado uma formação científica de altíssimo nível, mais tarde Polkinghorne retorna ao Reino Unido para assumir uma posição na Universidade de Edimburgo. Depois de dois anos na Escócia, volta à Universidade de Cambridge, em 1958, passando a ocupar uma posição no Trinity College, onde chega à cátedra de física matemática em 1968, posição que ocuparia até 1979. 

Polkinghorne desenvolve em Cambridge uma brilhante carreira acadêmica, tendo sido eleito fellow da Royal Society em 1974. Seus principais esforços científicos resultaram em contribuições fundamentais para a compreensão da força nuclear forte, que mantém os núcleos atômicos unidos. Durante o período como professor de física matemática no Trinity, teve entre seus alunos Brian David Josephson, ganhador do prêmio Nobel de Física de 1973, e Martin John Rees, astrônomo real e presidente da Royal Society de 2005 a 2010.

Em 1979, depois de cerca de 25 anos de pesquisas em física de partículas elementares, tomou a surpreendente decisão de abdicar de sua posição de professor titular em Cambridge para se dedicar à formação teológica e ao ministério pastoral. Em sua autobiografia, ele narra como foi dizer aos colegas cientistas sobre sua decisão de deixar a academia e dedicar-se à vida eclesiástica em tempo integral:

As próximas pessoas a serem informadas foram meus colegas do nosso grupo de pesquisa. Nós, professores seniores, estávamos em uma reunião para definir vagas de pós-doutorado para o ano seguinte, quando, depois de resolvido o assunto, eu disse: "Não vão ainda, tenho mais uma coisa para lhes contar". Lembro-me vividamente do silêncio atônito que se seguiu ao meu anúncio. Foi quebrado por Peter Landshoff. Ele não é uma pessoa religiosa, mas me disse que, embora não tivesse previsto o que eu iria fazer, se lhe tivessem dito que eu estava deixando a física, ele teria adivinhado o que eu escolheria fazer em seguida. Achei esse comentário útil e solidário, e fiquei grato pela resposta de aceitação geral que recebi dos colegas de departamento. Na época, Steven Weinberg, ganhador do Prêmio Nobel de Física e ateu convicto, era [professor] visitante em nosso grupo. Tive a oportunidade de contar-lhe sobre minha decisão pouco convencional quando ele e sua esposa estavam jantando conosco em nossa casa. Steve é o tipo de ateu que parece gostar de falar sobre Deus e, embora não pudesse partilhar das minhas convicções, também não tentou menosprezar as minhas intenções.¹

Tendo deixado o Trinity, Polkinghorne foi para a Westcott House, faculdade anglicana de teologia em Cambridge. Depois de ter sido ordenado ministro anglicano (1982) e de passar cinco anos dedicando-se ao trabalho pastoral em Bristol e em Blean, nas proximidades da Cantuária, Polkinghorne foi convidado a voltar a Cambridge, primeiro como deão do Trinity Hall (1986) e depois para assumir a posição de reitor do Queens’ College (1989). Além das atividades como reitor, passou a escrever e a ministrar palestras. Tornou-se então um autor mundialmente reconhecido por obras seminais sobre a relação entre ciência e religião, tendo sido um dos pioneiros a defender a necessidade de diálogo entre esses dois campos e, com isso, fortalecer a crença em Deus em uma era científica.

Tendo atuado boa parte de minha vida acadêmica na mesma área de pesquisa de John Polkinghorne, eu o conhecia previamente de papers científicos e do livro The Analytic S-Matrix, um texto clássico para o estudo de interações hadrônicas em física de altas energias. Qual não foi a minha surpresa quando, na década de 90, topei com textos de Polkinghorne tratando da relação entre ciência e religião! Textos, aliás, com algumas características muito próprias.

Diferentemente de muitos scholars, que abordam seus temas de estudo em textos volumosos e prolixos, desde seu primeiro livro sobre religião e ciência² Polkinghorne desenvolveu um estilo sucinto e muito próprio de ir direto ao ponto, em obras relativamente breves.

A despeito de lidar com temas altamente complexos, o texto de Polkinghorne é enxuto e marcado por clareza e profundidade, evitando o uso de jargão técnico e a linguagem cifrada dos especialistas. Contudo, possuidor da expertise de quem domina os temas centrais em ambos campos, ele consegue apresentar seus argumentos em religião e ciência com precisão e autoridade, sem evitar a discussão de complexos conceitos científicos e teológicos.

A despeito de lidar com temas altamente complexos, o texto de Polkinghorne é enxuto e marcado por clareza e profundidade, evitando o uso de jargão técnico e a linguagem cifrada dos especialistas.

Outro ponto a destacar é a forma como seu texto reflete um senso de humildade e abertura a diferentes perspectivas: ele reconhece os limites do conhecimento humano — e do próprio conhecimento — e efetivamente incentiva um diálogo construtivo entre ciência e religião. É interessante observar a naturalidade com que ele integra insights desses dois campos. Em Reason and Reality, por exemplo, ele diz:

As doutrinas de um Deus tripessoal e que se deu a conhecer em termos humanos contêm aqueles elementos de surpresa e profundidade intelectual que são característicos das melhores teorias científicas. Nossa investigação do mundo físico expandiu nossas mentes e ampliou nossas noções do concebível. Seria realmente surpreendente se em nosso encontro com Deus não ocorresse o mesmo. Não estou dizendo nada tão ridículo quanto afirmar que depois da teoria quântica vale qualquer coisa. Os novos insights dessa teoria só foram adotados depois de muita luta, motivados racionalmente pela necessidade de responder à forma inflexível como as coisas são. Acredito que a teologia esteja empenhada numa tentativa igualmente exigente de fazer justiça ao nosso encontro com a alteridade da natureza divina. Quero simplesmente dizer que a nossa experiência do mundo quântico nos prepara para explicações da realidade que não se submeterão à tirania indevida do senso comum, mas que procurarão, por mais difícil que seja, respeitar a natureza daquilo com que temos de lidar.³

Veja, por exemplo, a forma como ele discute a doutrina da criação, rejeitando a confusão que frequentemente se faz entre o conceito teológico de criação e o estudo científico das origens — confusão que, às vezes, ocorre até entre pessoas com alguma proficiência no diálogo entre fé e ciência:

O ato de criação é um processo contínuo. Rejeitamos a ideia deísta de que Deus simplesmente acendeu o pavio para detonar o Big Bang e então deixou o mundo entregue a seus próprios recursos. Tal ideia atribui um grau muito elevado de autonomia ao mundo e às leis que governam seu processo. O entendimento cristão é de que o cosmos não é autossustentável, mas é mantido por um ato contínuo de vontade de seu Criador. Um foco muito intenso nos dois primeiros capítulos de Gênesis, ou uma interpretação inadequada deles, às vezes induziu os cristãos a colocarem ênfase indevida em uma doutrina da criação concebida como uma doutrina da origem temporal. Daí o pensamento errôneo de que a cosmologia do Big Bang, com seu ponto de partida datável para o universo como o conhecemos, tem um valor superior para a teologia do que a teoria do estado estacionário, que essencialmente supunha que o universo era eterno. Esta última está agora desacreditada desde a descoberta em 1965 da radiação cósmica de fundo, uma espécie de sussurro que ecoou naquela longínqua era explosiva do Big Bang. No entanto, a teologia poderia ter convivido com qualquer teoria física, pois a afirmação de que Deus é Criador não é uma afirmação de que em um determinado momento Ele fez algo, mas sim que, em todos os momentos, Ele mantém o mundo em existência. A doutrina da criação é uma doutrina da origem ontológica.⁴

Poderíamos seguir indefinidamente citando insights fantásticos de Polkinghorne sobre vários tópicos centrais na relação entre fé e ciência, como ação divina, inteligibilidade do universo, princípio antrópico e tantos outros.

Além da importância de sua obra escrita, ele esteve na liderança de  importantes iniciativas, como a criação da Society of Ordained Scientists e da International Society for Science and Religion, da qual foi presidente fundador. Em 1997, Polkinghorne foi nomeado Cavaleiro Comandante da Ordem do Império Britânico e, em 2002, recebeu o prêmio Templeton pelas relevantes contribuições ao estudo das relações entre ciência e religião. Nada mal para um “açougueiro vegetariano”.

Em 1997, Polkinghorne foi nomeado Cavaleiro Comandante da Ordem do Império Britânico e, em 2002, recebeu o prêmio Templeton pelas relevantes contribuições ao estudo das relações entre ciência e religião. Nada mal para um "açougueiro vegetariano".

Para concluir, permitam-me citar aqui mais uma vez a longa epígrafe que ilustrou nosso editorial de lançamento e que reflete a visão de John Polkinghorne e, em boa medida, a da Unus Mundus:

Eu acredito muito apaixonadamente na unidade do conhecimento. Existe um mundo uno que constitui a realidade — o mundo uno que tentamos descrever a partir da nossa experiência. Claro, há os diferentes aspectos e níveis dessa realidade; nosso encontro com o mesmo evento pode se dar de diferentes maneiras. Poderíamos descrevê-lo em termos estritamente físicos, ou como portador de beleza, ou um momento de escolha moral; pode ser até o momento em que encontramos Deus. Existem essas diferentes camadas, mas de algum modo todas elas precisam se encaixar. Quero conectá-las de uma forma que respeite as diferentes características de cada nível que experiencio, bem como o fato de ser a experiência de uma realidade única.⁵

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Algumas porções deste texto foram publicadas em Ciência & Sapiência, Volume 2, Unidade 7.

1. John Polkinghorne, From physicist to priest: An autobiography, 2007, pp.78-79.

2. John Polkinghorne, The Way The World Is: The Christian Perspective of a Scientist, 1983.

3. John Polkinghorne, Reason and Reality: The Relationship between Science and Theology, 2011, p. 98.

4. John Polkinghorne, Science and Creation: The Search for Understanding, 1988, pp. 66-67.

5. John Polkinghorne, Cross Currents, Vol. 48, n.1, 1998.

Outras colunas de roberto covolan

Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Mistérios da Ciência
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia
Coluna_Recorte In Logos Omnia

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!