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ARTIGO

Hospitalidade hermenêutica

Linguagem, interpretação e acolhida

Tiago Melo|

01/07/2023

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Tiago de Melo Novais

Graduado em Teologia pela FTSA, mestre em Ciências da Religião pela PUC Campinas e doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. Trabalha como editor assistente na Academia ABC² e como professor no Seminário Teológico Batista de Campinas.

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Como citar

NOVAIS, Tiago de Melo. Hospitalidade hermenêutica: linguagem, interpretação e acolhida. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

No princípio era a hermenêutica.
Richard Kearney.

Um título desconhecido pede uma explicação. No texto Uma fé pública, o teólogo Miroslav Volf utiliza o termo que serve como título deste artigo. No contexto da obra, Volf propõe que cada religião fale em sua própria língua no espaço público. Para isso, é preciso que as pessoas de fé pratiquem uma hospitalidade hermenêutica com relação às alegações de verdade contidas nos textos sagrados alheios, para que, assim, possam “adentrar com simpatia nos esforços dos outros para interpretar os textos sagrados deles, e elas devem também ouvir como os outros as percebem como leitoras dos seus próprios textos”.¹ O objetivo do autor é tornar o outro um companheiro com quem se troca “presentes hermenêuticos”, e, assim, ajudar na tarefa de interpretar a fé.

À vista disso, percebemos que, no contexto de onde tiramos o termo, a hospitalidade hermenêutica não diz muito sobre si mesma. Volf não responde, por exemplo, o que significa, exatamente, tal hospitalidade hermenêutica, e também não explora a junção da noção ética de hospitalidade com o campo de estudos da hermenêutica. Aqui está a nossa oportunidade. Neste artigo, desenvolvemos a temática e ampliamos suas implicações. Mas comecemos pelo básico.

Seres hermenêuticos

Não é difícil constatar que, embora compartilhemos o mesmo mundo, disputamos a verdade sobre ele. Isso indica que estamos constantemente em busca de uma certa estrutura interpretativa capaz de nos fornecer as verdades fundamentais sobre as grandes questões da vida – o que inclui a verdade sobre nós, sobre Deus e sobre a própria realidade em que estamos inseridos. 

As religiões, por exemplo, se prestam a tal função, assim como grandes sistemas filosóficos e ideológicos que surgem como produto de um empreendimento coletivo forjado a muitas mãos durante séculos – ou mesmo milênios. Há também as tentativas individuais, cuja estrutura interpretativa é fruto de uma reflexão subjetiva, ligada às motivações pessoais, à história de vida, à situação socioeconômica, e assim por diante. Para ilustrar, basta darmos um passo atrás e, nos vendo de fora, nos encontrarmos inevitavelmente dentro de ambas, isto é, estamos localizados dentro das estruturas interpretativas que nos foram legadas, as quais independem de nossa existência individual, e, ao mesmo tempo, dentro daquela perspectiva singular de interpretação que possui as nuances de nossa subjetividade. 

Sem muito esforço, já nos percebemos no campo da hermenêutica tão logo dizemos que, coletiva ou individualmente, interpretamos para compreender. No entanto, não podemos tomar a afirmação por pressuposto. Pelo contrário: temos de indagar por que, afinal, precisamos interpretar. A resposta passa por uma delimitação metodológica: para a hermenêutica filosófica, desde os mestres da suspeita até Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur, o que está em jogo é a própria finitude humana e sua incapacidade de obter uma correspondência direta entre a realidade e o conteúdo da consciência.²

Outra forma de pôr a questão é afirmando que, para a hermenêutica, não há algo como experiência imediata, pois em todas suas dimensões a experiência humana é interposta por mediações. Aqui se destacam a mediação do tempo, do espaço e da linguagem dentre elas, a linguagem possui protagonismo no campo hermenêutico, pois é responsável por transformar a percepção em experiência, e experiência significativa. Por sua vez, as mediações são marcas da criaturidade³ humana, pois, se não estivéssemos submetidos à passagem do tempo, à limitação espacial e à necessidade do domínio de um conjunto linguístico determinado, partilharíamos dos atributos divinos que dispensam qualquer necessidade de interpretação. Na interpretação, supõe-se que o intérprete esteja invariavelmente situado local, temporal e linguísticamente, não podendo ignorar ou ultrapassar tais limitações, pois elas são partes constitutivas da sua humanidade. Temos de interpretar, portanto, não pela indisposição do objeto, mas pela finitude do sujeito.⁴

Na interpretação, supõe-se que o intérprete esteja invariavelmente situado local, temporal e linguísticamente, não podendo ignorar ou ultrapassar tais limitações, pois elas são partes constitutivas da sua humanidade. Temos de interpretar, portanto, não pela indisposição do objeto, mas pela finitude do sujeito.

Ademais, temos de ressaltar a proeminência da linguagem, que, no campo hermenêutico, não se trata somente de uma ferramenta, quer de representação – como na nomeação taxonômica de um animal ou planta –, quer de expressão – como na indicação verbal de uma necessidade por meio da pronúncia de palavras previamente conhecidas por ambas as partes –, mas do modo por excelência de atribuirmos sentido à realidade – incluindo a representação e a comunicação. 

A conhecida distinção sociológica entre o mundo da natureza e o mundo da cultura, por exemplo, está fundamentada na ideia de que a linguagem singulariza o ser humano em relação às outras formas de vida, que, diferentes de nós, não necessitam de sentido para realizar suas tarefas cotidianas e estabelecer relações.⁵ Por intermédio da linguagem, criamos signos e símbolos que dão sentido à experiência – e, segundo a sociologia do conhecimento, que mantêm vivas as objetivações sociais que dão corpo à sociedade, como as regras e os costumes. Os textos, formas privilegiadas de compreensão do mundo da cultura, servem como registro dos sentidos que atribuímos ao mundo da natureza. Ao interpretarmos textos, estamos revisitando, reforçando ou reformulando os sentidos dados à realidade, à humanidade e a Deus.

Não será exagero dizer que, por meio da linguagem, nos reconhecemos humanos. Acessamos a realidade, portanto, mediante a linguagem (e não de imediato). Por consequência, somos seres carentes de decifração, seja da consciência, seja do mundo à nossa volta. Num sentido lato, portanto, pode-se dizer que a hermenêutica se faz toda vez que, em busca de compreensão, ocorre a tentativa de decifração dos signos e símbolos da cultura. Essa é a base de nossa abordagem, que, em última instância, retorna como uma antropologia hermenêutica, por meio da qual podemos afirmar que somos seres hermenêuticos.

Essa é a base de nossa abordagem, que, em última instância, retorna como uma antropologia hermenêutica, por meio da qual podemos afirmar que somos seres hermenêuticos.

Um resumo pode ser útil: a epígrafe deste texto em sua versão expandida, vinda de Richard Kearney, importante intérprete de Ricoeur:

No princípio era a hermenêutica – significando a interpretação de diferentes sentidos, línguas, intenções e léxicos. In principio fuit interpres. Não existe um logos puro e imaculado, a menos que seja o de Deus. E nós não somos Deus. Ser humano é interpretar, e interpretar é traduzir. A linguagem é finitude, marcada por lacunas de tempo e espaço: cicatrizes de separação e alteridade.⁶

Do trecho, podemos retomar o que vimos e nos preparar para o que virá. Kearney nos chama a atenção para seu jogo de palavras, que relembra o início do livro do Gênesis e do Evangelho de João (“No princípio…”). Num primeiro momento, ele está nos dizendo que a hermenêutica é parte constitutiva do ser humano. Em seguida, nos diz que, por não sermos Deus, temos de interpretar, pois fora de Deus não há logos imaculado que seja compreendido diretamente ou de forma pura. O que vem depois nos ajuda a continuar: a linguagem é sinônima de finitude, pois é marcada pelas lacunas de tempo e espaço que separam o intérprete do interpretado. Isso nos diz que não há hermenêutica sem separação e alteridade – no caso de Kearney, do texto com relação à interpretação e tradução. Diante dessa realidade, não basta que se ofereça mais um método hermenêutico para superar a separação e a alteridade – o que não seria possível, aliás. Pelo contrário, será mais frutífero que se ofereça um novo modo de compreender a intransponível separação e alteridade que se evidenciam na interpretação – é disso que se trata a hospitalidade hermenêutica.

Tradução e texto, hermenêutica e hospitalidade linguística

Com a palavra interpretação, somos intuitivamente conduzidos à noção de texto. Não poderia ser diferente. Hermenêutica, em sentido estrito, lida com a interpretação textual, embora não se limite a ela.⁷ A premissa da hermenêutica, portanto, é de que há uma relação entre o texto e a vida:⁸ à medida que se interpreta um texto, se deseja compreender o mundo em que o texto foi produzido e sua relação com o mundo em que foi interpretado, e se estabelece uma relação do leitor com o autor e do leitor consigo mesmo. Isso é especialmente verdade quando o texto é um texto sagrado. 

Para o crente, a Bíblia funciona como um guia que, embora redigido há milênios, aponta para as verdades reveladas de Deus que correspondem às questões da realidade de quem a lê. O mesmo se dá para o muçulmano e o Corão, ou para o judeu e a Torá, e assim por diante. Portanto, por sua própria natureza, esse tipo de texto não perde sua qualidade de verdade aos olhos de quem crê, mesmo com a separação e alteridade entre texto-leitor, causadas pelas brechas de tempo e espaço. 

Quando se trata de um texto sagrado, acredita-se que uma contínua tradução é necessária e possível: o sentido original do texto se traduz nos sentidos disponíveis ao universo semântico do intérprete. Somado a isso está o fato de que, na maioria dos casos, o leitor está lendo o texto já traduzido para outro sistema linguístico que não o seu original (no português, no inglês, no alemão etc.). Dessa forma, a leitura e a interpretação do texto sagrado depende de dois tipos de tradução: aquela que medeia o sentido do texto para o sentido do leitor, que chamamos propriamente de interpretação, e aquela que transpõe o texto em suas línguas originais para a língua do leitor, a qual se trata de uma adaptação.

Contudo, se retomarmos o que dissemos no ponto anterior, veremos que não interpretamos de mãos vazias; pelo contrário, interpretamos com as mediações disponíveis a nós. Assim, nem a interpretação do texto sagrado nem a sua tradução podem abolir o nosso modo indireto de aproximação do texto e da realidade. Decorrente disso, “há um ‘núcleo intraduzível’ em toda transação linguística que nos lembra que os idiomas do anfitrião e do hóspede nunca são iguais – e de fato não deveriam ser”.¹⁰ O mesmo vale para a hermenêutica como um todo: as significações do universo semântico que habitamos nunca serão as mesmas com relação àquelas que os autores do texto sagrado possuíam ao escrevê-lo. Por isso, supor que a hermenêutica oferece um sentido possível não é sinônimo de torná-lo em um sentido final. Por essa razão, a hermenêutica, especialmente no caso dos textos sagrados, devem contar com o que Ricoeur chamou de hospitalidade linguística: 

Levar o leitor até o autor, levar o autor até o leitor, correndo o risco de servir e trair dois senhores: isso é praticar o que eu gosto de chamar de hospitalidade linguística. É ela que serve de modelo para outras formas de hospitalidade que, a meu ver, se assemelham a ela: as confissões, as religiões, não são como línguas estranhas umas às outras, com seu léxico, sua gramática, sua retórica, sua estilística, que precisamos aprender para entrar nelas?¹¹

Isto é, a hospitalidade linguística é a prática que acolhe a proximidade e a distância entre autor e leitor, tentando conferir a ambos uma tradução possível. A atitude de acolhimento, nesse caso, é mais importante do que a tentação de uma “tradução absoluta”, como diz Ricoeur. Isso significa abandonar a pretensão de uma interpretação definitiva – que, como o texto, quer ser igualmente sagrada. É passar pelo luto da impossibilidade da tradução absoluta e abraçar a insuficiência que é própria da interpretação humana e, de fato, de sua criaturidade. Levar o autor ao leitor e o leitor ao autor é tentar cruzar esses dois horizontes de sentido na esperança de que se acolham mutuamente.¹² Com isso, não estamos supondo que uma melhor interpretação seja impossível. Como diz Kearney, interpretar (e traduzir, como interpretação) é uma tarefa sem fim, que se renova a cada tentativa: “Como tal, a tradução envolve um certo reconhecimento humilde de nossa fragilidade e falibilidade, mantendo-nos sempre abertos à tarefa interminável de mais tradução, melhor tradução, tradução alternativa, sempre e sempre”.¹³ Portanto, na hospitalidade linguística, é preciso equilibrar os pratos entre proximidade e distância, entre hóspede e anfitrião, oferecendo traduções possíveis:

Um passo crucial para resistir à tentação da Tradução Perfeita é honrar um equilíbrio dialético entre a proximidade (acolher o estrangeiro em nosso meio) e a distância (reconhecer que algo sempre se perde na tradução: os significados do outro nunca podem ser completamente meus). Um tradutor "hospitaleiro" é aquele que busca correspondências aproximadas entre os idiomas sem nunca presumir que elas sejam definitivas ou adequadas.¹⁴

Hospitalidade hermenêutica

Da hospitalidade linguística nasce a hospitalidade hermenêutica. Enquanto a hospitalidade linguística propõe que o tradutor faça o movimento de levar o autor ao leitor (e vice-versa) para oferecer uma tradução possível, tendo em vista a impossibilidade de uma tradução absoluta, a hospitalidade hermenêutica é o passo seguinte: é a atitude de acolhida da interpretação do outro na minha compreensão da realidade. Com isso, espera-se que quando ambas as estruturas interpretativas (do eu e do outro) entram em contato, ocorra não a hostilidade, mas a hospitalidade – palavras que partilham da mesma raiz, hostis, “que pode significar tanto anfitrião quanto hóspede, tanto amigo quanto inimigo”.¹⁵ 

De um lado, a hostilidade hermenêutica, por assim dizer, é a atitude de reduzir o outro a si mesmo, invalidando a interpretação alheia e elevando a sua própria à mesma altura da verdade absoluta – da hermenêutica perfeita, ou mesmo da pura objetividade, onde sequer há necessidade de interpretar. Aqui, lembramos das palavras de Smith, que diz que a reivindicação de imediação (e, por conseguinte, da não hermenêutica) surge de um impulso de “fugir da interpretação e de superar a criaturidade, um impulso que é, em si mesmo, reminiscência da Queda edênica […], pois é fundamentalmente um esforço para ser como Deus (Gênesis 3:5)”.¹⁶ Dito de outra forma: a hostilidade hermenêutica considera o outro como pura ameaça e estranheza. 

De outro lado, a hospitalidade hermenêutica é a atitude de acolher a interpretação do outro em si mesmo, reconhecendo a possibilidade de melhora de minha leitura e tradução (da fé, da vida, do mundo etc). Ao reconhecer a minha incapacidade de imediação, ponho em questão minhas ferramentas e mediações hermenêuticas para abrigar a interpretação que não é a minha.¹⁷

Mas não podemos ser ingênuos. Temos de admitir que a hospitalidade envolve, em algum nível, a hostilidade, afinal, não abrimos mão tão facilmente de nosso modo de interpretar as coisas (sobretudo a fé, a Bíblia). Somos o que interpretamos. Por isso, a hospitalidade hermenêutica não é uma atitude meramente teórica, feita sem maiores danos ao si mesmo. Pelo contrário: toda acolhida possui uma medida de afastamento, para que o dano seja mitigado. É uma dialética, que ora abre mão de sua própria interpretação, ora insiste na sua veracidade, e ora soma-se para criar uma nova tradução do mundo, da vida e das verdades de Deus. Desse modo, a dialética hermenêutica inclui uma certa medida de proximidade e distância, familiaridade e estranheza, hospitalidade e hostilidade. Para Kearney e Ricoeur, tal dialética se trata de uma aposta: 

Uma aposta que convida a uma capacidade crítica de navegar entre diversas perspectivas que operam não apenas interlinguisticamente (entre uma língua nativa e uma língua estrangeira), mas também intralinguisticamente (entre seres falantes em um único idioma – a língua materna tem muitos filhos! E pode-se também acrescentar, com a psicanálise em mente, uma capacidade de mediação entre os próprios eus consciente e inconsciente.¹⁸

Pode-se dizer, então, que a hospitalidade hermenêutica é a face ética da interpretação, que torna o eu obrigado a levar em consideração o modo como o outro se aproxima hermeneuticamente da realidade e como tal aproximação afeta o meu próprio modo de entender a realidade. Nessa linha de raciocínio, outro termo de Ricoeur parece (quase) intercambiável. Ao refletir sobre um novo ethos para a Europa pós-guerra, o francês insiste que não basta uma ética da tradução (hospitalidade linguística), mas que também se faz necessário uma hospitalidade narrativa: “é preciso dar mais um passo: assumir a responsabilidade, em imaginação e em simpatia, pela história do outro, por meio das narrativas de vida que dizem respeito a esse outro”.¹⁹ O mesmo se pode dizer para nós: a hospitalidade hermenêutica diz respeito à atitude de acolhimento do outro e tudo o que lhe diz respeito (sua história, sua fé, sua compreensão do mundo), para que, posto ao lado de meu modo de interpretar a realidade, eu possa habitar o seu mundo, que outrora era separado pela sua alteridade, mas agora pode ser aproximado pela hospitalidade. 

a hospitalidade hermenêutica diz respeito à atitude de acolhimento do outro e tudo o que lhe diz respeito (sua história, sua fé, sua compreensão do mundo), para que, posto ao lado de meu modo de interpretar a realidade, eu possa habitar o seu mundo, que outrora era separado pela sua alteridade, mas agora pode ser aproximado pela hospitalidade.

Para concluir, voltemos ao início, a Miroslav Volf e a relação entre as diferentes religiões e suas respectivas interpretações da realidade – assunto, aliás, de que nos ocupamos o suficiente quando falamos dos textos sagrados, sua função e a hospitalidade linguística. Após introduzir o termo, Volf fala um pouco mais sobre hospitalidade hermenêutica:

Esse tipo de hospitalidade não levará necessariamente a uma concordância na interpretação das Escrituras uns dos outros. E certamente não levará a uma concordância geral entre diferentes comunidades religiosas pela simples razão de que elas consideram textos distintos — embora algumas vezes se sobrepondo — como fonte de autoridade. Mas essas trocas hermenêuticas de presentes ajudarão as pessoas de fé a melhorar o entendimento dos seus próprios textos sagrados e dos textos sagrados dos outros, a ver-se uns aos outros como companheiros, e não como combatentes na luta pela verdade, a respeitar mais a natureza humana uns dos outros e a praticar a beneficência mútua.²⁰

Com um dose de sobriedade, terminamos nossa breve reflexão dizendo que, a despeito da aceitação e da concordância com o outro, a prática da hospitalidade hermenêutica pode beneficiar grandemente a todos que desejam avançar numa compreensão menos individualista da vida, de Deus e do mundo. Ao mesmo tempo, beneficiará a nós, crentes em Jesus Cristo, que constantemente nos relacionamos com pessoas de diferentes credos, filosofias e ideologias, as quais carregam interpretações diametralmente distintas das nossas, mas que, a partir da hospitalidade hermenêutica, podem ser vistas como passíveis de acolhimento. 

 

 

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1. Miroslav Volf, Uma fé pública, 2018, p. 162.

2. Segundo Ricoeur, a atitude da suspeita, derivada dos mestres da suspeita (Nietzsche, Marx e Freud), é que resultou na constatação de uma falsa consciência que pede por decifração. Assim, a afirmação de que a consciência não apreende imediatamente o real se fundamenta na falsa consciência de si e do mundo. Por sua vez, uma falsa consciência desvela a imprescindibilidade de uma verdadeira consciência, a qual deixa de ser uma condição a priori (como no cogito cartesiano) e transforma-se em uma tarefa interpretativa (a “hermenêutica do si-mesmo”).

3. Com criaturidade, estamos partindo de uma perspectiva cristã, a qual afirma uma distinção fundamental entre Criador e criatura, bem como destaca a finitude como marca humana. Usamos essa expressão no lugar de noções puramente seculares, como realidade humana (advinda de Sartre, tomada por empréstimo de Heidegger), e também no lugar de noções puramente essencialistas, como aquelas que partem da noção de natureza humana. 

4. Quem realiza uma discussão importante nesse sentido é o filósofo evangélico James K. A. Smith, que propõe, como veremos à frente, uma hermenêutica criacional, não pós-lapsariana e decorrente da finitude humana. Desse modo, distingue sua abordagem de todas as hermenêuticas bíblicas que pressupõem que a tarefa interpretativa inicia (da realidade e da Bíblia) como resultado do pecado humano e finaliza como resultado do eschaton. Ver: James K. A. Smith, A queda da interpretação, 2021.

5. Peter Berger e Thomas Luckmann, em A construção social da realidade, livro fundamental da sociologia do conhecimento, dizem: “As objetivações comuns da vida cotidiana são mantidas primordialmente pela significação linguística. A vida cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem, e é por meio dela que participo com meus semelhantes. A compreensão da linguagem é, por isso, essencial para minha compreensão da realidade da vida cotidiana”. Peter Berger; Thomas Luckmann, A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento, 2003, p. 56-7.

6. Richard Kearney, “Linguistic Hospitality: The Risk of Translation”, Research in Phenomenology, 49, 2019, p. 3.

7. Em obra dedicada à hermenêutica em diálogo com Freud, Ricoeur parece expandir a noção de texto, tendo em vista que, na psicanálise freudiana, outros elementos são considerados objetos de interpretação, como é o caso de sonhos. Assim, a hermenêutica pode se ocupar também de outras formas textuais além daquelas de tipo escrito. Ver: Paul Ricoeur, Da interpretação: ensaio sobre Freud, 1977.

8. “O objetivo da hermenêutica é a compreensão. Hermenêutica é baseada na premissa de que textos dizem não somente sobre si mesmos, mas sobre o mundo em geral. Então, ao lermos textos de forma hermenêutica, chegamos a uma compreensão maior do mundo”. Karl Simms, Paul Ricoeur, 2003, p. 35. 

9. “Há duas rotas de acesso para o problema apresentado pelo ato de traduzir: tomar o termo “tradução” no sentido estrito da transferência de uma mensagem falada de um idioma para outro ou tomá-lo no sentido amplo como sinônimo da interpretação de qualquer conjunto significativo dentro da mesma comunidade de fala.” Paul Ricoeur, On Translation, 2006, p. 50.

10. Richard Kearney, 2019, p. 4.

11. Paul Ricoeur, On Translation, 2006, p. 72.

12. Ao leitor atento, fica a pergunta: como o texto sagrado pode acolher o leitor? Para responder, precisaríamos voltar ao tema do texto e tentar compreender a função da hermenêutica: será suprimir o sentido simbólico a fim de encontrar o sentido “verdadeiro” do texto, ou de produzir novos sentidos possíveis que resultam da vivacidade do texto?

13. Richard Kearney, 2019, p. 3.

14. Ibidem, p. 2.   

15. Ibidem, p. 5.

16. James K. A. Smith, 2021, p. 72.

17. Nesse sentido, podemos incluir o caso da introdução de novas pessoas em grupos e comunidades, as quais carregam suas próprias estruturas interpretativas, que exigem a hospitalidade hermenêutica tanto da coletividade quanto da pessoa introduzida.

18. Richard Kearney, 2019, p. 5.

19. Paul Ricoeur, “Reflections on a new ethos for Europe”, Philosophy & Social Criticism, v. 21 n. 5/6, p. 6-7.

20. Volf, 2018, p. 162.

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