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O cristianismo é bom demais para ser mentira

Avaliação de um argumento axiológico construído a partir de Tolkien e Plantinga.

Davi Bastos|

05/04/2023

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Davi Bastos

Bacharel, Mestre e Doutorando em filosofia na Unicamp. Editor da série Filosofia e Fé Cristã da Editora Ultimato e da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). Foi pesquisador júnior do projeto LATAM Bridges in the Epistemology of Religion da Universidade de Houston.

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Como citar

BASTOS, Davi. O cristianismo é bom demais para ser mentira: avaliação de um argumento axiológico construído a partir de Tolkien e Plantinga. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

Portanto, Deus existe.

Essa pequena frase é uma das conclusões mais ousadas de argumentos oferecidos por filósofos e teólogos ao longo da história. A partir de um conjunto de premissas, busca-se concluir que Deus existe. Certamente ela poderia ser usada de forma muito trivial, como em argumentos tautológicos do tipo “Deus existe; portanto, Deus existe” (A; portanto, A). Ou, ainda, em deduções não relevantes, como “Deus age; tudo que age existe; portanto, Deus existe” (A; A → B; portanto, B; onde assume-se um “A” que já encapsula o “B” que se pretende derivar).

A teologia natural é o subcampo da filosofia da religião que propõe e estuda argumentos para a existência de Deus que não sejam triviais e que não partam de uma revelação especial – isto é, não partam do testemunho de um texto sagrado ou de uma aparição sobrenatural que não possa ser verificada empiricamente, feita a uma pessoa ou a um grupo específico de pessoas.¹ A filosofia da religião, portanto, não conclui que Deus existe porque Deus falou com Moisés ou com Maomé em um dado momento do tempo. Ela não conclui que Deus existe por que o Tanakh ou o Livro de Mórmon afirma que Ele existe. Ela busca premissas gerais e que podem ser acessadas epistemicamente com facilidade por todos para concluir a existência de Deus.²

Mas a filosofia da religião não é apenas teologia natural. Existem diversas discussões em filosofia da religião nas quais “portanto, Deus existe” não figura em nenhum dos argumentos. Há, é claro, conclusões próximas a isso, como “portanto, a crença em Deus pode ser justificada”³ ou “portanto, é plausível crer em Deus”⁴, ou, ainda, “portanto, é melhor crer em Deus do que não crer”⁵. Essas são preocupações com o estatuto epistêmico da crença teísta e avaliações dos motivos que possuímos para crer em Deus. Há, também, conclusões radicalmente opostas, como “portanto, Deus não existe”⁶, “portanto, o conceito de Deus é contraditório e irracional”⁷, e por aí vai. Mas há conclusões inteiramente de outro tipo: “portanto, a simplicidade é um atributo inconsistente e não deve ser atribuída a Deus”⁸, “portanto, Deus possui motivos para permitir o sofrimento animal”⁹, “portanto, a ocorrência de milagres é compatível com a existência de leis da natureza”¹⁰, “portanto, o modo como Deus é apresentado na Bíblia é compatível com o modo como os filósofos cristãos pensaram acerca de Deus”¹¹ e muitas outras conclusões.

O presente trabalho busca apresentar um argumento em filosofia da religião que, em certa medida, é independente de qualquer revelação. Mas a conclusão não é “portanto, Deus existe”. A conclusão é “portanto, o cristianismo é verdadeiro”. Mais precisamente, a conclusão é “portanto, era teisticamente necessário que a Segunda Pessoa da Trindade se encarnasse e expiasse o pecado da criação de Deus”. Como veremos, esse argumento baseia-se na noção de valor. Ele atribui valor a uma narrativa ou a uma proposição (complexa), e, com base no valor atribuído, conclui que se Deus existe, então, tal narrativa decorre necessariamente. A necessidade envolvida nessa afirmação origina-se do caráter e das motivações de Deus. Veremos um exemplo de tal argumento em uma palestra de J. R. R. Tolkien, e desenvolverei um outro exemplo inspirado em um artigo de Alvin Plantinga (embora Plantinga não proponha explicitamente esse argumento no artigo).

Por fim, concluo que tais argumentos são muito ousados, e que uma versão mais modesta deles pode ser mais útil para o teísta, ainda que conclua apenas o seguinte: “portanto, eu possuo um motivo adicional para crer que tal narrativa é verdadeira”. Essa conclusão não garante nem justifica a crença na narrativa isoladamente, mas pode ser significativa em conjunto com outros motivos para crer na narrativa. A conclusão é religiosamente neutra, pois o argumento pode ser adaptado para diferentes narrativas (a narrativa cristã, a narrativa islâmica, a narrativa judaica etc.).

Mais precisamente, a conclusão é “portanto, era teisticamente necessário que a Segunda Pessoa da Trindade se encarnasse e expiasse o pecado da criação de Deus”.

1. Argumentos axiológicos

Axiologia ou teoria do valor é o estudo dos valores.¹² O que são valores? Que tipo de valores existem? Ou ainda, existe algum valor objetivo? Valores puramente numéricos são discutidos em filosofia da matemática: a noção de número, de maior ou menor, etc. Em axiologia, discute-se, por exemplo, se há valores morais: uma ação é moralmente superior (mais correta) a alguma outra ação? Ou se há valores estéticos: uma obra de arte é esteticamente superior (mais bela) a algum outro elemento da realidade? Ou, ainda, que tipo de realidade possuem os valores: são objetivos e presentes nas próprias coisas ou subjetivos e criações da mente humana? Muitos autores defendem que valores morais e estéticos não podem ser objetivamente medidos em gradações numéricas, isto é, não são mensuráveis matematicamente (diferente de alguns aspectos físicos da realidade: massa, distância, tempo, velocidade etc.).

Adjetivos como “bom” e “melhor”, e, no outro extremo, “mau”, “ruim” e “pior” são a principal fonte de atribuição de valores. Em filosofia da religião, esses atributos são muito importantes. Deus é dito bom, melhor do que qualquer outra coisa que exista ou que poderia ter existido. Diz-se que as ações de Deus são sempre boas. Alguns chegaram a sugerir que o nosso mundo é o melhor mundo possível, pois é o mundo que Deus escolheu criar.¹³

Os filósofos desenvolveram alguns argumentos axiológicos para a crença em Deus. Os mais influentes são os argumentos morais para a crença em Deus: se há moralidade, então há Deus. Há diversas variações desse argumento, mas, em linhas gerais, parece que a existência da moralidade objetiva ou real carece de uma explicação, e a única (ou a melhor, ou a mais provável) explicação é a existência de Deus, um ser completamente bom que criou o universo. Argumentos axiológicos partem, portanto, da existência de valores para concluir a existência de Deus, que é a explicação da existência dos valores.¹⁴

Neste artigo, veremos um outro tipo de argumento com premissas axiológicas. O argumento que veremos infere, a partir do valor da narrativa da encarnação e da expiação, que o cristianismo deve ser verdadeiro. Esse é um argumento para a verdade de certas proposições centrais do cristianismo a partir do valor que os fatos expressos por essas proposições possuem. Um proponente de um argumento desse tipo é o aclamado escritor de fantasia J. R. R. Tolkien.

 

2. Tolkien e o valor estético supremo da encarnação, da expiação e da ressurreição

Em 8 de março de 1939, John Ronald Reuel Tolkien, àquela altura conhecido como o autor de O Hobbit, deu uma palestra na Universidade de St. Andrews intitulada “Fairy Stories” [“Estórias de Fadas”]. Em 1947, a palestra foi adaptada e robustecida em um texto, publicado em um volume em honra de Charles Williams¹⁵ como “On Fairy-Stories” [“Sobre estórias de fadas”].¹⁶ Nesse texto, Tolkien apresenta sua teoria sobre a fantasia, um novo gênero literário que ele mesmo ajudaria a dar forma. Mas, em meio a suas afirmações sobre estórias e narrativas, Tolkien se permite afirmar algumas coisas sobre a narrativa da obra de Cristo, especialmente sobre a sua encarnação, expiação e ressurreição. Apesar de sua formulação cautelosa, podemos dizer que Tolkien aponta um argumento para a verdade do cristianismo apelando para o valor supremo de sua narrativa.

Para compreender o argumento de Tolkien, faz-se necessário entender o que ele chama de “eucatástrofe” e de “subcriação”. A “eucatástrofe” é uma boa reviravolta de eventos, em oposição à catástrofe. A catástrofe é a virada de eventos ruins em uma peça trágica. A eucatástrofe de Tolkien é a resolução após o clímax. Enquanto a catástrofe anuncia um final trágico, a eucatástrofe reverte a tragédia e apresenta um final feliz. Já o termo “subcriação” tem por função distinguir os atos criadores de Deus da criação humana de artefatos e histórias. Deus é o único capaz de criar, no sentido próprio do termo, e nós, humanos, somos apenas capazes de subcriar.¹⁷ Munidos dessa terminologia, podemos ver o trecho em que Tolkien manifesta seu argumento:

Eu me arriscaria a dizer que, abordando a Estória Cristã deste ponto de vista, por muito tempo tive a sensação (uma sensação alegre) de que Deus redimiu as corruptas criaturas-fazedoras, os homens, de maneira adequada a esse aspecto da sua estranha natureza, e também a outros. Os Evangelhos contêm um conto de fadas, ou uma história de tipo maior que engloba toda a essência dos contos de fadas. Contêm muitas maravilhas – peculiarmente artísticas, belas e emocionantes, “míticas” em seu significado perfeito e encerrado em si mesmo; e entre as maravilhas está a maior e mais completa eucatástrofe concebível. Mas essa estória entrou na História e no mundo primário; o desejo e a aspiração da subcriação foram elevados ao cumprimento da Criação. O Nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da estória da Encarnação. Essa estória começa e termina em alegria. Tem preeminentemente a “consistência interna da realidade”. Nunca se contou um conto que os homens mais quisessem descobrir ser verdadeiro, e não há nenhum outro que tantos homens céticos tenham aceito como verdadeiro por seus próprios méritos. Pois a Arte dele tem o tom supremamente convincente de Arte Primária, isto é, de Criação. Rejeitá-lo leva à tristeza ou à ira.¹⁸

O texto em si não apresenta, explicitamente, um argumento. Ainda assim, creio que é possível identificar um argumento aqui, o qual procederia da seguinte forma:

  1. A narrativa da encarnação, expiação e ressurreição [C, de cristianismo, para abreviar] possui um tom supremamente convincente de Arte Primária. (premissa)
  2. Para toda narrativa x, se x possui um tom supremamente convincente de Arte Primária, então é impossível que x tenha sido subcriada [i.e., inventada por uma mente humana]. (premissa)
  3. Para toda narrativa x, se x não foi subcriada, então x foi criada. (premissa)
  4. Para toda narrativa x, se x é criada, então Deus criou x. (definição de criação)
  5. Para toda narrativa x, se Deus cria x, então x relata fatos. (premissa)
  6. É impossível que C tenha sido subcriada. (1, 2, eliminação do quantificador e modus ponens)
  7. C foi criada. (3, 6, eliminação do operador modal, eliminação do quantificador, modus ponens)
  8. Deus criou C. (4, 7, eliminação do quantificador, modus ponens)
 

Portanto,

     9. C relata fatos. (5, 8, eliminação do quantificador, modus ponens)

A premissa 5 talvez possa ser substituída por algo mais palatável:

(5.1) Para toda narrativa x, se Deus cria x e x possui pretensão declaratória, então x relata fatos.

(5.2) C possui pretensão declaratória.

 

Entendo aqui “pretensão declaratória” como a atitude proposicional de afirmar que um fato decorre na realidade, isto é, a intenção de afirmar que aquilo é verdade. No caso, Deus poderia criar uma narrativa falsa se essa narrativa não se apresentasse e não fosse apresentada por Deus com pretensão declaratória. Deus criaria uma narrativa falsa, fictícia, mas não mentiria, pois jamais teria a intenção de afirmar que ela é verdadeira. Mas, nos casos em que a própria narrativa ou Deus afirmam que aquela é uma narrativa verídica, tal narrativa deve necessariamente ser verdadeira, porque Deus não pode mentir ou enganar.¹⁹

As premissas centrais, é claro, são 1-3. A função da premissa 4 é incluir Deus, pois o caráter de Deus é importante para que decorra a verdade da narrativa. A premissa 5 faz justamente esse papel, de mostrar que algo que Deus afirma deve decorrer de fato. A premissa 1 é a atribuição de valor, a premissa axiológica, por assim dizer. Ela afirma que C possui um valor supremo. Entendo que esse valor é estético: C é uma narrativa supremamente bela. Essa é uma interpretação do que Tolkien quis dizer com “tom supremo de Arte Primária”. A palavra “convincente”, contudo, parece indicar já uma atribuição de acurácia em relatar fatos. Uma narrativa ou proposição convincente é convincente porque aparenta ser verdadeira por conta das características que possui. E parece ser isso o que Tolkien quer dizer com “consistência interna de realidade”. Esse aspecto também deve ser incluído na premissa 1.

A premissa 2 afirma que o tom convincente em questão é tal que aquela narrativa não poderia ter sido inventada. Isto é, ela não pode ser uma estorinha humana, porque nenhum ser humano seria capaz de subcriar uma estória com essa beleza suprema (ou com esse tom supremamente convincente). Aqui está o “pulo do gato”. O valor interno de C é tão superior que Tolkien está convencido de que há algo de diferente nessa narrativa. Ela é tão diferente de qualquer narrativa subcriada e possui ao mesmo tempo elementos tão fantásticos e tão reais que, Tolkien conclui, ela não pode ter sido subcriada. Ela foi, portanto, criada diretamente por Deus, que possui uma mente superior e possui acesso epistêmico a valores de ordens supremas.

Já a premissa 3 afirma que há apenas duas possibilidades para as narrativas: ou elas são criadas por Deus ou criadas por seres criados por Deus. Em geral, pensa-se que a subcriação é uma característica dos humanos. Mas Tolkien incluiria aqui seres angélicos e demoníacos²⁰ e, caso existam, quaisquer outras mentes criadas por Deus – elfos, por exemplo, em realidades paralelas,²¹ ou extraterrestres. Narrativas, portanto, não podem ser eternas e não podem ser não criadas.²²

Podemos resumir o núcleo do argumento da seguinte forma:

  1. Narrativas de valor supremo não foram inventadas por seres humanos.
  2. C possui valor supremo.
  3. Logo, C não foi inventada por seres humanos.
 

(E como C possui pretensão de verdade e é conhecida pelos seres humanos, C deve ter sido revelada por Deus e deve ser verdadeira.)

O argumento, portanto, parte do valor supremo de uma narrativa para concluir sua verdade. O que Tolkien está dizendo é que C é boa demais para ser mentira. Como veremos a seguir, é possível delinear um argumento similar a partir de um artigo de Alvin Plantinga.

A premissa 2 afirma que o tom convincente em questão é tal que aquela narrativa não poderia ter sido inventada. Isto é, ela não pode ser uma estorinha humana, porque nenhum ser humano seria capaz de subcriar uma estória com essa beleza suprema (ou com esse tom supremamente convincente). Aqui está o “pulo do gato”.

3. Plantinga e o valor moral supremo da encarnação e da expiação

Em Supralapsarianism or “O Felix Culpa!” [Supralapsarianismo ou “Oh, culpa bendita!”],²³ o conhecido filósofo cristão Alvin Plantinga pretende apresentar uma possível justificativa de Deus para permitir o mal no mundo, uma teodiceia.

Plantinga trabalha com uma semântica de mundos possíveis. Mundos possíveis são estados de coisas maximais, isto é, estados de coisas em que, para toda proposição x, x ou é verdadeira ou é falsa em tal estado de coisas. Estados de coisas e, consequentemente, mundos possíveis, são entidades abstratas. Plantinga crê que o ato criador de Deus é o ato de escolher um mundo possível abstrato e efetivá-lo (actualise) na realidade.²⁴

Mundos possíveis podem ser melhores ou piores. Um mundo possível x é melhor do que outro mundo possível y se Deus preferisse efetivar a existência de x à de y. Mas a fonte da qualidade (“bondade”, por assim dizer) de um mundo possível são estados de coisas benéficos (good-making). Um estado benéfico pode estar presente em um mundo x e não estar presente em y (de forma que, com relação àquele estado, x é melhor do que y). Características benéficas são quaisquer características que contribuem para que o mundo possível em questão seja considerado bom por Deus. Plantinga parece estar falando de bondade moral, mas ele afirma que “outras características que influenciam em quão bom é um mundo possível são a quantidade de beleza, justiça, bondade dentre as criaturas, cumprimento de deveres e coisas similares”.²⁵ O aspecto central de sua argumentação, contudo, parece ser moral (em oposição à preocupação primariamente estética de Tolkien, como vimos na seção anterior).

Na sequência, Plantinga pretende responder ao problema do mal afirmando que há um bem supremo em nosso mundo que supera em muito a quantidade de mal que há no nosso mundo e que, para que esse bem supremo pudesse ocorrer, era necessário que o mal também ocorresse. Essa teodiceia supralapsariana, portanto, afirma que Deus permitiu o mal porque ele tinha algo em vista que carecia do mal para existir, algo muito superior. Em sua argumentação nessa direção, contudo, Plantinga lança mão de certas afirmações que nos permitem identificar premissas similares às de Tolkien e montar outro argumento – não uma teodiceia, mas um argumento para a verdade da fé cristã. Vejamos os trechos relevantes de Plantinga: 

Dada a verdade da crença cristã, contudo, há também uma característica benéfica [good-making] contingente de nosso mundo – que não está presente em todos os mundos – que se eleva enormemente sobre todos os demais estados de coisas contingentes incluídos em nosso mundo: o bem inimaginavelmente enorme da Encarnação e da Expiação divinas. Jesus Cristo, a segunda pessoa da divina trindade, incomparavelmente bom, santo e sem pecado, estava disposto a se esvaziar, a tomar nossa carne e tornar-se encarnado, e a sofrer e morrer de forma que nós, seres humanos, pudéssemos ter vida e ser reconciliados com o Pai. Para conseguir isso, ele estava disposto a passar por sofrimento de uma profundidade e intensidade que nem mesmo conseguimos imaginar, incluindo até mesmo o intenso clímax de ser abandonado pelo próprio Deus Pai: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Deus Pai, o primeiro ser de todo o universo, perfeitamente bom e santo, todo-poderoso e onisciente, estava disposto a permitir que seu Filho passasse por tal sofrimento, e a passar ele mesmo por enorme sofrimento a fim de possibilitar que nós humanos fôssemos reconciliados com Ele. E isso diante do fato de que nós demos as costas a Deus, o rejeitamos, estamos imersos em pecado, de fato, temos a inclinação de ressentir-nos de Deus e do nosso próximo (Heidelberg?). Poderia haver uma manifestação de amor que rivalizasse com essa? Mais para os presentes propósitos, poderia haver uma característica benéfica [good-making] de um mundo que rivalizasse com essa?²⁶

[...] podemos simplesmente dizer que todos os mundos nos quais a encarnação e a expiação estão presentes são mundos de bondade [goodness] verdadeiramente enorme, alcançando o nível L de bondade tal que nenhum mundo sem a encarnação e a expiação alcançam tal nível.²⁷

[…] todos os mundos altamente elegíveis contêm a Expiação; logo, todos os mundos altamente elegíveis contêm pecado e maldade, e o sofrimento que se segue a partir disso. Não pode-se ter um mundo cujo valor exceda L sem pecado e maldade; pecado e maldade são uma condição necessária do valor de todos os mundos possíveis realmente bons.²⁸

Em resumo, Plantinga defende, portanto, que é possível que Deus tenha permitido o mal porque o mal possui uma função instrumental: permitir a redenção e, especificamente, a encarnação e a morte expiatória de Jesus Cristo. Para ele, dentre todos os mundos possíveis que Deus poderia efetivar (actualise), aqueles em que há expiação e encarnação são de longe muito superiores àqueles em que esses estados de coisas não decorrem. Desta forma, Deus não optaria por efetivar um mundo possível desprovido da obra redentora de Cristo por meio de sua encarnação e expiação. Como a expiação requer o pecado a ser expiado, Deus não optaria por efetivar um mundo possível sem o mal – porque um mundo sem o mal e sem a expiação seria um mundo pior do que um mundo com o mal e com a expiação.²⁹

Plantinga afirma, logo no início da citação apresentada, que está partindo da verdade da fé cristã. Seu objetivo nesse artigo não é, portanto, fazer apologética ou apresentar uma teodiceia plausível para não cristãos. Ainda assim, contudo, é possível identificar aqui premissas que sustentem um argumento para a verdade do cristianismo. Podemos, inspirados no texto de Plantinga, elaborar um argumento que, assumindo a existência de Deus (enquanto um criador onipotente e onibenevolente), conclui que o cristianismo deve ser verdadeiro. O argumento seguiria estas linhas:

  1. O bem inimaginavelmente enorme da Encarnação e da Expiação [C] é uma característica benéfica [good-making] contingente que se eleva enormemente sobre todos os demais estados de coisas contingentes, de forma que nenhuma característica benéfica de mundo algum poderia rivalizar com essa; (premissa)
  2. Para todo estado de coisas x, se x é um bem inimaginavelmente enorme tal que seja uma a característica benéfica [good-making] contingente que se eleva enormemente sobre todos os demais estados de coisas contingentes, de forma que nenhuma característica benéfica de mundo algum poderia rivalizar com x, então o estado de coisas x possui um valor supremo; (definindo valor supremo)
  3. Para todo estado de coisas x, se x possui valor supremo, então, para todo mundo possível w, w é um mundo possível altamente elegível se e somente se o estado de coisas x pertence a w. (definindo mundos possíveis altamente elegíveis)
  4. Para todo mundo possível w, w é um mundo possível altamente elegível se e somente se C pertence a w. (2, eliminação do quantificador, 1, modus ponens, 3, eliminação do quantificador universal e modus ponens)
  5. Para todo indivíduo y e todo mundo possível w, se y é onibenevolente e y decide criar (efetivar) w, então w é um mundo possível altamente elegível. (premissa)
  6. Deus é um ser criador onibenevolente e onipotente. (definição de Deus)
  7. Deus é onibenevolente. (6, eliminação da conjunção)
  8. Para todo mundo possível w, se Deus é onibenevolente e Deus decide criar (efetivar) w, então w é um mundo possível altamente elegível; (5, eliminação do quantificador universal)
  9. Se Deus é onibenevolente e Deus decide criar (efetivar) a, então a é um mundo possível altamente elegível; (8, eliminação do quantificador universal)
  10. Deus decidiu criar (efetivar) o mundo possível a (o nosso mundo actual). (premissa)
  11. O nosso mundo (o mundo actual) a é um mundo possível altamente elegível. (7, 10, introdução da conjunção, 9, modus ponens)
  12. a é um mundo possível altamente elegível se e somente se C pertence a a. (4, eliminação do quantificador universal)
 

Portanto,

  13. As proposições centrais do cristianismo, C, são verdadeiras em (ou “o estado de coisas C pertence ao”) nosso mundo (o mundo actual) a. (11, 12, eliminação do bicondicional e modus ponens)

 

Embora o objetivo de Plantinga não fosse argumentar pela verdade do cristianismo, parece-me que uma consequência de sua teodiceia é que, se Deus existe e decide criar (efetivar) um mundo possível, então as proposições centrais do cristianismo (encarnação e expiação da segunda pessoa da Trindade) são verdadeiras. Uma implicação disso é que, caso as premissas de Plantinga sejam aceitas, outras religiões teístas precisariam reconhecer a verdade do cristianismo.

Pode-se resumir a estrutura do argumento da seguinte forma:

  1. Estados de coisas com valor supremo são altamente elegíveis para serem criados (efetivados) por Deus.
  2. C possui valor supremo.
  3. Logo, C é altamente elegível para ser criado por Deus. (Como Deus escolheu criar e não há rival para C igualmente elegível, C deve ter sido criado por Deus e deve ser verdadeiro.)
 

O argumento, portanto, parte do valor supremo de um estado de coisas para concluir sua verdade – ou melhor, para concluir que é um fato. O que Plantinga está dizendo é que C é boa demais para não ser criada, boa demais para ser falsa (assumindo que Deus existe). O argumento apresentado a partir do artigo de Plantinga, portanto, assemelha-se muito com o argumento de Tolkien apresentado na seção anterior. Ambos derivam a verdade do Cristianismo, dado Deus e a criação, a partir do valor interno da narrativa cristã ou do estado de coisas que é descrito pela narrativa cristã.

 

Embora o objetivo de Plantinga não fosse argumentar pela verdade do cristianismo, parece-me que uma consequência de sua teodiceia é que, se Deus existe e decide criar (efetivar) um mundo possível, então as proposições centrais do cristianismo (encarnação e expiação da segunda pessoa da Trindade) são verdadeiras.

4. Objeções

Diversas objeções são possíveis. Por motivo de espaço, apresento apenas algumas e em formato de tópicos.

Objeção do pluralismo religioso: por que devemos aceitar que C é que possui valor supremo? Um judeu poderia afirmar que é a história do êxodo que possui valor supremo (seja como narrativa, seja como estado de coisas). Talvez um islâmico defenda que é a história de Maomé que possui suprema beleza. Poder-se-ia até mesmo incluir as histórias de Buda, Krishna ou outras religiões não teístas. Um ateu poderia argumentar que um estado de coisas com valor supremo deve ser tal que não inclua nenhum mal. Não temos motivos objetivos bons o suficiente para aceitar que C, em detrimento das demais grandes narrativas (ou estados de coisas) de outras religiões, possui valor supremo.

Objeção da axiologia de poltrona:³⁰ Será que realmente podem existir estados de coisas com valores supremos? Existem mesmo valores incomparavelmente bons – tais que mundos possíveis que os contenham sejam altamente elegíveis para efetivação diante de Deus? Não é óbvio que possa existir um estado de coisas com um valor incomparável e infinito como requer o argumento (seja bom ou seja mau!). Essa objeção também vale para o argumento de Tolkien: será possível que realmente exista uma experiência estética mística suprema? Tais experiências realmente seriam tão convincentes da verdade do cristianismo?³¹ O argumento parece depender de suposições axiológicas incertas e obscuras, acerca das quais podemos muito bem estar enganados.

Objeção da circularidade viciosa: o argumento assume o cristianismo para, por fim, prová-lo. A circularidade talvez não seja lógica (o cristianismo não é assumido nas premissas). Mas, na prática, a premissa mais fundamental parece ser plausível de ser assumida apenas para cristãos. Apenas cristãos concederiam que a narrativa (ou o estado de coisas) cristã possui valor supremo. Não cristãos não estão convencidos disso. Tolkien estaria, portanto, errado ao supor que os céticos aceitam a narrativa cristã como verdadeira por seus próprios méritos e que ela possui de fato esse apelo estético.

Objeção do enviesamento: diversas vezes desconfiamos de afirmações por serem boas demais para serem verdade. Quando queremos muito que algumas coisas sejam verdadeiras, podemos estar enviesados a aceitá-las sem evidências suficientes. Mas a consciência desse tipo de viés também nos leva a desenvolver certa desconfiança: “essa premiação é boa demais para ser verdade”, “esse curso online faz promessas demais para ser verdade”, “essa propaganda deve estar distorcendo os fatos para apresentar o produto como melhor do que de fato é” etc. O argumento de Plantinga e Tolkien parece ignorar a desconfiança. Ele afirma que o cristianismo é bom demais para ser falso. Mas deveríamos saber que nós queremos que seja verdadeiro que Deus existe, nos ama e nos salva dos nossos pecados, e que viveremos a eternidade em plena alegria. Essas promessas são boas demais. Boas demais para as aceitarmos sem desconfiar de que alguém esteja tentando nos vender um produto falso ou esteja nos apresentando promessas vazias. É possível, portanto, que o sucesso do cristianismo se deva a uma tendência a crer em promessas boas, que seja fruto de nosso viés que parte do desejo de que o cristianismo seja verdadeiro.³² Assim, nós não partimos de um ponto de vista neutro para avaliar a verdade do cristianismo (que é consoladora) em oposição, por exemplo, ao ateísmo (que não nos consola com promessas de vida eterna).

Por mais que seja possível contra objetar a cada objeção apresentada, não me proponho a seguir esse caminho. Antes, pretendo apresentar uma versão modesta do argumento.

É possível, portanto, que o sucesso do cristianismo se deva a uma tendência a crer em promessas boas, que seja fruto de nosso viés que parte do desejo de que o cristianismo seja verdadeiro.³² Assim, nós não partimos de um ponto de vista neutro para avaliar a verdade do cristianismo (que é consoladora) em oposição, por exemplo, ao ateísmo (que não nos consola com promessas de vida eterna).

5. O argumento axiológico modesto para a crença cristã

O argumento axiológico que apresentei anteriormentea partir de Plantinga e Tolkien provavelmente possui diversas outras instâncias na literatura milenar de filosofia da religião e teologia filosófica. O próprio Plantinga afirma que o que ele está apresentando não é novidade. Contudo, creio que a estrutura geral de derivar a verdade do cristianismo a partir de seu valor interno ficou clara com a comparação entre os dois autores, assim como as diferentes possibilidades (que chamei de “valor estético” e “valor moral”) de desenvolvimento do argumento. Dessa forma, resumo o argumento da seguinte forma:

  1. C possui valor supremo.
  2. Se C possui valor supremo, C é verdadeira.
  3. C é verdadeira.
 

    As variações (estética e moral) surgem na argumentação para concluir 2.

Diante das objeções, contudo, acho que o argumento não pode ser sustentado sem grande onerosidade. Creio ser desejável, portanto, reformulá-lo em uma versão que supere as objeções apresentadas. Em meu esforço para fazê-lo, cheguei a um argumento muito mais modesto:

  1. O estado de coisas s provavelmente possui valor supremo. (premissa)
  2. Para todo mundo possível w e todo estado de coisas x, se Deus cria (efetiva) w e se x possui valor supremo, então w contém x. (premissa)
  3. Para todo mundo possível w, se Deus cria (efetiva) w e se s possui valor supremo, então w contém s. (2, eliminação do quantificador universal)
  4. Deus criou (efetivou) o nosso mundo (o mundo actual) a. (premissa)
  5. Se Deus cria (efetiva) a e se s possui valor supremo, então a contém s.

Portanto,

    6. Nosso mundo a provavelmente contém s (isto é, s provavelmente é um fato). (1, 4, introdução da conjunção, modus ponens).³³

Essa reformulação busca, em primeiro lugar, evitar a objeção do pluralismo religioso. O argumento modesto substitui C por s. A lacuna s pode ser preenchida por C, a narrativa cristã, ou por I, a narrativa islâmica, ou por algum outro estado de coisas que alguém creia possuir valor supremo. O “provavelmente” indica que quem sustentar que um estado de coisas possui valor supremo precisa avaliar a coerência e consistência dessa afirmação à luz de evidências e contra evidências.

Dentre as contra evidências estão, certamente, as demais objeções (axiologia de poltrona, circularidade, enviesamento). Mas há uma forma específica de rebatê-las. Apelando a um sensus divinitatis (ou faculdade de Deus), é possível defender que a crença no valor supremo da proposição religiosa s é produzida por uma faculdade cognitiva funcional, criada por Deus para prover conhecimento dele a alguns seres humanos.³⁴ Dessa forma, se de fato Deus existir, s de fato possuir valor supremo e Deus de fato tiver nos criado com uma tendência natural a identificar o valor supremo de s, então a nossa crença em s pode ser externamente justificada ou avalizada ainda que não saibamos apresentar justificativas para crer nele (ainda que não tenhamos justificação internalista para a crença no valor supremo de s). Apelando para um externalismo epistêmico,³⁵ portanto, evita-se a necessidade de responder à axiologia de poltrona (minha crença axiológica é avalizada se é verdadeira), à circularidade (é uma crença básica) e ao enviesamento (sim, somos enviesados, pois Deus nos criou enviesados a crer no valor supremo de s e estamos avalizados a crer nele se de fato for o caso). Assim, defendo que, se incluirmos as premissas 1 e 3 como produtos de um sensus divinitatis, não precisamos responder a objeções que não desprovam o valor supremo de s, como as que foram elencadas anteriormente.

Dessa forma, a crença de uma pessoa x no valor supremo de uma proposição s tal que s é uma proposição religiosa central à tradição religiosa teísta z serve como um motivo (justifier) para o compromisso religioso de x com a tradição z. Um islâmico que crer que proposições centrais do islamismo possuem valor supremo possui um motivo adicional (justifier) para seu compromisso religioso com o islamismo. Da mesma forma, um cristão, um sikh, um judeu ou algum outro teísta (dado que o argumento depende da existência de um Deus criador).

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

Agradecimentos do autor:

Agradeço a audiências que ouviram versões prévias: Unicamp, 2018 (especialmente Gesiel Silva e Felipe Miguel); UnB, 2020 (especialmente Agnaldo Portugal). Agradeço pelas bolsas: do projeto “LATAM Bridges in The Epistemology of Religion” (Houston), financiamento John Templeton Foundation (61253), liderado por Luis Oliveira; do projeto “The Global Philosophy of Religion Project” (Birmingham), liderado por Yujin Nagasawa, financiamento JTF (61613); do projeto “Readings And Writings On The Interface Of Faith, Science, And Philosophy” da Academia ABC², liderado por Roberto Covolan e Marcelo Cabral, financiamento JTF (62637). Todas as opiniões do presente artigo são minhas somente e não necessariamente expressam as visões da JTF.

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1. McGrath (2020) defende que, ao longo da história, a expressão “teologia natural” teve diversos outros usos e sentidos, havendo ao menos seis compreensões do que é teologia natural, quais são os seus objetivos e os seus métodos. A compreensão que apresento aqui e que é dominante na literatura contemporânea seria uma dentre essas outras opções. Agradeço a Marcelo Cabral por ressaltar esse ponto.

2. Apesar disso, o testemunho de experiências místicas e sobrenaturais é estudado e pode ser considerado evidência da existência de Deus em filosofia da religião. Mas o testemunho é avaliado de uma perspectiva objetiva. Veja, nesse sentido, Alston (2020).

3. Swinburne (2004, p. 341-2) conclui que a crença na existência de Deus é justificada pela evidência disponível.

4. Há diversos exemplos, como a epistemologia reformada: Wolterstorff (1984), Plantinga (2018).

5. A famosa aposta de Pascal (Pascal, 1670, §233; Hájek, 2022), por exemplo.

6. Hume (1779, parte 10); cf. Epicuro apud Lactâncio, De Ira Dei, 13.20-22. In: Brandt e Laubmann (1893).

7. Mackie (1955).

8. Plantinga (1980).

9. Murray, no prelo.

10. Mavrodes (2007).

11. Stump (2016).

12. Schroeder (2021) distingue “value theory”, “axiology” e “theory of value”. Aqui coloco tudo no mesmo guarda-chuva, mas a discussão do presente artigo foca no que ele chama de “theory of value”.

13. Leibniz (1710). Plantinga (2012, p.62) chama isso de “o lapso de Leibniz”. Uma famosa e influente discussão sobre essa questão encontra-se em Adams (1972). Adams, de início, já problematiza a noção de “melhor mundo possível”: “na verdade, não vejo nenhuma boa razão para acreditar que haja um melhor dentre os mundos possíveis. Por que não poderia ser o caso que para cada mundo possível há um outro que é melhor?” (Adams, 1972, p. 317).

14. Após Kahane (2011), há o surgimento de um  campo chamado Axiologia do Teísmo que se propõe a avaliar o valor da existência de Deus: a existência de Deus seria algo bom? A resposta afirmativa é chamada de posição pró-teísta e a negativa, de anti-teísta. O presente artigo já assume a existência de Deus. Creio que as discussões aqui apresentadas fazem mais sentido em um pano de fundo pró-teísta, mas não acho que o argumento que apresento precise se comprometer necessariamente com a posição pró-teísta. Para saber mais sobre a Axiologia do Teísmo (um nome um pouco infeliz, pois parece incluir diversas outras questões sobre teísmo e valores), veja Kraay (2021), uma ótima e curta introdução a este novo campo.

15. Lewis (1947).

16. Dado ser relevante a diferença entre “story” e “history” no inglês para a leitura do texto de Tolkien, optei por diferenciá-las em português, valendo-me de “estória” para narrativas (fictícias ou não) e de “história” para fatos históricos.

17. Provavelmente Tolkien tem em mente a doutrina católica escolástica. Veja, por exemplo, Tomás de Aquino, Compendium Theologiae cap. 70, “Apenas Deus é Capaz de Criar”. Embora a doutrina fale de matéria e de criação a partir de nenhuma matéria, Tolkien parece aplicar isso à originalidade: apenas Deus pode criar uma narrativa verdadeiramente original, que não se vale de nada anterior.

18. Tolkien (1947, trad. de Ronald Kyrmse (em Tolkien, 2013) modificada, p. 69, grifo meu).

19. Segundo o Teísmo Clássico, a doutrina católica (a que Tolkien subscrevia) e a Bíblia (cf. Epístola de S. Paulo a Tito 1:2, Epístola aos Hebreus 6:18, Números 23:19), Deus não pode mentir ou enganar. É razoável, portanto, assumir que Tolkien e sua plateia tomassem a premissa “Deus não pode mentir” como dada, ainda que implícita.

20. Melkor, o satanás da obra de ficção de Tolkien, não era capaz de criar, apenas subcriar (Tolkien, 2006, carta 153, p. 182-4; Tolkien, 2021, Ainulindalë, p. 41-2). Igualmente, Aulë, um ser angélico, fracassou ao tentar criar os anãos sem a ajuda de Deus (Tolkien, 2021, “Quenta Silmarillion”, cap. 2, p. 73-4).

21. A maior feitura élfica nas lendas de Tolkien, as silmarils (silmarilli, no plural em quenya), são subcriação a partir de feituras prévias, de um material mais duro do que adamanto e da luz das árvores de Valinor (Tolkien, 2021, “Quenta Silmarillion”, cap. 7, p. 103, 105).

22. Poder-se-ia pensar que narrativas são compostas de proposições, e que proposições são entidades abstratas eternas, não criadas. Nesse raciocínio, não apenas haveria narrativas eternas como não haveria narrativas criadas – todas seriam eternas. Creio que Tolkien não subscreveria a esse platonismo acerca de narrativas e proposições. Talvez ele defendesse uma visão de proposições como ontologicamente dependentes de Deus, mas se essa dependência ontológica implicar que proposições são criadas, implicaria também que todas as narrativas são criadas, e nenhuma seria subcriada. Mas, claramente, Tolkien entende que há narrativas subcriadas. Toda essa discussão, contudo, foge ao ponto relevante: mesmo que Deus conheça todas as narrativas eternamente e que sejam proposições eternas ou criadas, há certas narrativas que os seres humanos passam a conhecer por imaginação, processos de composição e combinação de elementos já conhecidos, e C não poderia ser inicialmente conhecida por imaginação, mas apenas por uma revelação de Deus. Apenas Deus poderia conhecer C, pois apenas ele teria acesso epistêmico a narrativas como C, que possuem valor interno supremo. O ponto de Tolkien poderia ser mais bem defendido, portanto, sem apelo à linguagem de “criação” e “subcriação”, que pode evocar complicações ontológicas desnecessárias.

23. Plantinga (2004).

24. Diferentes mundos possíveis são inconsistentes entre si. O que determina a identidade de um mundo possível é a valoração única que ele possui para as proposições. Assim, qualquer diferença na valoração de qualquer proposição corresponde a um novo mundo possível, inconsistente com o anterior devido a essa(s) diferença(s).

25. Plantinga (2004, p. 5).

26. Plantinga (2004, p. 7, tradução livre).

27. Plantinga (2004, p. 11, tradução livre).

28. Plantinga (2004, p. 12, tradução livre).

29. Não é minha intenção avaliar a teodiceia de Plantinga aqui, isto é, se Plantinga de fato consegue apresentar uma resposta adequada ao problema do mal. Para discussões nesse sentido, veja Adams (2008), Diller (2008), Hudson (2018). Davis e Franks (2018) defenderam que a teodiceia de Plantinga (2004) é incompatível com a defesa de Plantinga (2012; 1974), embora Da Silva (no prelo) argumente solidamente que não o são. Aqui, preocupo-me não com a teodiceia de Plantinga, mas com um argumento que apresento e que parece ser consequência de algumas das premissas de Plantinga.

30. Em filosofia, a designação “de poltrona” é normalmente sinônimo de “a priori”, isto é, a partir de considerações puramente teóricas e sem fundamentação experimental. Muitas vezes é utilizada, como neste caso, para apontar que o procedimento pelo qual se derivam as conclusões pode não ser o procedimento mais confiável, dado que seres humanos cometem erros de raciocínio e diversas vezes assumem premissas não tão bem embasadas.

31. Tolkien consegue escapar dessa objeção com mais facilidade, pois o que é “convincente” é bem subjetivo, e seria difícil (se não impossível) comparar, por exemplo, o quão convincente é o cristianismo para Tolkien com o quão convincente é o ateísmo para Russell, ou o islamismo para Avicena etc.

32. Há também um outro tipo de viés: muitos de nós somos enviesados a crer no cristianismo pois somos ensinados a crer nele desde crianças e somos ensinados que é moralmente errado descrer nele. Essa objeção de viés é mais forte, e é muito difícil provar que ela não é verdadeira, pois não podemos mudar nosso passado e as estruturas sociais em que vivemos. Mas é, igualmente, muito difícil de prová-la, pelo exato mesmo motivo.

33. A rigor, dois passos estão subsumidos: “(α β) ((provavelmente α) (provavelmente β))” e “(α & provavelmente β) provavelmente (α & β)”, onde “α” e “β” são quaisquer fórmulas bem formadas.

34. A defesa do sensus divinitatis é, na epistemologia contemporânea, chamada de epistemologia reformada. Veja, nesse sentido, Plantinga (2018) e Clark e Barrett (2018). Segundo essa visão, os seres humanos possuem uma faculdade cognitiva (ou sistema ou módulo cognitivo) que gera uma propensão a acreditar no sobrenatural. A explicação para isso seria que Deus dotou os seres humanos dessa capacidade quando os criou (ainda que os tenha criado por meio de processos evolutivos, Deus teria garantido o surgimento dessa faculdade). Dessa forma, Deus foi gracioso a ponto de dotar os seres humanos com uma tendência a desenvolver crenças em agentes sobrenaturais para, dessa forma, os seres humanos estarem mais próximos de alcançar o conhecimento de Deus, que é um agente sobrenatural. Obviamente, a doutrina cristã enfatiza também que o pecado teve efeito sobre as faculdades cognitivas dos seres humanos, de forma que é possível que o sensus divinitatis, o sentido da divindade, nos desse, originalmente, um conhecimento mais preciso e mais direto de Deus antes de ter sido afetado pelo pecado. Nos termos de Plantinga, a crença em Deus é provida de aval (ou avalizada) se ela é verdadeira, dado que é fruto de um mecanismo cognitivo confiável em bom funcionamento (assim como memória, percepção etc.) Isso porque ela é uma crença propriamente básica, isto é, resultante diretamente de uma faculdade cognitiva fundamental.

35. Entendo que a epistemologia reformada é um tipo específico de apelo ao externalismo epistêmico. Para outras discussões sobre externalismo epistêmico, veja Bonjour e Sosa (2003).

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