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ENSAIO

De onde vem as tretas?

Conflito, reconhecimento e dom

Tiago Melo|

20/12/2023

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Tiago de Melo Novais

Graduado em Teologia pela FTSA, mestre em Ciências da Religião pela PUC Campinas e doutorando em Ciências da Religião pela UMESP. É pesquisador visitante na Yale Divinity School e editor assistente na Academia ABC².

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Como citar

Novais, Tiago de Melo. De onde vem as tretas? Conflito, reconhecimento e dom. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Em algum nível, todos experimentamos conflitos. Não temos como escapar dos desentendimentos, a começar por aqueles que brotam até mesmo dos relacionamentos mais significativos, como longas amizades ou casamentos saudáveis. Não descobrimos como nos blindar das brigas surgidas de ideias antagônicas, que, uma vez expressas, causam reações de profundo desconforto e ojeriza. Também não temos uma fórmula que seja suficientemente capaz de prevenir a humanidade de travar combates armados e iniciar novas disrupções políticas ou guerras. Seja qual for seu formato, a treta é uma constante de nossa condição humana.

Mas nem só de treta viverá o humano. Afinal, relações não podem ser mantidas somente à base de conflitos, e isso é verdade para relações interpessoais, mas também para relações sociais mais amplas. Ou seja, deve haver modos pelos quais a onipresença do conflito possa ser mais bem entendida e mitigada na vida social. A isto me proponho: oferecer um ensaio (nada novo) costurando algumas importantes percepções acerca do conflito.

A essa altura, o cristão com um olhar treinado pode já pré-concluir que, para resolver a questão, apelarei para a fórmula deus ex machina da teologia: o pecado original. Embora essa seja uma ponte possível entre a teologia e uma ideia geral sobre o conflito, creio que ela não é a mais produtiva nesse tipo de exploração, uma vez que a noção de pecado original é geralmente posta como uma categoria a priori. Como tal, ela é uma alegação ontológica acerca da condição do ser humano pós-lapsariano (pós-queda), a ser confirmada na experiência universal da existência do mal e de toda sorte de infelicidades da vida. Isso, por certo, exige uma dose de fé que só pode ser aceita por cristãos, pois, embora qualquer pessoa possa ter como certo a presença do mal no mundo, só uma parcela aceita o pressuposto do pecado original. Para este ensaio, busco uma resposta simples o bastante para que qualquer um identifique na própria vivência a razoabilidade da proposta, mas próxima o suficiente da fé cristã para que cristãos possam reconhecer nela uma possível ressonância com o pecado original. Nesse sentido, pode-se complementar a noção de pecado original com o que em seguida iremos tratar, mas não se pode pressupor que a conclusão é derivada dessa doutrina. Assim, irei perseguir outra resposta à pergunta “de onde vem os conflitos?”.

Origem e natureza do conflito

Não é preciso ir muito longe para afirmar que a origem e a natureza do conflito são disputadas por diferentes perspectivas. Se você responder mentalmente à pergunta “de onde vem os conflitos?”, verá que as possibilidades são variadas e, muitas vezes, igualmente plausíveis. Porém, algumas respostas possuem certa credibilidade acadêmica.

Uma delas é a visão de que o processo evolutivo resultou em disputas interespécies e intraespécies a fim de expandir território, elevar o status de certos grupos em detrimento de outros e, principalmente, propiciar a perpetuação da prole.¹ Outra é a passagem de uma economia baseada na predação para a produção, gerando estratificação social e hierarquias de poder que suscitam o conflito.² Há também a visão de que a religião³ – principalmente os monoteísmos⁴ – promove reivindicações exclusivistas sobre a verdade das coisas, implicando embates tanto simbólicos quanto físicos com grupos que possuem concepções contrárias. Embora comum na antiguidade e no medievo, ainda há resquícios de conflitos motivados pela religião no mundo contemporâneo.

Bom, apesar desses exemplos nos darem boas pistas sobre a origem e a natureza das tretas, o que podemos deles inferir é que o conflito é mais complexo do que parece à primeira vista. Por isso, prefiro assumir que, quando se trata de entender o conflito, temos de nos atentar à sua multifatorialidade. Isto é, embora diferentes, os exemplos apresentados anteriormente podem ser entendidos como fatores que compõem uma resposta multifatorial sobre a questão. Assim, há um aspecto biológico surgido do processo evolutivo; há um aspecto socioeconômico surgido do desenvolvimento de sociedades com economia produtiva; e há um aspecto vindo da radicalização da crença religiosa que transforma as diferenças de convicções numa guerra de deuses e seus povos.

A treta pela ótica do reconhecimento em Axel Honneth

Mas há algo mais a ser considerado: se olharmos para os conflitos mais patentes que presenciamos hoje, como os conflitos territoriais (por exemplo Israel-Palestina ou Ucrânia-Rússia) ou ideológicos (como a polarização política entre direita-esquerda no Brasil e Estados Unidos) atuais, veremos que o que está em jogo é o mau funcionamento das relações interpessoais que oportunizam o conflito. Em outras palavras, o conflito (no singular) pode possuir uma origem composta por fatores distintos, mas, no final das contas, conflitos (no plural) sempre passam pelo descompasso nas relações interpessoais.⁵ Será produtivo, portanto, visitarmos algumas ideias que nos ajudarão a compreender a face relacional dos conflitos sem contradizer os fatores anteriormente mencionados – sem desfazer da multifatoriedade do problema.

Com isso em mente, falemos sobre um fator preponderante das relações humanas, que pode ser a chave para entendermos (mais) sobre os conflitos e, principalmente, como mitigá-los. Estou me referindo à noção de reconhecimento.

Reconhecimento, para nós que falamos português, pode significar pelo menos duas coisas: (a) ato ou efeito de reconhecer e admitir como verdadeiro (pense no reconhecimento de firma do cartório); (b) ato ou efeito de ser grato, reconhecendo um benefício recebido (pense na verbalização de um “muito obrigado” por ter recebido um presente de aniversário). Bem, desse modo, recorrer ao reconhecimento como chave para relações intersubjetivas pode significar tanto (a) a ação de admitir e ser admitido como sujeito, tendo sua alteridade assegurada enquanto se assegura a de outrem, mas também pode significar (b) a ação de expressar gratidão por aquilo que foi recebido pelo outro.

Isso, porém, não é novidade. Utilizar a noção de reconhecimento como recurso metodológico para o estudo das relações sociais está presente na filosofia desde que o jovem Georg Wilhelm Friedrich Hegel (no seu período de Jena) chamou a atenção para o tema. Contudo, mesmo com sua grande influência, a questão não ganhou tração e passou a ser reconsiderada somente no século passado. Foi então que Axel Honneth e Paul Ricoeur, para mencionar dois, fizeram uso desse recurso e produziram obras dignas de serem chamadas de tratados sobre o reconhecimento.

Honneth é conhecido por suceder os autores da Escola de Frankfurt e ser um dos autores contemporâneos mais importantes da Teoria Crítica. Baseando-se em Hegel,⁶ Honneth escreveu sua tese de livre docência intitulada “A luta pelo reconhecimento“, que considera que nós, humanos, travamos verdadeiras lutas sociais para criar ou manter relações de reconhecimento mútuo, nas quais, em tese, somos plenamente considerados pelo outro como sujeitos individuados.⁷

Importa lembrar que o que Honneth entende por reconhecimento está ligado ao primeiro significado da palavra conforme coloquei antes, mas também contempla um elemento de reciprocidade que não pode ser deixado de lado. Reconhecimento é um processo de ida e volta, no qual o sujeito expõe sua dependência de outro: o sujeito é confirmado em sua identidade pessoal à medida que é reconhecido por outro sujeito. Ao falar do crime e da honra em Hegel, por exemplo, Honneth destaca: “um indivíduo só está em condições de identificar-se integralmente consigo mesmo na medida em que ele encontra para suas peculiaridades e qualidades aprovação e apoio também de seus parceiros na interação”.⁸ Perceba que reconhecimento e identidade andam lado a lado, pois, sob essa perspectiva, não há identidade, em sentido forte, sem a mutualidade do reconhecimento. De fato, o que compõe a identidade pessoal dos sujeitos deve ser reconhecido por outros.

Perceba que reconhecimento e identidade andam lado a lado, pois, sob essa perspectiva, não há identidade, em sentido forte, sem a mutualidade do reconhecimento. De fato, o que compõe a identidade pessoal dos sujeitos deve ser reconhecido por outros.

Mais especificamente, há pelo menos três esferas nas quais se encontram padrões de reconhecimento intersubjetivo: o amor, o direito e a solidariedade.⁹ Vejamos cada um individualmente.

Com relação à primeira forma de reconhecimento, a esfera do amor, Honneth se refere àquelas poucas relações primárias que envolvem afeto entre duas pessoas. Amigos, cônjuges, pais e mães, e outras relações cuja mútua confirmação passa pela satisfação e correspondência de carências e afetos, dependem de um tipo específico de reconhecimento, que aqui recebe um caráter de “assentimento” e “encorajamento afetivo”.¹⁰ Segundo Honneth, “na experiência recíproca da dedicação amorosa, dois sujeitos se sabem unidos no fato de serem dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro”.¹¹ Em outras palavras, na esfera do amor, o reconhecimento mútuo é concretizado no assentir e ser assentido, no encorajar e ser encorajado, ser suprido e suprir carências; demonstrando, assim, a dependência¹² desse outro afetivo. Em termos de autorrelação, esse reconhecimento gera autoconfiança.

Para explicar e dar plausibilidade empírica ao funcionamento desse reconhecimento intersubjetivo, Honneth recorre aos dados clínicos de Donald Woods Winnicott, o psicanalista que elaborou interessantes teses sobre a relação entre mãe e bebê. Tal relação se inicia pela fase da “dependência absoluta”, onde um precisa inteiramente do outro para satisfazer suas carências, sem que haja ainda a distinção entre o eu do bebê e o eu da mãe como sujeitos autônomos. Passando da primeira à próxima fase, a relação entra em uma desadaptação gradual, chamada de “dependência relativa”, onde a mãe expande (ou recupera) seu “campo de atenção social” e o bebê ganha intuições intelectuais aprimoradas acerca da sua capacidade de sobreviver por intervalos maiores sem a mãe, o que propicia a distinção cognitiva entre eu do bebê e o da mãe – agora um outro. A respeito dessa segunda fase, Honneth diz que as análises de Winnicott “dão a entender como se constitui na relação entre mãe e filho aquele ‘ser-si-mesmo em um outro’ [definição hegeliana de amor], o qual pode ser concebido como padrão elementar de todas as formas maduras de amor”.¹³

Mas isso não ocorre sem luta, ou, nesse nosso ensaio, de conflito: para a fase de dependência relativa, o bebê entra em rebeldia por meio de comportamentos agressivos em virtude da distância da mãe, que, antes onipresente, não está mais à sua inteira disposição. No entanto, diferente de outras interpretações psicológicas às reações de agressividade da criança, para Winnicott, as atitudes violentas por parte do bebê, como mordidas, tapas e empurrões na mãe, mostram um teste em andamento: é o bebê inconscientemente construindo meios para reconhecer a mãe como ser “de direito próprio”, a qual resiste, responde a ele com negativas e suporta seus “atos destrutivos” (sim, esse é o termo de Winnicott) com amor. Somente assim a criança chega ao reconhecimento de que este objeto (mãe) é, na verdade, outro sujeito. Ao mesmo tempo, ele é reconhecido pela mãe como ser autônomo e distinto de seu eu.¹⁴ Com isso, Honneth arremata o argumento da luta por reconhecimento como modelo das relações de amor, dizendo: “Se, pelo caminho assim traçado, um primeiro passo de delimitação recíproca é bem-sucedido, a mãe e a criança podem saber-se dependentes do amor do respectivo outro, sem terem de fundir-se simbioticamente uma na outra.”¹⁵ É essa dinâmica que permite ao autor sugerir o “reconhecimento como um elemento constitutivo do amor”.¹⁶

Tentarei ser mais sucinto ao descrever as duas outras esferas, mas, não sem razão, esta primeira é primordial e merece mais espaço. A segunda esfera é a do direito. Honneth percebe que o tratamento de Hegel para as relações jurídicas é quase inteiramente diferente das relações afetivas. O que as liga, no final das contas, é a mesma reciprocidade do reconhecimento.

Nesta esfera, o que se espera é o reconhecimento de sujeitos como pessoas de pleno direito. Diferentemente da anterior, essa forma de interação não inclui ligação emocional, apenas respeito cognitivo mútuo. Ou seja, trata-se da capacidade de reconhecer o outro como ser respeitável e possuidor de direitos iguais aos meus. Aqui, em vez de recorrer ao direito natural para justificar o reconhecimento jurídico, recorre-se a uma evolução histórica das relações jurídicas: o que torna o indivíduo autônomo e possuidor de direitos para o Estado é o sucesso das lutas por reconhecimento das relações sociais de respeito que são incorporadas no direito positivo.

A luta por esse tipo de reconhecimento se dá na forma de lutas sociais, como a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, ou a luta contra o apartheid na África do Sul. Quando se constata o desrespeito, a exclusão ou a denegação dos direitos de certos grupos (nestes dois casos, de todas as pessoas negras), conflitos entram em cena com o fim de ampliar direitos que possibilitem mais “chances individuais de realização das liberdades socialmente garantidas”¹⁷ e de expandir – de fato, universalizar – o “alcance social do status de uma pessoa de direito”.¹⁸ Em termos de autorrelação, o que se espera gerar é o autorrespeito:

assim como, no caso do amor, a criança adquire a confiança para manifestar espontaneamente suas carências mediante a experiência contínua da dedicação materna, o sujeito adulto obtém a possibilidade de conceber sua ação como uma manifestação da própria autonomia, respeitada por todos os outros, mediante a experiência do reconhecimento jurídico.¹⁹

Se o leitor ainda está comigo, perceberá que falta uma última esfera: a solidariedade. Segundo Honneth, tanto Hegel quanto George Herbert Mead entendem que os sujeitos humanos precisam de uma terceira experiência de reconhecimento, a saber, a afirmação de suas propriedades e capacidades individuais, que não são contempladas na esfera do direito porque não são partilhadas indistintamente com todos os outros membros da sociedade. Esta é a experiência chamada de estima social, pois se trata da autoestima mútua gerada por esse tipo de reconhecimento.

Contudo, para entendê-la melhor, será útil reproduzir mais um caso de luta por reconhecimento usado por Honneth, desta vez sobre o confronto da nova burguesia contra o sistema feudal e a aristocracia. O que esse conflito histórico demonstra é uma transformação na hierarquia de valores das propriedades que os atores sociais partilham: no antigo sistema de reconhecimento do feudalismo, elas eram coletivamente definidas segundo a honra intrínseca de cada grupo (clero, nobres, camponeses); com a revolta burguesa, tal hierarquia se dissolve e dá lugar à individualização da estima social, na qual um indivíduo é reconhecido (nesse caso, estimado) em virtude de sua contribuição para determinadas finalidades éticas:

uma vez que não deve ser mais estabelecido de antemão quais formas de conduta são consideradas eticamente admissíveis, já não são mais as propriedades coletivas, mas sim as capacidades biograficamente desenvolvidas do indivíduo aquilo por que começa se orientar a estima social.²⁰

Essa esfera é chamada solidariedade, pois brota da mutualidade da estima que os sujeitos têm pelas realizações uns dos outros – novamente, pelas suas propriedades e capacidades –, o que retorna como prestígio, honra ou dignidade social para eles. Não entraremos no mérito acerca da mudança axiológica que altera o que é socialmente aceitável e prestigioso, mas importa dizer que, com a crescente particularização do que é socialmente prestigiado, o mundo contemporâneo se torna um cenário propício para novos conflitos por reconhecimento, além de deixar a solidariedade social numa sinuca de bico, afinal, indivíduos não precisam mais recorrer à pertença de um grupo para serem reconhecidos por suas realizações, nem precisam de padrões culturais para serem respeitados.

Como isso pode ser contornado? Segundo Honneth, por meio de relações “simétricas” entre sujeitos individuados: porque são singulares, indivíduos se reconhecem mutuamente não apenas pelas propriedades compartilhadas (isto é solidariedade tradicional), mas pelas capacidades do outro que são importantes para a práxis comum. Veja o que o autor diz: “só na medida em que eu cuido ativamente de que suas propriedades, estranhas a mim, possam se desdobrar, os objetivos que nos são comuns passam a ser realizáveis”.²¹

Dito isso, basta entendermos que, enquanto a esfera jurídica (respeito social) parte do reconhecimento das propriedades universais que fundamentam o direito dos sujeitos, a esfera da solidariedade (estima social) parte da individualização do reconhecimento de certas propriedades e capacidades.

Como se pode perceber, a noção de reconhecimento está intimamente ligada às formas de autorrelação: a autoconfiança, o autorrespeito e a autoestima. Por depender do reconhecimento que vem de outro, destaca-se a interdependência relacional implicada na autorrelação, na qual se revela a necessidade do outro para que nossa individualidade seja reconhecida, mesmo quando ela representa uma alteridade radical em relação a ele ou vice-versa. Portanto, o reconhecimento no âmbito afetivo, legal ou da estima social, são pontes entre o um e outro, e, em última instância, a prevenção do um contra o outro. Idealmente, o eu que reconhece e é reconhecido é reforçado como eu-com-o-outro, digamos assim.

Portanto, o reconhecimento no âmbito afetivo, legal ou da estima social, são pontes entre o um e outro, e, em última instância, a prevenção do um contra o outro. Idealmente, o eu que reconhece e é reconhecido é reforçado como eu-com-o-outro, digamos assim.

Fig. 1: Tabela da estrutura das relações sociais de reconhecimento.²²

 

A economia do dom

Juntas, as três esferas do reconhecimento, ou os três padrões de reconhecimento mútuo das interações sociais, formam tanto uma explicação geral do surgimento de conflitos como a sugestão de meios para mitigá-lo, pois, ao ser discernida em termos de “luta pelo reconhecimento”, admite-se a falta e, portanto, a necessidade de reconhecimento, seja afetivo, legal ou social. Ou seja, encontramos em Honneth tanto o diagnóstico quanto o prognóstico para o problema que levantei neste ensaio. Mas não quero me dar por satisfeito. Apesar de interessante, falta a Honneth um componente que só pode ser captado por alguém vindo da fenomenologia. Estou falando de Ricoeur.

Na sua análise etimológica em O percurso do reconhecimento, Ricoeur diz que a palavra reconhecimento, em francês,²³ também possui o sentido de reconhecimento como gratidão – que coincide com o segundo sentido da palavra em português, conforme destaquei anteriormente. O que há de único no seu diálogo com Honneth é a reabertura, como Ricoeur diz, da questão do dom.

Antes mesmo de lançar O percurso do reconhecimento (de 2005), Ricoeur dá uma palestra, engajando-se na discussão com Honneth (em 2002). Percebendo que, para Hegel e, consequentemente, Honneth, o reconhecimento está emaranhado com o conflito, Ricoeur pensa na possibilidade de um reconhecimento não conflituoso, que ocorre sob a via da troca de presentes (a troca de dons). Não, isso não é mais um termo técnico. Significa exatamente o que você pensou: dar e receber presentes, como fazemos no Natal, no aniversário, no dia das crianças, no dia das mães, dos pais, dos avós, ou qualquer outra ocasião onde se demonstra gratidão a alguém. A coisa importante a ser observada, contudo, não é o dom em si, mas a representação que o dom adquire na relação entre o doador e o recebedor. O dom, nesse caso, é um mediador do reconhecimento tácito entre um e o outro. Mas isso, por si só, não configura a operação de mutualidade que se exige com a noção de reconhecimento. Como, então, se dá a reciprocidade na troca de dons?

O dom, nesse caso, é um mediador do reconhecimento tácito entre um e o outro.

Ao olhar para os trabalhos de Marcel Mauss (Ensaio sobre o dom), que propõe que o dom exige um contra-dom (uma retribuição), e para os trabalhos etnográficos de Claude Lévi-Strauss, que fala da crença de povos originários sobre a troca do dom como uma força mágica – cujo recebimento de um presente seria o retorno dessa força a sua origem devida –, Ricoeur oferece uma alternativa: “Parece-me que não é a coisa dada que, por sua força, exige a retribuição, mas é o ato mútuo de reconhecimento de dois seres que não têm o discurso especulativo de seu conhecimento”.²⁴ Em outras palavras, não é a qualidade do presente que gera a recíproca, mas o reconhecimento tácito entre recebedor e doador no ato de presentear, cujo dom serve apenas como oferta pela falta de palavras de um sobre o outro. Não fosse assim, estaríamos numa dinâmica de natureza compensatória, na qual se recebe como recompensa (salário, a compra de produtos, a dívida), e não como gratidão.

O reconhecimento-gratidão, que ocorre concretamente somente de vez em quando, em momentos que chamamos de ocasiões especiais, são para Ricoeur uma fonte valiosa de reconhecimento não conflituoso. Ao recebermos um presente, experimentamos uma pequena felicidade por sermos reconhecidos “ao menos uma vez na vida”.²⁵ Por outro lado, ao darmos presentes, proporcionamos esse sentimento a outros, que volta para nós como um tipo mais nobre de felicidade, experimentando a verdade de que “há maior felicidade em dar do que receber” (At. 20:35). No entanto, “se nós não tivermos jamais a experiência de ser reconhecidos, de reconhecer na gratidão da troca cerimonial, seremos violentos na luta por reconhecimento”.²⁶

Por outro lado, ao darmos presentes, proporcionamos esse sentimento a outros, que volta para nós como um tipo mais nobre de felicidade, experimentando a verdade de que "há maior felicidade em dar do que receber" (At. 20:35).

Por fim, nessa “economia do dom”, podemos ver a possibilidade de um reconhecimento que vence o conflito e que, embora sua completa ausência possa perpetuar a luta intersubjetiva por ser reconhecido, mesmo sua escassa presença em dias de festa e celebração pode ser um remédio para mitigar conflitos relacionais.

De forma prática, encontramos nas festividades, individuais ou coletivas, as oportunidades para vivenciar o reconhecimento na forma de dar e receber presentes. É nas festividades, segundo Ricoeur, que podemos diminuir até mesmo o efeito confrontativo vindo da busca pelo dinheiro, poder e performance social que elevam a retribuição compensatória em detrimento do cultivo da gratidão:

Será que a diferença entre os dias trabalhados, como dizemos, e as festas comemorativas não guardam uma significação fundadora, como se houvesse uma espécie de suspensão na corrida pela produção, no enriquecimento, e que faz com que as festividades sejam, por assim dizer, a réplica não violenta de nossa luta para ser reconhecido? Com efeito, pode-se dizer que na relação de presentear, de troca, de benefício, temos uma experiência viva de reconhecimento.²⁷

Onde há reconhecimento afetivo, jurídico ou de estima social, é certo que houve conflito. Mas onde há gratidão, pode-se ver um tipo singular de reconhecimento que potencialmente não conhece a luta, mas brota da reciprocidade relacional simbolizada no dom.

 

Referências

Armstrong, Karen. Fields of Blood: Religion and the History of Violence. EUA, New York: Anchor Books, 2015.

Assman, Jan. O preço do monoteísmo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2021.

Honneth, Axel. A luta por reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003

Lopes, Reinaldo José. Homo Ferox. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2021.

Patou-Mathis, Marylène. The origins of violence. The Unesco Courier, Ideas, 2020. Clique aqui para acessar.

Ricoeur, Paul. A luta por reconhecimento e a economia do dom. Revista ethic@, v. 9, n. 2, 2010, p. 364. Clique aqui para acessar.

Ricoeur, Paul. O percurso do reconhecimento. São Paulo: Editora Loyola, 2006.

Woodward, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Tomaz Tadeu da Silva (org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. São Paulo: Editora Vozes, 2014.

 

 

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1. Lopes, 2021.

2. Patou-Mathis, 2020.

3. Armstrong, 2015.

4. Assman, 2021.

5. Até mesmo em se tratando de guerras entre nações inteiras, a instância concreta onde o conflito ocorre é sempre interpessoal, afinal, é um atentado de um contra um outro, mas em larga escala. Por isso, importa darmos atenção à dimensão relacional do conflito. Para ilustrar, veja a história do conflito de um sérvio e um croata, narrada pelo escritor Michael Ignatieff no contexto da guerra na antiga Iugoslávia: Woodward, 2014, pp. 7-8.

6. Honneth explica que Hegel foi o primeiro a contrapor a tendência da filosofia política moderna, que se baseava na noção de autopreservação, presente em Maquiavel e Hobbes, com a noção de reconhecimento. Isto é, no lugar da luta pela autopreservação, que pressupõe agentes sociais egoísticos, por meio de contratos sociais as relações na sociedade funcionam em torno da luta por reconhecimento de indivíduos e grupos sociais.

7. Não teremos tempo e espaço para lidar com isso, mas vale notar que Hegel propõe uma dialética entre o conflito social e o reconhecimento. “Hegel não quer apenas expor como as estruturas sociais do reconhecimento elementar são destruídas por atos de exteriorização negativa da liberdade; ele quer, além disso, mostrar que só por tais atos de destruição são criadas as relações de reconhecimento eticamente mais maduras, sob cujo pressuposto se pode desenvolver então uma “comunidade de cidadãos Iivres” efetiva. Honneth2003, p. 56-57.

8. Honneth2003, p. 56.

9. Esta ideia não pode ser considerada uma contribuição original de Honneth, embora os contornos dados por ele supram lacunas importantes deixadas por Hegel e por George Herbert Mead. Honneth observa que tanto Hegel quanto Mead (o qual deu uma contribuição psicológica para a teoria hegeliana do reconhecimento) contemplam uma tripartição do reconhecimento por meio da identificação de três diferentes esferas sociais: “Hegel distingue em sua filosofia política a família, a sociedade civil e o Estado; em Mead se divisa a tendência de destacar das relações primárias do outro concreto as relações jurídicas e a esfera do trabalho enquanto duas formas distintas de realização do outro generalizado”. Honneth, 2003, p. 158.

10. Ibidem p. 160.

11. Ibidem.        

12. Não se pode confundir dependência mútua com falta de autonomia individual. Na verdade, o que Honneth tem em mente é uma relação constituída pela tensão (também posta por Hegel) entre autonomia e ligação, que na psicanálise ganha novos contornos a partir de dados clínicos.

13. Ibidem, p. 168.

14. Honneth reforça a ideia da luta por reconhecimento, afirmando: “com efeito, só na tentativa de destruição de sua mãe, ou seja, na forma de uma luta, a criança vivencia o fato de que ela depende da atenção amorosa de uma pessoa existindo independentemente dela, como um ser com pretensões próprias”. Honneth, 2003, p. 170.

15. Ibidem, p. 170.

16. Ibidem, p. 178.

17. Ibidem, p. 194.

18. Ibidem.          

19. Ibidem.            

20. Ibidem, p. 205.

21. Ibidem, p. 211.

22. Ibidem.      

23. Além dos dois sentidos que destaquei na língua portuguesa, Ricoeur adiciona mais um que os antecede: “No que diz respeito ao vocábulo ‘reconhecer’, que serve aqui como prova para as concepções lexicográficas, as ideias-mãe são reduzidas a três: ‘I. Apreender (um objeto) pela mente, pelo pensamento, ligando entre si imagens, percepções que se referem a ele; distinguir, identificar, conhecer por meio da memória, pelo julgamento ou pela ação. II. Aceitar, considerar verdadeiro (ou como tal). III. Demonstrar por meio de gratidão que se está em dívida com alguém (sobre alguma coisa, uma ação)’.” Ricoeur, 2006, p. 22.

24. Ricoeur, 2010, p. 364.

25. Ibidem, p. 365.

26. Ibidem.         

27. Ibidem.           

Outros ENSAIOS [nº 2]

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