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Sobre a prova matemática mais ousada da existência de Deus

Walter Carnielli|

01/12/2023

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Walter Carnielli

Graduado e licenciado em Matemática, especialização em Filosofia da Ciência, mestrado em Matemática, e doutorado em Matemática pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorado pela University of California, pela Universitat Munster (Westfalische-Wilhelms) e pela Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität Bonn, como bolsita da Fundação Alexander von Humboldt. Atualmente é Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, e editor e membro do corpo editorial de diversas revistas científicas.

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Como citar

Carnielli, Walter. Sobre a prova matemática mais ousada da existência de Deus. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Contra e a favor, sempre

A existência, ou inexistência de Deus, e no caso positivo sua unicidade, tem incendiado a imaginação de muita gente há séculos. Há inúmeros argumentos favoráveis e contrários à existência de Deus no curso da história da filosofia e da teologia. Uma tradição desde Aristóteles afirma que o conhecimento de Deus pode ser obtido através de processos naturais de raciocínio, sem envolver experiências pessoais com o divino ou transcendente caracterizadas por revelação, como a Bíblia, ou epifanias de algum tipo, por exemplo.

Minha intenção aqui não é avaliar cada argumento a favor ou contra, mas preparar o leitor para a prova matemática que considero ser a mais sofisticada até hoje: a prova teológica proposta pelo lógico e matemático Kurt Gödel em 1940, que ajudará a compreender limites da relação entre fé e razão.

Alguns dos principais argumentos que pretendem provar a existência de Deus são os seguintes:

  1. Argumento Cosmológico: este argumento advoga que a existência do universo requer uma causa ou explicação, frequentemente referida como a “Causa Primeira” ou “Causa Incausada”. Essa causa primeira é considerada Deus. Duas versões famosas deste argumento são o argumento cosmológico de Kalam e o argumento da contingência.¹
  1. Argumento Teleológico: uma das suas versões recentes é conhecida como argumento do “design”, ou projeto. Este argumento alega que a complexidade e o propósito observados no mundo natural implicam a existência de um projetista (designer) inteligente, ou seja, Deus.
  1. Argumento Moral: este argumento alega que valores e deveres morais objetivos requerem um legislador moral, frequentemente identificado como Deus. Argumenta-se que a existência de uma fonte transcendente para a moral é mais bem explicada por um ser divino. Este tipo de argumento é explorado, contra e a favor, por Immanuel Kant.²
  1. Argumentos Probabilísticos: a partir da segunda metade do século 20, por influência principalmente das propostas de Alvin Plantinga e Richard Swinburne, a teologia analítica se reorientou, desviando-se das provas da existência (ou inexistência) de Deus para a questão de como raciocinar com evidências a favor e contra a existência de Deus.
 

Alvin Plantinga é um dos filósofos seminais da religião da segunda metade do século 20. Uma de suas contribuições mais distintivas e importantes para a filosofia da religião é sua afirmação de que argumentos não são necessários para a crença racional em Deus, mas mesmo assim defende que ainda existem muitos bons argumentos disponíveis.³

Richard Swinburne é conhecido por propor argumentos probabilísticos em favor da existência de Deus. Em seu The Existence of God, Swinburne tentou mostrar, usando argumentos indutivos por meio da aplicação do teorema de Bayes, que a existência de Deus é mais plausível do que a não existência.⁴ É bom deixar claro que não faltam críticas a tais propostas.

  1. Argumento Ontológico: é aquele que conclui que Deus existe a partir de premissas derivadas apenas da razão, não consequentes à observação do mundo. Este argumento, que é o que nos interessa, é uma tentativa lógica de provar a existência de Deus a partir de definições refinadas do conceito de Deus, alegando a existência de Deus como uma verdade necessária. A referência mais antiga é o argumento de Santo Anselmo.⁵
 

Argumentos contra a existência de Deus também proliferam; os mais conhecidos são:⁶

  1. Problema do Mal: este argumento afirma que a existência do mal e do sofrimento no mundo é incompatível com a ideia de um Deus onipotente, onisciente e perfeitamente bom; já que um Deus benevolente não permitiria tal sofrimento, Ele não poderia existir.
  1. Argumento da Incoerência: alguns críticos argumentam que o conceito de um Deus onipotente, onisciente e amoroso é internamente inconsistente e logicamente incoerente, levando a contradições dentro da lógica tradicional.
  1. Alguns críticos como Richard Dawkins, em Deus, um Delírio, alegam que argumentos como os cosmológicos e teleológicos funcionariam em razão de lacunas no conhecimento científico, de tal forma que avanços na ciência diminuíram a necessidade e o interesse de uma explicação divina para vários fenômenos (vale a pena ver também).⁷
 

Um tipo de argumentação mais sociológica ou antropológica, e menos lógica ou filosófica, seria que a diversidade de crenças religiosas e a ausência de uma experiência religiosa única e universal enfraqueceriam qualquer argumento em favor da existência de um Deus único e abrangente, que então não teria sentido.

O teólogo e filósofo Anselmo de Cantuária (1033-1109), no início do último milênio, já havia imaginado um criativo argumento sobre a divina existência, descrevendo Deus como um ser além do qual nada maior pode ser pensado, ou seja, a maior coisa que se pode imaginar. Desse modo, é possível racionalmente considerar a existência de Deus por contradição. Suponhamos que Deus não exista; então, se poderia imaginar algo maior, a saber, um ser além do qual nada maior pode ser contemplado. No entanto, esse ser, se existe, exibe uma propriedade de máxima grandeza. Isso é, então, um absurdo: nada pode ser maior do que a maior coisa que se pode imaginar. Portanto, a suposição de que Deus não existe deve estar errada: uma prova por redução ao absurdo. Apesar de criativo, esse argumento não é plenamente aceitável – há uma grande gama de críticas a Anselmo advindas das mais variadas vertentes filosóficas.

As mais imediatas são do tipo da crítica levantada por um contemporâneo de Anselmo, o monge Gaunilo de Marmoutier, de que o argumento de Anselmo poderia ser usado para mostrar a existência de todos os tipos de objetos inexistentes. Outra crítica famosa e bastante contundente é a de Immanuel Kant (1724-1804): será que realmente a existência é uma perfeição? Não seria melhor se o mal de Alzheimer não existisse?

Nos mil anos decorridos entre Anselmo e Gödel, muitos teólogos, filósofos, matemáticos e outros estudiosos criticaram, analisaram, modificaram e tentaram melhorar o argumento de Anselmo, desde Blaise Pascal, René Descartes e Baruch Spinoza (no século 17) até Gottfried Leibniz (no século 18).

René Descartes, em sua Quinta Meditação, defendeu um argumento semelhante ao de Anselmo,⁸ tentando derivar a existência de Deus a partir da ideia de um ser supremamente perfeito. Descartes argumenta que conceber um ser supremamente perfeito que carece de existência é tão contraditório quanto conceber um triângulo cujos ângulos internos não somem 180 graus. Portanto, como podemos conceber um ser supremamente perfeito, devemos concluir (evitando uma contradição) que um ser supremamente perfeito existe.

No início do século 18, Gottfried Leibniz levantou uma crítica contra a visão de Descartes. De acordo com Leibniz, os argumentos de Descartes falham a menos que se mostre primeiro que a ideia de um ser supremamente perfeito é coerente, ou que é possível que exista um ser supremamente perfeito. Leibniz argumentou que é impossível demonstrar que as perfeições podem ser analisadas ou separadas, e concluiu a partir disso que todas as perfeições podem coexistir juntas em uma única entidade. O problema seria então raciocinar com a ideia de perfeição, que não é analisável, e isso destruiria a tentativa de Descartes.

Por fim, Kurt Gödel, no século passado, cujos escritos sobre o tema com base no trabalho de Leibniz só vieram a público em 1987, teve a coragem, ou a insensatez, de subir nessa arena de gigantes filosóficos.

Leibniz argumentou que é impossível demonstrar que as perfeições podem ser analisadas ou separadas, e concluiu a partir disso que todas as perfeições podem coexistir juntas em uma única entidade.

Quem foi Kurt Gödel, e a revolução que ele provocou no conhecimento humano

Kurt Gödel foi um matemático austríaco nascido em 1906 e falecido em 1978, amigo e colega de Albert Einstein na Universidade de Princeton, amplamente considerado um dos matemáticos mais influentes do século 20, e mais conhecido por seus trabalhos em lógica matemática. Gödel é o responsável pelos celebérrimos Teoremas da Incompletude da Aritmética, que têm tirado o sono dos matemáticos, filósofos e todos os outros cientistas bem-informados desde 1931.

Gödel causou uma revolução na matemática e no conhecimento humano por meio de sua contribuição mais fundamental, o chamado Teorema de Incompletude, publicado em 1931. Esse teorema estabelece limites intransponíveis para o que é possível alcançar por meio de sistemas formais (como os axiomas da aritmética) em matemática: o resultado afirma que em qualquer sistema axiomático suficientemente complexo e capaz de expressar a aritmética, haverá proposições matemáticas que não podem ser provadas nem refutadas dentro desse sistema. Uma consequência deste resultado é conhecida como o “segundo teorema da incompletude de Gödel”, que afirma que qualquer teoria efetivamente gerada 𝑇 capaz de interpretar a aritmética de Peano prova a sua própria consistência se, e somente se, 𝑇 for inconsistente. Em outras palavras, uma tal teoria (incluindo a própria aritmética usual) ou é inconsistente ou, se for consistente, não consegue provar sua própria consistência. Apelando a uma paródia: ninguém consegue provar, de forma absoluta, sua própria sanidade mental — ou se trata de uma pessoa insana, se continuar tentando, ou racionalmente percebe que isso é impossível.

Isso demonstrou que a matemática é intrinsecamente incompleta, e abriu um novo campo de pesquisa em lógica e filosofia.

Gödel fez outras contribuições importantes à lógica matemática, incluindo o desenvolvimento da lógica modal e a definição da noção de recursão na computabilidade.⁹ Sua pesquisa teve um impacto profundo na maneira como os matemáticos e filósofos abordam a lógica e a fundamentação da matemática. Seu trabalho é considerado uma das realizações mais significativas na história da matemática e da filosofia do século 20.

Em 1949, Kurt Gödel, certamente influenciado por suas longas conversas com Einstein, encontrou uma solução para as equações de campo da relatividade geral que descreviam um espaço-tempo com algumas propriedades incomuns. Esse “universo de Gödel” permite curvas temporais fechadas, mostrando que a viagem no tempo é matematicamente imaginável. Ocupar-se de Deus, de uma barreira intransponível para o conhecimento matemático, e de viagens no tempo, é para poucos. Sua esposa Adele foi hospitalizada no final de 1977 e, em sua ausência, Gödel se recusou a comer. Mentalmente instável, ele sofria de delírios persecutórios e de medo paranoico de que alguém o envenenasse. Pesava 29 quilos quando morreu de “desnutrição e inanição causada por distúrbio de personalidade” no Hospital de Princeton, em 14 de janeiro de 1978. Gödel foi enterrado no Cemitério de Princeton.

Esse mesmo Gödel foi, então, quem produziu a mais sofisticada versão da prova ontológica da existência de Deus, em notas datadas de 1941. Contudo, só no início dos anos 1970, quando temia que pudesse morrer, foi que ele autorizou que sua prova se tornasse pública pela primeira vez.

O argumento ontológico-matemático de Gödel para a existência de Deus

Muita gente considera que sua contribuição é até hoje a melhor versão do argumento ontológico para a existência de Deus,¹⁰ melhorando profundamente a tentativa de Anselmo de Cantuária. Sua versão, conhecida como a “Prova Ontológica de Gödel”, foi publicada em uma série de palestras na década de 1970, depois que ele deixou com seu aluno Dana Scott, agora um eminente lógico, as duas páginas de anotações nas quais esboçava sua nova versão da prova ontológica da existência de Deus de Anselmo.   

A prova de Gödel é um argumento complexo, enraizado na lógica modal e numa visão sofisticada da noção de demonstração, e pode ser desafiadora para se compreender sem um roteiro intelectual. Mas pretendo mostrar aqui que, se detalhado em passos simples, a prova de Gödel pode ser perfeitamente compreendida sem que se tenha uma formação profunda em lógica formal.

O teorema é relativamente curto e busca, assim como na proposta de Anselmo de Cantuária, provar a existência de Deus baseado unicamente no conceito de Deus como o ser mais perfeito imaginável. Mas o cerne do argumento de Gödel envolve o uso da lógica modal, que lida com conceitos formais de necessidade e possibilidade que levam inevitavelmente à existência de Deus como uma verdade necessária. Em termos intuitivos, um esboço simplificado do argumento ontológico de Gödel envolve os seguintes passos:

  1. A definição de Deus: Gödel começa definindo Deus como um ser que possui todas as propriedades positivas no mais alto grau de perfeição. Essas propriedades incluem qualidades como onipotência, onisciência e perfeição moral.
  2. Lógica Modal: Gödel introduz o aparato formal da lógica modal no argumento. Ele usa operadores modais como “Necessariamente” (□) e “Possivelmente” (◇), de forma que □ P significa “É necessário que P” e ◇ P significa “É possível que P”. Para quem tem alguma familiaridade com argumentos modais, é interessante notar que a prova de Gödel pode ser inteiramente formalizada na versão quantificada do cálculo modal KT.¹¹
  3. Existência de propriedades positivas: Gödel argumenta que, se uma propriedade positiva for consistente (não contraditória), então é possível que essa propriedade exista para alguma coisa ou objeto. Em outras palavras, se uma propriedade positiva for logicamente coerente, é possível que exista um ser com essa propriedade.
  4. O argumento ontológico modalizado: Gödel formula um conjunto de axiomas e teoremas dentro de um sistema lógico modal de primeira ordem (quantificado) para representar o conceito de Deus. Esses axiomas capturam a ideia de que a existência é uma propriedade positiva. Ele então deduz um teorema que afirma essencialmente o seguinte: se a existência de Deus é possível (ou seja, não há contradição lógica no conceito de Deus), então a existência de Deus é necessária.
  5. Prova por contradição: Mas isso ainda não conclui o argumento, porque parte da condição da existência de Deus ser apenas possível. Gödel usa, então, uma prova por contradição para demonstrar que a inexistência de Deus leva a uma contradição. Se a inexistência de Deus fosse possível, significaria que a existência de Deus não é necessária, o que contradiz o teorema anterior.
  6. Conclusão: Visto que a inexistência de Deus leva a uma contradição, Gödel conclui que a existência de Deus é necessária e, portanto, real.
 

A prova de Gödel tem sido objeto de extenso debate e detalhada análise entre lógicos, matemáticos, filósofos e teólogos. Alguns críticos alegam que o argumento de Gödel se baseia em suposições controversas sobre a natureza da existência. Outros argumentam que, ainda que o argumento seja logicamente válido, ele provaria a existência de um ser que não é necessariamente o Deus teísta como tradicionalmente compreendido. 

Os detalhes da matemática envolvidos na prova ontológica de Gödel podem parecer complicados, mas em essência seus teoremas e axiomas — suposições que não podem ser provadas, mas que são aceitas como verdades básicas — podem ser expressos em linguagem comum. Junto com os axiomas, os pontos mais complicados são as definições, no que pode ser considerado um dos maiores teoremas da matemática, que pretende demonstrar a existência de Deus, com um teorema ao final de uma cadeia de raciocínios. A aventura intelectual de Gödel pressupõe três definições sobre as propriedades de Deus e cinco axiomas sobre quem é Deus, detalhados a seguir, adaptando os esquemas de Koons e de Benzmüller e Paleo.¹² A explanação dos símbolos usados na prova virá em seguida.

Axioma 1. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo><mo>&#x2227;</mo><mo>&#x25FB;</mo><mo>&#x2200;</mo><mi>x</mi><mfenced><mrow><mi>&#x3C6;</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mi>&#x3C8;</mi><mrow><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mrow></mrow></mfenced><mo>&#x27F9;</mo><mi>P</mi><mfenced><mi>&#x3C8;</mi></mfenced></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Axioma 2. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mo>&#xAC;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo><mo>&#x27FA;</mo><mo>&#xAC;</mo><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Teorema 1. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#x2662;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>&#x3C6;</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Definição Dv. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo><mo>&#x27FA;</mo><mo>&#xA0;</mo><mo>&#x2200;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mfenced><mrow><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mrow><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mrow></mrow></mfenced></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Axioma 3. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Teorema 2. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2662;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Axioma 4. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#x25FB;</mo><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Definição Ess. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>&#x3C6;</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>e</mi><mi>s</mi><mi>s</mi><mi>&#xEA;</mi><mi>n</mi><mi>c</mi><mi>i</mi><mi>a</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>d</mi><mi>e</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>x</mi><mo>&#x27FA;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mfenced><mi>x</mi></mfenced><mo>&#x2227;</mo><mo>&#x2200;</mo><mi>&#x3C8;</mi><mfenced><mrow><mi>&#x3C8;</mi><mfenced><mi>x</mi></mfenced><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#x25FB;</mo><mo>&#x2200;</mo><mi>y</mi><mfenced><mrow><mi>&#x3C6;</mi><mfenced><mi>y</mi></mfenced><mo>&#x27F9;</mo><mi>&#x3C8;</mi><mfenced><mi>y</mi></mfenced></mrow></mfenced></mrow></mfenced></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Definição NE{"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>N</mi><mi>E</mi><mfenced><mi>x</mi></mfenced><mo>&#x27FA;</mo><mo>&#x2200;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mfenced><mrow><mi>&#x3C6;</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>e</mi><mi>s</mi><mi>s</mi><mi>&#xEA;</mi><mi>n</mi><mi>c</mi><mi>i</mi><mi>a</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>d</mi><mi>e</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>x</mi><mo>&#xA0;</mo><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#x25FB;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>y</mi><mi>&#x3C6;</mi><mfenced><mi>y</mi></mfenced></mrow></mfenced></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Teorema 3. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2200;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#xA0;</mo><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>e</mi><mi>s</mi><mi>s</mi><mi>&#xEA;</mi><mi>n</mi><mi>c</mi><mi>i</mi><mi>a</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>d</mi><mi>e</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>x</mi></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Axioma 5. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>N</mi><mi>E</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Teorema 4. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x25FB;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Teorema 5:  {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false} Dado que esta conclusão é um teorema da lógica modal, portanto universalmente válido, Deus existe em todos os mundos possíveis (isto é, em todas as situações imagináveis) e é único, como será mostrado adiante.

Vou construir uma tradução direta em linguagem natural de cada definição e axioma, esclarecendo que letras gregas (como φ, “phi”, e ψ,“psi”) denotam propriedades. P denota uma propriedade especial que se aplica a outras propriedades e x denota objetos. A argumentação se refere a “mundos possíveis”, que seriam estados de coisas, configurações de acontecimentos ou objetos. Por exemplo, eu posso estar usando uma camisa amarela ou vermelha. Cada escolha dá um mundo possível. A loteria semanal, em outro exemplo, pode dar um número par ou ímpar, e isso define mundos possíveis distintos. 

Axioma 1. “Se φ é uma propriedade positiva e for necessário que, para todo x, se x tem a propriedade φ, então x tem a propriedade ψ, então ψ é também uma propriedade positiva.”

Em outras palavras, se ψ é consequência universal (vale sempre) de uma propriedade positiva φ, então ψ “herda” a positividade.

Axioma 2. “Não-φ é uma propriedade positiva se, e somente se, φ não é uma propriedade positiva.”

Em outras palavras, φ e não não podem ser ambas propriedades positivas: ou uma é, ou a outra é, mas não ambas.

Gödel já pode então provar seu Teorema 1 (teorema intermediário, ou lema) com base no Axioma 1 e Axioma 2, que mostra que cada propriedade positiva é “possivelmente exemplificada”, ou seja, aplica-se pelo menos a algum objeto em algum mundo. Em outras palavras, não pode haver propriedade positiva que não se aplica a nada — se P é positiva, deve existir algum objeto a que P se aplica:

Teorema 1. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mi>P</mi><mo>(</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#x2662;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>&#x3C6;</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Neste ponto, Gödel introduz um conceito de Deus, por meio da definição Dv, segundo a qual um objeto é divino se, e somente se, tiver todas as propriedades positivas. O Axioma 3 estabelece que a propriedade de ser Divino é ela própria positiva.

Axioma 3. “A propriedade de ser Divino é uma propriedade positiva.”

Este axioma é bem aceitável: ser Divino não poderia deixar de ser uma propriedade positiva.

Gödel mostra então, no Teorema 2, a partir do Teorema 1 e do Axioma 3, e usando a Definição Dv, que é possível existir um objeto com a propriedade divina, semelhante a Deus, mas ainda não é o próprio Deus, porque só existiria em algum mundo possível, mas não obrigatoriamente no nosso mundo, ou em todos os mundos possíveis.

Teorema 2. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2662;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}, em palavras: é possível existir um ser divino.

O Axioma 4 afirma: “Se a propriedade φ é uma propriedade positiva, então é necessário que a φ seja uma propriedade positiva.”

Em outras palavras, uma propriedade φ ser positiva não acontece por acaso, não é contingente, mas, quando acontece, não há outra maneira. Pense em um número qualquer: se ele for par, ele não é às vezes par e às vezes ímpar, mas sempre par (ou seja, uma vez par, será sempre par, é necessariamente par). A propriedade de “ser positiva” é análoga.

Daqui por diante é que emerge a genialidade de Gödel, que ultrapassa o raciocínio de Anselmo de Cantuária, o qual, embora santo, talvez não fosse um gênio, nem estivesse preocupado com uma demonstração absolutamente matemática: uma plausível interpretação para a posição de Anselmo é a de que seu argumento pressuporia a admissão da existência de Deus pela fé, e que ele estaria mostrando que a forma correta de pensar sobre Deus é pensar n’Ele como existindo realmente, e não apenas conceitualmente. Gödel prossegue para provar que um objeto semelhante a Deus existe em todos os mundos possíveis.

Para este fim, a Definição Ess estabelece a noção de “essência”: se x é um objeto em algum mundo, então uma propriedade φ é considerada uma essência de x se φ(x) for verdadeira naquele mundo e se φ implica necessariamente todas as outras propriedades que x tem naquele mundo.

Em outras palavras, a propriedade φ é uma essência de x se se tem a propriedade φ, e se φ acarreta de forma necessária, não casual, todas as outras propriedades que x tem naquele mundo.

A última definição, a Definição NE, ou “existência necessária”. NE(x) expressa que x necessariamente existe, se, e somente se, todas suas propriedades essenciais são necessariamente exemplificadas, isto é, se são necessariamente não vazias. Essa é uma noção bastante forte de existência, mais forte que a existência como usualmente entendida. Um objeto x pode existir mesmo que alguma de suas propriedades essenciais não tenha sido exemplificada.

Gödel consegue então mostrar o Teorema 3 a partir do Axioma 1 e do Axioma 4 usando as definições Ess e NE. O Teorema 3 afirma que a propriedade de ser Divino, ou a Divindade, é uma essência de um objeto semelhante a Deus (note que “ser Divino” é ser semelhante a Deus). Em outras palavras, se um objeto é Divino, a divindade é sua essência:

Teorema 3. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2200;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>e</mi><mi>x</mi><mi>i</mi><mi>s</mi><mi>t</mi><mi>&#xEA;</mi><mi>n</mi><mi>c</mi><mi>i</mi><mi>a</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>d</mi><mi>e</mi><mo>&#xA0;</mo><mi>x</mi></mstyle></math> <p>","truncated":false}

Nesse ponto, Gödel assume, no Axioma 5, que a existência necessária, NE, é uma propriedade positiva, da qual se segue que a semelhança com Deus é necessariamente instanciada:  

Teorema 4. {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x25FB;</mo><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}

O Teorema 4 demonstra que necessariamente existe um ser com a propriedade do Divino a partir do Axioma 5, Teorema 2, Teorema 3 e Axioma 4, usando as definições de Dv e NE

Por fim, se assumirmos o axioma T da lógica modal {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x25FB;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo><mo>&#x27F9;</mo><mo>&#xA0;</mo><mi>&#x3C6;</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}(que afirma que, se algo é necessário, então é o caso), conclui-se o Teorema 5: 

Teorema 5: {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2203;</mo><mi>x</mi><mi>D</mi><mi>v</mi><mo>(</mo><mi>x</mi><mo>)</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}, que mostra que a semelhança com Deus existe em um objeto real — existe alguma coisa semelhante a Deus, isto é, Divina, e em todos os mundos possíveis, a partir do Teorema 3 e do Teorema 4.

Mas seria o mesmo Deus presente em cada mundo possível? Se ser idêntico a Deus conta como uma propriedade Divina, podemos provar que existe exatamente algo semelhante a Deus. De fato, se um ser ou objeto x é idêntico a Deus, isso deve ser uma propriedade positiva (já que, caso contrário, sendo diferente de Deus é que constituiria uma propriedade positiva, pelo Axioma 2, e o objeto x, sendo idêntico a Deus, teria que ser diferente, absurdo!). Mas isso significa que todo objeto semelhante a Deus deve ser idêntico ao objeto x, então, só pode existir um objeto ou ser semelhante a Deus. Assim, concluímos o Teorema 5, que estabelece que Deus (ou seja, o único ser divino) existe e é único.

No entanto, havia mais de uma falha na prova de Gödel, como explicado detalhadamente por Koons:¹³ não que a demonstração estivesse errada, mas Jordan H. Sobel levantou uma objeção ao argumento de Gödel, mostrando que ele engendra o “colapso de modalidades”, levando a uma conclusão indesejada de que toda verdade real é necessária — que não há absolutamente nada que seja contingente, o que é uma conclusão anti-intuitiva desastrosa. Sobel propôs uma emenda com o fim de preservar o argumento: restringir o domínio de propriedades que Gödel usa de modo a salvaguardar o teorema e evitar o colapso modal. A partir de 1990, vários autores, como C. A. Anderson, P. Hájek e F. Bjørdal, propuseram emendas aos axiomas e definições de Gödel.¹⁴ Discussões a respeito continuam — ver, por exemplo, Frank Thomas Sautter¹⁵ e Melvin Fitting,¹⁶ este último um livro inteiro tratando aspectos lógicos avançados e que dedica 50 páginas à formalização do argumento ontológico. Contudo, para nossos propósitos, é suficiente esclarecer que havia uma consequência indesejada na prova, mas que isso pode ser sanado.

Todavia, esse não foi o único ponto crítico. Após ser analisada com um alto grau de detalhamento formal com a ajuda de computadores por meio de provadores de teoremas de ordem superior, foi descoberta uma inconsistência na prova ontológica de Gödel. Apesar da popularidade do argumento desde o aparecimento do manuscrito de Gödel, no início da década de 1970, a inconsistência dos axiomas utilizados no argumento permaneceu despercebida até 2013, quando o Leo-II, após exaustiva busca, encontrou uma inconsistência na maquinaria de Gödel.¹⁷ Para deleite dos lógicos e dos fãs da Inteligência Artificial, a sentença encontrada pelo algoritmo é {"mathml":"</p> <math style=\"font-family:stix;font-size:18px;\" xmlns=\"http://www.w3.org/1998/Math/MathML\"><mstyle mathsize=\"18px\"><mo>&#x2662;</mo><mo>&#x25FB;</mo><mo>&#x22A5;</mo></mstyle></math> <p>","truncated":false}, significando “é possível que seja necessária uma contradição”. Como um modelo para essa sentença (que é uma consequência dos axiomas de Gödel) não pode ser construído, os axiomas de Gödel são inconsistentes.

Contudo, esse não foi um golpe fatal na prova de Gödel: várias soluções têm sido propostas e o argumento abstrato continua em pé. Como mencionado anteriormente, Gödel havia discutido sua prova com o experiente lógico Dana Scott, seu ex-estudante, que circulou uma versão ligeiramente diferente da de Gödel entre um público maior. A versão de Scott dos axiomas e definições, formalizada no assistente de provas Isabelle mostra-se consistente, mesmo que a de Gödel a rigor não o seja.¹⁸ Isabelle, como um assistente de provas, é um algoritmo complexo que transforma fórmulas matemáticas numa linguagem formal, e oferece ferramentas para provar essas fórmulas em um cálculo lógico. Sua principal aplicação é a formalização de provas matemáticas e, em particular, a verificação formal, que é a comprovação da exatidão de uma demonstração.

Uma variante simplificada do argumento ontológico de Gödel foi mostrada por Benzmüller usando a lógica modal KT.¹⁹ Essa variante, obtida em interação com um sistema de assistente de provas, não sofre o colapso modal e evita os predicados bastante complexos de essência (Ess) e existência necessária (NE) usados por Gödel. 

O significado disso é que, por mais que pareçam complicadas, refazer as demonstrações por trás do argumento de Gödel é uma tarefa computável, uma vez que algoritmos podem verificar as provas e propor contraexemplos. Mas jamais conseguiriam propor as definições e reunir os pressupostos (axiomas) que Gödel alinhavou — essa é uma tarefa humana, talvez permanentemente humana.

Existe sempre a dúvida de que o próprio Teorema da Incompletude de Gödel referido anteriormente colocaria um ponto fraco em sua prova ontológica da existência de Deus, mas esse não é o caso. Embora os resultados de incompletude e impossibilidade da demonstração da consistência em sistemas matemáticos com capacidade aritmética tenham produzido um enorme impacto na filosofia da matemática e da lógica, os resultados de incompletude dizem respeito à aritmética elementar e são, portanto, independentes da lógica modal implícita na prova ontológica. Não é preciso aritmética para fazer lógica modal e nem quantificação sobre mundos possíveis para se fazer aritmética.

Deus em outras lógicas: a perspectiva paraconsistente

O sofisticado argumento de Gödel pode realmente ser tomado como a prova definitiva da existência de Deus? A prova poderia ter algum problema, para além dos problemas lógicos apontados anteriormente, que já estão devidamente sanados?

A prova de Gödel é impecável, até mesmo quando verificada por computador, mas ela recai em um pequeno detalhe: os axiomas que ele usa são passíveis de críticas e não são universalmente aceitos. O problema é que Gödel não apresenta razões pelas quais os axiomas deveriam ser verdadeiros. Se não forem verdadeiros, então o restante da prova também não será válido. Além dos axiomas, as definições que Gödel propõe pretendem esclarecer racionalmente quem ou o que é Deus, para então concluir sua existência. Mas pode-se argumentar que isso envolve uma alta dose de presunção, posto que parece limitar ou restringir o poder de Deus: por qual razão devemos assumir que Deus teria de se limitar a existir? Deus, pela sua própria definição, pode ter a divina onipotência de nem precisar existir. Ou de existir e não existir.

René Descartes, já no século 17, não descartava esta possiblidade, apenas modestamente a julgava impossível para sua própria concepção:

Não creio que possamos dizer que algo não pode ser realizado por Deus. Pois, uma vez que tudo relacionado à verdade e bondade depende de Sua onipotência, eu não ousaria dizer que Deus não pode criar uma montanha sem um vale, ou que um e dois não podem ser três. Apenas afirmo que Ele me deu uma mente tal que não consigo conceber uma montanha sem um vale, ou um agregado de um e dois que não seja três, e que tais coisas envolvem uma contradição na minha concepção.²⁰

Tem havido tentativas de formular argumentos formais para a existência de Deus usando lógicas não clássicas, mas isso pode não ter sentido. Lógicas não clássicas são sistemas alternativos de lógica formal que diferem da lógica clássica em suas regras de inferência, valores de verdade ou suposições subjacentes. Essas lógicas podem permitir diferentes tipos de raciocínio e conclusões, e alguns filósofos exploraram se podem fornecer novas perspectivas sobre a existência de Deus. Embora as lógicas não clássicas levem a formas alternativas de raciocínio e abordem questões filosóficas, elas não produzem necessariamente provas alternativas definitivas da existência de Deus.

Existir por intermédio de outros argumentos não muda a questão fundamental: existência é uma mera propriedade dos seres finitos, das coisas e dos objetos mundanos. Por que Deus deveria ter sua existência codificada pela lógica clássica ou por qualquer outra?  Deus poderia estar em estados superpostos, como até nós, mortais, sabemos da mecânica quântica. E se até nós, mortais, estamos conscientes da possibilidade da lógica paraconsistente²¹ que permitiu uma divina contradição como Deus simultaneamente existir e não existir, sem destruir a razão, por que Deus não estaria também a par? O gênio de Descartes, se vivesse em nossos tempos, certamente compreenderia isso.

Existir por intermédio de outros argumentos não muda a questão fundamental: existência é uma mera propriedade dos seres finitos, das coisas e dos objetos mundanos. Por que Deus deveria ter sua existência codificada pela lógica clássica ou por qualquer outra?

As lógicas paraconsistentes permitem contradições sem levar ao trivialismo (a ideia de que tudo é verdade). Alguns aplicaram lógicas paraconsistentes no contexto da teologia para abordar o problema do mal ou para explorar a compatibilidade dos atributos de Deus com a existência do mal e do sofrimento. A lógica paraconsistente é uma teoria de raciocínio, no mesmo nível da lógica clássica, lógica relevante e lógica modal. Como a lógica clássica, esses sistemas têm suas próprias suposições, limitações e complexidades. Os filósofos que trabalham com lógicas não clássicas muitas vezes procuram explorar novas perspectivas e enfrentar desafios filosóficos de longa data de forma criativa, mas os debates em torno da existência de Deus permanecem contínuos e multifacetados.

Por último, mesmo que se aceite a demonstração de Gödel, o argumento pode ser usado para estabelecer a existência única de qualquer deus, que talvez não seja o seu: sem se limitar ao Deus da tradição bíblica ou Alá, o argumento também pode ser usado para Vishnu e Shiva, Anúbis, Odin, Oxalá, Tupã ou qualquer outro ser divinal que a humanidade já tenha imaginado.

 

 

Agradecimentos

Agradeço aos colegas Fábio Bertato e Pedro Carrasqueira por críticas e sugestões úteis a este texto. Este trabalho é apoiado pelo Projeto Temático FAPESP 2020/16353-3 e pela bolsa PQ-1 303780/2022-3 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Brasil).

Referências

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Dennett, Daniel C.. Quebrando o Encanto: a Religião Como Fenômeno Natural. São Paulo: Editora Globo, 2012.

Benzmüller, Christoph; Paleo, Bruno Woltzenlogel. The inconsistency in Gödel’s ontological argument: A success story for AI in metaphysics. In: Kambhampati, S. (ed.). Proceedings of the Twenty-Fifth International Joint Conference on Artificial Intelligence (IJCAI-16), pp. 936–942, 2016.

Benzmüller, Christoph. A Simplified Variant of Gödel’s Ontological Argument. In: Vestrucci, A. (ed.) Beyond Babel: Religion and Linguistic Pluralism. (Sophia Studies in Cross-cultural Philosophy of Traditions and Cultures, vol 43). Estados Unidos: Springer, 2023.

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Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Turner, 2004.

2. Byrne, 1979.

2. Byrne, 1979.

3. Walls e Dougherty, 2018.

4. Swinburne, 2004; Swinburne, 2005.

5. Anselm, 1998.

6. Sobel, 2009; Oppy, 2018.

7. Dennett, 2012.

8. Oppy, 2023; Oppy, 2018.

9. Ver, por exemplo: Carnielli e Epstein, 2012.

10. Ver: Gödel, 1995.

11. Para uma exposição a respeito das lógicas modais, incluindo KT, ver, por exemplo: Carnielli e Pizzi, 2009.

12. Koons, 2006; Benzmüller e Paleo, 2016.

13. Koons, 2006.

14. Ver: Christoph Benzmüller, Jamie L. Weber e Bruno Woltzenlogel Paleo, “Computer-Assisted Analysis of the Anderson–Hájek Ontological Controversy”, Logica Universalis, v. 11, n. 1, pp. 139–151, 2017.

15. Frank Thomas Sautter, O Argumento Ontológico Gödeliano para a Existência de Deus, Tese de Doutorado, IFCH-Unicamp, 2000.

16. Melvin Fitting, Types, Tableaus, and Gödel’s God, Springer, 2012.

17. Ver Benzmüller e Paleo, 2016; ou para uma explicação informal: Carnielli, 2019.

18. Benzmüller e Paleo, 2016.

19. Benzmüller, 2023.

20. René Descartes, carta a Antoine Arnauld, de 29 de julho de 1648 (minha tradução da versão em inglês a partir do latim).

21. Carnielli e Coniglio, 2008.

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