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ARTIGO

O retrato de uma senhora

Sabedoria, igreja e o cultivo de virtudes

Pamella Carneiro|

20/07/2023

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Pamella Carneiro

Química (UFPA) e mestranda em Físico-Química (UNICAMP). Pesquisa na área de Química Teórica e Dinâmica Molecular com estudos de Estrutura-Atividade, Dinâmica, Modelagem Molecular e Quimiometria.

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Como citar

CARNEIRO, Pamella. O retrato de uma senhora: sabedoria, igreja e o cultivo de virtudes. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A sabedoria não é apenas um objeto de estudo e desejo na história da construção do conhecimento humano: ela é também uma mulher complexa. No livro de Provérbios, a sabedoria bíblica é personificada em uma figura feminina, a senhora sabedoria (Lady Wisdom) (Pv 1.20-33, 8.1-36, 9.1-6 e 10-12). Outras civilizações também já representaram a sabedoria em figura de uma mulher, como Atenas para os gregos e Minerva para os romanos. As deusas da antiguidade clássica concediam a sabedoria secular para uma elite intelectual, filósofos e reis capazes de contemplar a verdade.¹ A senhora sabedoria, no entanto, não é uma entidade divina em si, mas uma serva de Deus, sua artesã na criação do mundo (Pv 8.22-32). Por meio dela, Deus estabeleceu a ordem criada.

A sabedoria bíblica, a capacidade de transformar conhecimento em vida prática ou de viver bem é colhida em um relacionamento: “O temor do Senhor” (Pv 9.10). A boa vida, como entendeu Agostinho, é conhecer ao Deus triúno.² Sendo assim, caminhar com Lady Wisdom é estar intimamente conectado a Deus. Ela oferece uma vida próspera a qualquer um que a perscrute. Não está limitada aos homens importantes, mas faz seu convite nos espaços públicos, nas ruas, nos mercados, nos portões e nos lugares mais altos da cidade (Pv 1.20-22). 

A partir dessas breves perícopes sobre Lady Wisdom, podemos observar três características da sabedoria bíblica: ela é buscada, acessível e pública. Embora a senhora sabedoria seja apenas uma figura de linguagem, podemos pensar brevemente em como as características da sabedoria bíblica se cruzaram com a história das mulheres cristãs, as quais tiveram grande importância no cultivo de virtudes espirituais ao longo da história da igreja e cujos papéis foram fonte de sabedoria pedagógica, orientação e prática espirituais formativas. 

A sabedoria bíblica, a capacidade de transformar conhecimento em vida prática ou de viver bem é colhida em um relacionamento: “O temor do Senhor” (Pv 9.10). A boa vida, como entendeu Agostinho, é conhecer ao Deus triúno.

A sabedoria é buscada: o cultivo de virtudes espirituais 

Desde a igreja primitiva, a dualidade espírito versus matéria esteve presente na busca por uma vida espiritual virtuosa. A influência dos filósofos gregos, dos quais destaca-se Platão, entendia a realidade em que o mundo material era inferior e caótico. A razão eterna, no mundo das ideias, era o verdadeiro conhecimento que dava forma a todas as demais coisas. Esse embate entre a vida espiritual e a vida material foi incorporado por diversos filósofos, pais da igreja e teólogos, assumindo nomes e ênfases diferentes ao longo da história, mas partindo de uma perspectiva em comum: a realidade estaria separada em pavimentos.³ O espírito versus matéria de Platão virou Graça versus natureza em Tomás de Aquino, que foi fonte para diversos pensadores depois dele. O ascetismo prevalecente na Idade Média pode nos dar uma perspectiva mais clara sobre isso: uma vida dedicada a Deus era uma vida de privações físicas, de meditação contemplativa, orações e abandono de anseios terrenos.⁴ 

No Iluminismo, cuja ênfase estava na ciência e na razão, houve a contraposição do Romantismo, o qual enfatizava o idealismo, a religião e as ciências humanas. Seguiu-se a Mente versus Matéria em Descartes, Valor versus Fato em Kant, e, mais recentemente, o misticismo pós-moderno versus naturalismo científico explicados por Francis Schaeffer.⁵ Em resumo, a forma de conhecer estaria dicotomizada e foi cada vez mais secularizada. O pavimento de cima seria, portanto, relacionado às coisas mais elevadas, ao passo que o pavimento de baixo estaria relacionado à materialidade e à factualidade do mundo. 

Segundo Peter Berger, “a modernização provoca uma dicotomização insólita da vida social. A dicotomia está entre as maiores e mais poderosas instituições da esfera pública e da esfera particular”.⁶ Assim, a dicotomia da realidade também dividiu a vida em privada versus pública, em que assuntos concernentes ao pavimento de cima, como religião, espiritualidade, valores e emoções, não devem influenciar a vida pública, que é concernente ao pavimento de baixo, a vida material direcionada pela razão, pelos fatos e pela ciência. Ao interromper o entendimento da realidade como uma integralidade, essas contraposições, como aponta Nancy Pearcey em seu livro Verdade absoluta, levaram a um passo a mais: a autora afirma que a divisão da realidade em pavimentos dividiu também o mundo em mulheres versus homens: 

PAVIMENTO DE CIMA

Espírito – Graça – Religião – Emoção – Vontade – Valores – Virtudes – Misticismo pós-moderno – Privado – Mulheres

________________________________________________

Matéria – Natureza – Ciência – Razão – Determinismo – Fatos  – Naturalismo científico – Público – Homens  

PAVIMENTO DE BAIXO

A dicotomia da realidade não influenciou apenas em mudanças de conceitos, mas nas estruturas materiais da sociedade. Dessa forma, a divisão do conhecimento dividiu também o cultivo das virtudes e os atores que se dedicam a essa tarefa. As mulheres foram lançadas para o pavimento de cima com a vida privada e a religião. Dessa forma, o cultivo de uma vida espiritual virtuosa pertencia às guardiãs morais da fé: as mulheres cristãs. O darwinismo social somou à equação o que faltava: o homem másculo é o homem que não expressa emoções, dado à vida pública e cuja brutalidade garante seu sucesso de sobrevivência diante da concorrência. A virtuosidade começou a ser “feminilizada”, com a crença de que as mulheres eram mais “naturalmente religiosas” que os homens.⁸ Ocupadas da espiritualidade do âmbito privado, o vocabulário de mulher sábia e virtuosa é familiar a elas e um objetivo a ser buscado em sua caminhada com Deus. Essa relação de caminhar intimamente com o Criador e a manifestação de sabedoria e de virtudes sempre esteve presente na forma como as mulheres entendiam sua espiritualidade e manifestaram sua religiosidade publicamente, também em virtude do lugar ocupado por elas socialmente. 

Essa relação de caminhar intimamente com o Criador e a manifestação de sabedoria e de virtudes sempre esteve presente na forma como as mulheres entendiam sua espiritualidade e manifestaram sua religiosidade publicamente, também em virtude do lugar ocupado por elas socialmente.

A sabedoria é acessível: a teologia leiga 

“E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e o não lança em rosto, e ser-lhe-á dada” (Tg 1.5).

Pensando nessa perspectiva, podemos dizer que a maternidade de mulheres tementes a Deus é sua primeira incubadora de virtudes? Talvez. Com nossas mães aprendemos sobre submissão, hospitalidade, temperança, santidade, abnegação, paciência e até mesmo coragem. Que tal pensarmos em Lóide e Eunice para Timóteo: “Recordo-me da sua fé não fingida, que primeiro habitou em sua avó Lóide e em sua mãe Eunice, e estou convencido de que também habita em você.” (2 Tm 1.5). Ou Mônica, que, no texto Sobre a vida feliz, Agostinho reconhece que encontrou a vida boa em Deus por meio do testemunho de sua mãe.⁹ Mônica se dedicou a derramar lágrimas diariamente em prol da salvação de seu filho e seu ouvido atento às Escrituras a preparou para incutir a Palavra de Deus na vida de Agostinho.¹⁰ Ele diz que seu subconsciente desejava a Palavra por beber do nome de Cristo com o leite de sua mãe: “Eu acreditava que Tu estavas em silêncio, e que era apenas ela quem falava, quando Tu falavas comigo por meio dela”.¹¹ E se pensarmos em nossas avós como figuras históricas? Quantas líderes do círculo de oração e reuniões de mulheres foram responsáveis pela manifestação da fé na vida dos crentes no contexto da igreja brasileira?

Com acesso à educação formal limitado, e muitas vezes sem acesso à mesa da teologia acadêmica e da ordenação ministerial, muitas mulheres cristãs desenvolveram teologia a partir de suas experiências. Em outras palavras, suas práticas espirituais moldavam suas reflexões teológicas.¹² Embora seus nomes não tenham sido creditados em grandes compêndios teológicos, sua presença fiel e seu serviço às mesas de teologia, orientando doutores, orando, ouvindo e ensinando a Palavra, foram fonte pedagógica de sabedoria que levava a diversas práticas de boas obras. Como reconhece São Jerônimo, doutor da Igreja, sobre Fabíola de Roma, que abriu mão de sua riqueza em prol dos mais pobres: “Nem toda Roma era suficientemente grande para sua piedade”,¹³ ou Catarina de Siena, que exortou o papa e líderes da igreja, levando uma vida mística reclusa quando ouviu o chamado de Deus para cuidar dos doentes durante a peste. Mulheres que viveram uma vida religiosa leiga de serviço e cuidado aos vulneráveis, resgate de crianças abandonadas e excluídos.¹⁴

Embora seus nomes não tenham sido creditados em grandes compêndios teológicos, sua presença fiel e seu serviço às mesas de teologia, orientando doutores, orando, ouvindo e ensinando a Palavra, foram fonte pedagógica de sabedoria que levava a diversas práticas de boas obras.

Ordem de diaconisas, viúvas e místicas,¹⁵ organização das mulheres pela temperança e grupos de ação social e apoio à missão evangélica surgiram. Solteiras ou casadas, são a maioria nos bancos das igrejas ocidentais e no campo missionário, liderando as reuniões de oração, jejum e devocionais.¹⁶

A sabedoria é pública: a tangente dos currículos teológicos

Cuias, cestos, provisão de alimentos, horticultura e agricultura. Hospitais, escolas, abrigos e orfanatos: mais que ministérios cristãos, o florescimento humano foi possibilitado pelas funções e tecnologias desenvolvidas por mulheres na sociedade.¹⁷ A divisão da realidade em pavimentos leva-nos à falsa impressão de que as mulheres não estiveram ou não estão envolvidas nas discussões teológicas, não desenvolvendo interesses acadêmicos. 

Cuias, cestos, provisão de alimentos, horticultura e agricultura. Hospitais, escolas, abrigos e orfanatos: mais que ministérios cristãos, o florescimento humano foi possibilitado pelas funções e tecnologias desenvolvidas por mulheres na sociedade

Podemos, na verdade, pensar que assuntos aos quais as mulheres se ocuparam por muito tempo, relacionados ao pavimento de cima, são considerados secundários nas grades teológicas formais, tais como vida cristã,¹⁸ meio ambiente,¹⁹ família,²⁰ hospitalidade,²¹ disciplinas espirituais,²² domesticidade,²³ devoção,²⁴ identidade,²⁵ sabedoria,²⁶ provações²⁷ e assuntos relacionados à espiritualidade no geral.  

Minha proposta não parte de nada essencialmente inovador ou revolucionário, mas do reconhecimento de que o esforço de seminários teológicos e igrejas que almejam produzir teólogos virtuosos e que fujam do modelo cérebros no palito²⁸ deve incluir intencionalmente as obras e os ministérios femininos, cujas reflexões historicamente estiveram enraizadas na busca de uma prática de vida cristã virtuosa. Cristo, que reconcilia em si todas as coisas, o reconciliador de Deus e os homens, é também o reconciliador das mulheres e dos homens. Embora a busca por virtudes espirituais não seja exclusividade do ministério feminino, a igreja cristã tem, de fato, o retrato de uma senhora em sua história; uma senhora servida pelas mãos de muitas outras senhoras com dedicação abnegada, quietude corajosa²⁹ e presença fiel. Em nosso esforço por entender um mundo uno, sabemos que a sabedoria não é tarefa de um grupo específico, mas é um convite, uma oferta a todos que se achegam a Deus. A senhora sabedoria não clama? Será que alguém a escutará?

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. André Daniel Reinke, Os Outros da Bíblia, 2019.

2. Santo Agostinho, Sobre a Vida Feliz, 2014.

3. Francis Schaeffer, A Morte da Razão, 2014.

4. Justo González, Uma breve história das doutrinas cristãs, 2015.

5. Guilherme de Carvalho, “Francis Schaeffer para o Século 21”, Ultimato, 2012. Clique aqui para acessar.

6. Peter Berger, A Construção Social da Realidade, 1966.

7. Nancy Pearcey, Verdade Absoluta, 2016.

8. Este argumento começou a surgir em avivamentos espirituais, como os metodistas, em que as mulheres respondiam muito positivamente às mensagens e lotavam reuniões em que elas tinham liberdade para orar e ensinar a palavra publicamente. Desta forma, enquanto seus maridos se ocupavam da vida pública, elas eram encorajadas a ter uma vida virtuosa e convertê-los a Cristo. Ver: Nancy Pearcey, Verdade Absoluta, 2016; Rute Salviano Almeida, Vozes femininas nos avivamentos, 2020.

9. Han-Luen Kantzer Komline, “As mães da igreja ensinam a nos deleitarmos nas Escrituras”, Christianity Today, 2020. Clique aqui para acessar.

10. Santo Agostinho, Confissões, 2017.

11. Ibidem.

12. Margarida Porete, Espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor, 2008.

13. Rute Salviano Almeida, Vozes femininas no início do cristianismo: império romano, igreja cristã, perseguição e papel feminino, 2021.

14. Lorry Lutz, “Unheralded and Unknown: Although Virtually Ignored, Women Played a Vital Role in Church History”, CBE International, 2003. Clique aqui para acessar.

15. Rute Salviano Almeida, 2021.

16. Rute Salviano Almeida, Vozes femininas nos avivamentos, 2020.

17. Gerda Lener, A Criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens, 2019.

18. Elisabeth Elliot, Uma vida de Obediência, 2022.

19. Katherine Hayhoe, Saving Us: A Climate Scientist’s Case for Hope and Healing in a Divided World, 2021.

20. Edith Schaeffer, O que é uma família?, 2019.

21. Rosaria Champagne Butterfield, Pensamentos Secretos de uma Convertida Improvável: a jornada de uma professora de língua inglesa rumo à fé cristã, 2017.

22. Vanessa Belmonte, O lugar da espera na vida cristã, 2021.

23. Gloria Furman, Vislumbres da Graça, 2016.

24. Tish Warren, Liturgia do Ordinário: práticas sagradas na vida cotidiana, 2021.

25. Francine Veríssimo Walsh, Ela à imagem dele: a identidade feminina à luz do caráter de Deus, 2022.

26. Martha Peace, Sábia e Conselheira, 2017.

27. Edith Schaeffer, Aflição: Um Olhar Compassivo Sobre A Realidade Da Dor E Do Sofrimento, 2019.

28. James K. Smith, Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito, 2016.

29. Francine Veríssimo Walsh, “Deixe-me ser uma mulher”, Graça em Flor, 2017. Clique aqui para acessar.

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