QUEM SOMOS

ARTIGO

Ou tudo ou nada

As contradições do agnosticismo forte

Fábio Maia Bertato|

18/08/2023

Screenshot 2023-08-18 at 12.39.24

Fábio Maia Bertato

Doutor em Filosofia, Pesquisador e atual Diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), da UNICAMP, e Professor de Filosofia da Academia Atlântico.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Bertato, Fábio M. Ou tudo ou nada: as contradições do agnosticismo forte. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A lógica não é famosa por ser particularmente divertida. Como esperado, costumam se entreter com ela os lógicos, os matemáticos e os filósofos de tendência analítica. Todavia, a lógica pode ser considerada – e o foi por muitos séculos – como a “arte diretiva da razão”.¹ Dessa maneira, como seres racionais, queiramos ou não, somos conduzidos por algum tipo de lógica em nossos raciocínios. A lógica é inevitável! Costumo dizer que mesmo para afirmar que “nem tudo é lógica” é preciso empregá-la, por meio de uma proposição particular negativa (“Algum S não é P”), na forma de uma negação de uma proposição universal afirmativa (“Todo S é P”). Ou seja, usamos a lógica para falar sobre os seus próprios limites.

como seres racionais, queiramos ou não, somos conduzidos por algum tipo de lógica em nossos raciocínios. A lógica é inevitável!

Nas discussões filosóficas e até mesmo no humor (que também pode ser muito importante e instrutivo), a lógica tem um papel fundamental. A punchline de muitas piadas depende de uma contradição, um dos objetos de estudo da lógica. Por exemplo, consideremos um episódio da famosa série mexicana Chaves. Em certo momento, o Professor Girafales afirma em tom magistral: “Somente os idiotas acham que têm certeza do que dizem!”. Pergunta-lhe, então, o amado personagem, Seu Madruga: “Tem certeza?”. Sem pestanejar, responde o professor: “Completamente!”. A ironia está em um tipo de contradição performativa, na qual o professor, que não se considera um idiota, afirma com toda certeza que só os idiotas afirmam algo com certeza. 

Pode assim parecer irônico que um lógico, matemático e filósofo da envergadura de Bertrand Russell tenha dito: “Acho que ninguém deve ter certeza de nada. Se você tem certeza, certamente está errado, porque nada merece certeza”.² Claro, usando as próprias ferramentas que ele ajudou a estabelecer, particularmente com a proposição do famoso paradoxo que recebe seu nome, Russell poderia muito bem fazer hábeis distinções entre linguagem e metalinguagem, teoria e metateoria, a fim de evitar a autorreferência e, portanto, a autocontradição. Tenho minhas dúvidas, porém, que isso seria totalmente satisfatório para eliminar a sua contradição performativa…

Com base nos dois casos apresentados, cujas premissas me parecem ser falsas, podemos esboçar dois exemplos que nos permitem recordar duas importantes regras de inferência, empregadas na argumentação. 

Pela regra modus ponens,³ temos:

Se uma pessoa tem certeza de algo, então ela é uma pessoa tola

Pedro tem certeza de algo.

Logo, Pedro é uma pessoa tola.

 

Pela regra modus tollens,⁴ temos:

Se uma pessoa tem certeza de algo, então ela é uma pessoa tola.

Paulo não é uma pessoa tola.

Logo, Paulo não tem certeza de nada.

 

Tais regras serão úteis para os argumentos que apresentarei a seguir. Note que a validade da aplicação das regras independe do valor de verdade das proposições envolvidas. Assim, mesmo considerando que a primeira premissa em ambos os casos seja falsa, as respectivas conclusões são validamente obtidas, de modo que se as premissas fossem verdadeiras, então as conclusões também seriam.

De todo modo, gostaria que nos concentrássemos aqui na reflexão sobre certa postura diante da pergunta “Deus existe?”. Dada a questão, costuma-se denominar teísta àquele que responde “sim”, ateu àquele que responde “não”, e agnóstico àquele que responde “não sei” (outra possibilidade seria: “não é possível saber”). Essa é uma forma bastante simples de representar três possibilidades gerais, no que diz respeito à aceitação ou não da existência de Deus. Porém, as respostas de um sujeito podem variar dependendo do conceito de Deus associado. Por exemplo, naturalmente, um cristão é um teísta no que diz respeito ao conceito do Deus cristão, mas é um ateu se por “Deus” se quiser significar Zeus, o pai dos deuses do Olimpo. Por isso, é muito importante que o conceito do divino seja minimamente bem delimitado, quando tratamos da sua existência ou não. Consideremos aqui o Deus do teísmo clássico, que tem ao menos os atributos divinos de onipotência, onisciência e onibenevolência.⁵ A postura que quero mostrar ser contraditória, tendo em vista o conceito estabelecido, é a do agnosticismo forte.

Por agnosticismo forte, entendo aquela posição que afirma ser impossível saber se Deus existe ou se não existe. Esta parece ser a postura definida por Russell, quando diz:

Um agnóstico pensa que é impossível conhecer a verdade em assuntos tais como os que envolvem Deus e a vida futura, com os quais o Cristianismo e outras religiões estão envolvidos. Ou, se não impossível, pelo menos impossível no momento.⁶

Consideremos, portanto, que um agnóstico forte sustente as seguintes proposições simultaneamente:

(INE) É impossível conhecer que Deus não existe.

(IE) É impossível conhecer que Deus existe.

Pretendo mostrar que tal postura é contraditória, independentemente da temporalidade. Para tanto, devemos ter em mente que o agnóstico forte deve admitir a existência de Deus ao menos como uma possibilidade. Caso contrário, se o agnóstico assumisse ser impossível a existência de Deus, então ele teria de concluir que Deus não existe. Mas isso mostraria ser possível conhecer que Deus não existe, contrariando INE.⁷ Pela mesma razão, o agnóstico forte deve assumir que qualquer um dos atributos divinos é possível. Então, a onisciência, que é um atributo divino, é possível.⁸

Essas possibilidades formam a base para o seguinte argumento:

1. Se é impossível conhecer que Deus não existe, então é possível que Deus exista.

2. Se é possível que Deus exista, então é possível que exista um ser onisciente.

3. Se é possível que exista um ser onisciente, então é possível que toda verdade seja conhecida.

4. Se é possível que toda verdade seja conhecida, então toda verdade é cognoscível.

5. Se toda verdade é cognoscível, segue-se que se uma proposição p não é cognoscível, então p não é verdadeira.

6. Mas a proposição ‘Deus não existe’ é incognoscível (por INE), logo, a proposição ‘Deus não existe’ não é verdadeira.

7. Portanto, a proposição ‘Deus existe’ é verdadeira.

Partindo de INE, concluímos, assim, que Deus existe e, portanto, que é possível conhecer que Deus existe, o que contraria IE. Logo, como INE implica a negação de IE, a postura agnóstica forte é contraditória.

Com um raciocínio análogo, que será omitido aqui, podemos mostrar que a partir de IE conclui-se que Deus não existe. Consideremos, porém, outro argumento baseado na possibilidade de existir um Deus autoconsciente,¹⁰ o que também deve ser admitido pelo agnóstico forte pelas razões apresentadas anteriormente. Assim,

1. É possível que Deus exista.

2. Se é possível que Deus exista, então é possível que exista um Deus consciente de sua existência.

3. Se é possível que exista um Deus consciente de sua existência, então é possível conhecer que Deus existe.

4. Mas, por IE, não é possível conhecer que Deus existe.

5. Logo, por modus tollens, não é possível que exista um Deus consciente de sua existência.

6. Portanto, Deus não existe.

Em outras palavras, um sujeito não pode admitir INE e IE simultaneamente. Ou assume INE, e, portanto, que Deus existe, ou assume IE, e, portanto, que Deus não existe. Diante de INE e IE é tudo ou nada, ou o teísmo ou o ateísmo.

Uma possível objeção para o argumento apresentado é que o agnosticismo forte diz respeito às capacidades epistêmicas do ser humano, ou seja, a capacidade humana de conhecer. Assim, o agnosticismo forte poderia ser caracterizado de outra maneira, ligeira, mas significativamente alterada mediante a admissão das seguintes proposições:

(IHNE) É humanamente impossível conhecer que Deus não existe.

(IHE) É humanamente impossível conhecer que Deus existe.

Em outras palavras, um sujeito não pode admitir INE e IE simultaneamente. Ou assume INE, e, portanto, que Deus existe, ou assume IE, e, portanto, que Deus não existe. Diante de INE e IE é tudo ou nada, ou o teísmo ou o ateísmo.

Ainda que a possibilidade da onisciência não implique imediatamente o pressuposto de que Deus existe, tal atributo parece extrapolar as capacidades humanas. Por isso, tal possibilidade não seria adequadamente aplicada a esse novo contexto. O mesmo se pode dizer acerca da possibilidade da autoconsciência de um ser divino. Não obstante, podemos considerar a possibilidade da onipotência (talvez em conjunção com a onibenevolência) para apresentar uma refutação para esse novo agnosticismo forte. Note-se que somente o contraditório foge do escopo das possibilidades da onipotência e que não se conhece contradição inerente à possibilidade de a existência de Deus ser conhecida pelo ser humano. Assim, consideremos:

1. Se é possível que Deus exista, então é possível que exista um ser onipotente.

2. Se é possível que exista um ser onipotente, então é possível que um ser onipotente queira que ou a existência de Deus ou a não existência de Deus seja conhecida por pelo menos um ser humano.

3. Se é possível que um ser onipotente queira que ou a existência de Deus ou a não existência de Deus seja conhecida por pelo menos um ser humano, então é humanamente possível conhecer ou que Deus existe ou que Deus não existe.

4. Mas é possível que Deus exista.

5. Portanto, é humanamente possível conhecer ou que Deus existe ou que Deus não existe.

A conclusão (5) é obtida por sucessivas aplicações da regra modus ponens, a partir da linha 1. Tal conclusão é exatamente a negação da conjunção das teses IHNE e IHE, que, juntas, afirmam ser humanamente impossível saber ou que Deus existe ou que Deus não existe. Como (5) é obtida a partir da possibilidade da existência de Deus, que deve ser assumida por um agnóstico, não se pode consistentemente admitir ao mesmo tempo IHNE e IHE. Logo, a nova versão do agnosticismo forte também é contraditória.

Por fim, qualquer uma das versões do agnosticismo forte pode ser refutada, considerando-se um conceito de Deus no qual seja admitida, entre seus atributos, a cognoscibilidade de Deus, tais como o fazem cristãos, judeus e muçulmanos, entre outros. Para ver facilmente isso, basta considerarmos a seguinte situação hipotética:

Quatro amigos no Café

Um rabino, um padre, um imã e um agnóstico forte entram em um Café. 

O rabino diz: “A existência de HaShem foi conhecida por Avraham (Abraão) e Moshê (Moisés)”.

O padre diz: “Além disso, a existência de Deus foi conhecida por Jesus, que, aliás, é verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.

O imã diz: “Concordo em partes. De todo modo, a existência de Allah foi também conhecida pelo Profeta Muhammad (que a paz esteja com ele)”.

Um barista intrometido pergunta: “Quer dizer que se o Deus abraâmico existe, então é possível ao ser humano conhecer que Deus existe?”

“Sim!” – respondem os três.

O agnóstico forte, então, diz: “Mas é (humanamente) impossível conhecer que Deus existe!” 

Qual é a implicação, por modus tollens, da fala do agnóstico forte? Que o Deus abraâmico não existe!¹¹ Ora, mas isso contraria a sua outra suposição que afirma ser (humanamente) impossível saber que Deus não existe (INE ou IHNE). Portanto, segue que, diante de tal conceito de Deus, o agnosticismo forte é contraditório.

Em resumo, diante do exposto, não se pode sustentar consistentemente o agnosticismo forte. Porém, os argumentos não se aplicam a um agnosticismo pessoal, no qual um agnóstico afirma: “Eu não sei se Deus existe ou não”. Essa postura, muito mais modesta, sim, pode ser sustentada consistentemente.

Em resumo, diante do exposto, não se pode sustentar consistentemente o agnosticismo forte.

No fundo, assumir que seja impossível conhecer que Deus existe é, indiretamente, assumir que Deus não existe. Talvez, essa seja uma das razões que inconscientemente tenham levado Russell a adotar um ateísmo prático. Como um amigo meu costuma explicar o seu agnosticismo: um agnóstico é um ateu com perfume.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Tomás de Aquino, por exemplo, afirma sobre a lógica: “A arte […] que dirige o próprio ato da razão, quer dizer, pela qual o ser humano pode proceder no próprio ato da razão, com ordem, facilidade e sem erros. E esta arte é a lógica, ou seja, a ciência racional”. [“Ars […] directiva ipsius actus rationis, per quam scilicet homo in ipso actu rationis ordinate, faciliter et sine errore procedat. Et haec ars est logica, idest rationalis scientia.”]. Tomás de Aquino, Comentários aos Segundos Analíticos I, 1, n. 1-2.

2. “I think nobody should be certain of anything. If you’re certain, you’re certainly wrong, because nothing deserves certainty, […].” Em: Bertrand Russell, Bertrand Russell Speaks His Mind, 1960. Entrevista disponível clicando aqui. Na mesma linha, afirma Russell em outro lugar: “Uma das coisas dolorosas do nosso tempo é que aqueles que sentem certeza são estúpidos, e aqueles com alguma imaginação e compreensão estão cheios de dúvidas” [“One of the painful things about our time is that those who feel certainty are stupid, and those with any imagination and understanding are filled with doubt and indecision”.] Em: Bertrand Russell, The Basic Writings of Bertrand Russell, 2009.

3. A forma da regra modus ponens é 

Se A, então B.

A.

Logo, B.

4. A forma da regra modus tollens é 

Se A, então B.

não-B.

Logo, não-A.

5. Para nossos fins, consideremos simplesmente que (i) um ser é dito onipotente se, e somente se, tudo o que ele quer e que não seja contraditório, acontece (é o caso); (ii) um ser é dito onisciente se, e somente se, ele conhece todas as verdades; e (iii) um ser é dito onibenevolente se, e somente se, tudo que ele quer é bom.

6. “An agnostic thinks it impossible to know the truth in matters such as God and the future life with which Christianity and other religions are concerned. Or, if not impossible, at least impossible at the present time”. Bertrand Russell, The Basic Writings of Bertrand Russell, 2009.

7. A saber, a possibilidade de conhecer que Deus não existe seria derivada da impossibilidade de Deus existir.

8. É preciso observar que, admitir a possibilidade da onisciência não implica se assumir a priori a existência de Deus, e sim que a onisciência pode ser instanciada em algum mundo possível, de alguma maneira.

9. Versões formalizadas de argumentos similares podem ser encontradas em meu recente artigo Fábio Maia Bertato, “Modal-epistemic arguments for the existence of God based on the possibility of the omniscience and/or refutation of the strong agnosticism”, Religious Studies, 2023.

10. Tal consciência ou conhecimento a respeito de sua existência é uma consequência imediata do atributo de onisciência. É razoável dizer que um conceito de Deus, minimamente aceitável, deve incluir como atributo a consciência de sua própria existência.

11. Se o Deus abraâmico existe, então é possível ao ser humano conhecer que Deus existe.

Não é (humanamente) possível conhecer que Deus existe.

Portanto, o Deus abraâmico não existe.

Outros artigos [n. 2]

Screenshot 2023-12-15 at 11.16
Quem é o ser humano?
20110318182437!V&A_-_Raphael,_St_Paul_Preaching_in_Athens_(1515) (1)
Screenshot 2023-12-08 at 09.25
pexels-cottonbro-studio-6153354
compare-fibre-tiSE_paTt0A-unsplash
James Webb Space Telescope
42646461524_5b16709ef7_k
Webb's_First_Deep_Field
Screenshot 2023-11-03 at 16.36
Cibernética e transumanismo
alexander-andrews-fsH1KjbdjE8-unsplash
O que é vida?

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!