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ARTIGO

Uma introdução à Epistemologia da Aliança de Esther Meek

Vanessa Belmonte|

28/07/2023

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Vanessa Belmonte

Graduada em Administração pela UEM e mestre em Educação Tecnológica pelo CEFET/MG. Atua na área de gestão de cursos da Academia ABC² e é obreira do L’Abri Brasil. Desenvolve pesquisas sobre Educação Cristã e Formação Espiritual.

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BELMONTE, Vanessa. Uma introdução à Epistemologia da Aliança de Esther Meek. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Em nossa vida diária, não paramos muito para pensar em como ocorre o processo de aprendizado; como o conhecimento se forma ou como aprendemos. Afinal, é algo que fazemos desde que nascemos, por diversos processos e utilizando muitas capacidades cognitivas.

Porém, amamos conhecer. Lemos livros e ouvimos podcasts, usando formas e métodos diferentes para melhor apreender o que estamos aprendendo. Sublinhamos os livros com cores diferentes e fazemos anotações. Conversamos com outras pessoas que também se interessam pelo assunto e participamos de debates. Fazemos e respondemos perguntas. Escrevemos artigos e relacionamos diversos conhecimentos já adquiridos, fazemos aplicações e chegamos a algumas conclusões. Concordamos e discordamos, mudamos de ideia e aperfeiçoamos as opiniões formadas.

Neste contexto, gostaria de compartilhar algumas reflexões da filósofa Esther Lightcap Meek, que tem dedicado sua pesquisa para compreender o conhecimento a partir do que ela denominou como uma Epistemologia da Aliança (Covenant Epistemology).*

Segundo ela, por um lado, não pensamos muito sobre como conhecemos e, por outro, temos a tendência de pensar que conhecimento é um conjunto de informações, fatos, conteúdos e declarações verdadeiras que apreendemos sobre as coisas. Embora essa ideia não esteja necessariamente errada, tendemos a ter uma visão do conhecimento como sendo apenas isso. Concluímos que ganhar conhecimento é coletar informações sobre determinado assunto e estamos prontos. E tendemos a fazer isso com o conhecimento de Deus também.¹

Algumas vezes, podemos separar o conhecimento como algo objetivo, formado por fatos, razão, teoria e ciência, de outros aspectos considerados subjetivos, como crenças, emoções e imaginação, pois atrapalham ou contaminam a formação do conhecimento. Aprendemos isso em nossas aulas de metodologia na faculdade e nos esforçamos para sermos objetivos em nossa jornada pelo mundo da academia. Contudo, Esther Meek chama isso de ‘dualismo epistemológico’ que, segundo ela, nos reduz, como conhecedores, a compartimentos desconectados, incapazes de trabalhar de forma integrada ao separar informações de um lado e crenças de outro. Tal abordagem sobre o conhecimento nos despersonaliza no momento de uma de nossas maiores oportunidades para a personalidade – o momento de vir a conhecer.²

Conhecimento tácito

No desenvolvimento de sua pesquisa, Esther Meek foi grandemente influenciada pela epistemologia de integração subsidiária-focal de Michael Polanyi, que desenvolveu a compreensão do processo de construção do conhecimento considerando a sua dimensão pessoal e a inclusão do conhecimento tácito.³

Temos uma visão comum de que o conhecimento é algo objetivo, obtido a partir da análise de uma realidade também objetiva e imutável. Contudo, essa visão do conhecimento é realmente incompleta. Ela distorce a realidade e a nossa humanidade, pois há muitas coisas que sabemos em nossa experiência prática, sem conseguir explicar por teorias ou palavras.

Michael Polanyi argumenta que o comportamento real dos cientistas em busca da descoberta nunca é, como comumente sustentado pelo ideal objetivista, desapaixonado, com o cientista pronto a qualquer momento para rejeitar suas propostas na primeira contraevidência empírica. Pelo contrário, para o cientista fazer bem o seu trabalho, deve credenciar as paixões intelectuais e o compromisso pessoal responsável às raízes fiduciárias de todo o saber e à própria habilidade e talento artístico cultivados pela tradição do cientista para identificar bons problemas e persegui-los à descoberta.

Precisamos, assim, de uma compreensão muito mais rica da objetividade, tanto em nossa abordagem epistêmica quanto em nossa compreensão do mundo. Isso não significa que a formação do conhecimento seja meramente intuitiva, subjetiva ou automática. Muito do conhecimento que precisamos é tácito.

Polanyi reconheceu que em todo processo de conhecimento há sempre uma dimensão tácita, além daquela que é explícita. O termo tácito é comumente associado ao conhecimento que temos, mas que não conseguimos expressar. Para Polanyi, um verdadeiro conhecimento de uma teoria apenas pode ser estabelecido depois de esta ter sido interiorizada e extensivamente usada para interpretar a experiência.

Mas supondo que o pensamento tácito forma uma parte indispensável de todo o conhecimento, então o ideal de eliminar todos os elementos pessoais do conhecimento visaria, de facto, à destruição de todo o conhecimento. O ideal da ciência exata mostra-se, portanto, como fundamentalmente enganador e possível fonte de falácias devastadoras. Penso poder mostrar que o processo de formalizar todo o conhecimento, com a exclusão de qualquer conhecer tácito, é autodestruidor.⁶

para o cientista fazer bem o seu trabalho, deve credenciar as paixões intelectuais e o compromisso pessoal responsável às raízes fiduciárias de todo o saber e à própria habilidade e talento artístico cultivados pela tradição do cientista para identificar bons problemas e persegui-los à descoberta.

O conhecimento tácito, portanto, envolve os compromissos responsáveis do cientista com os padrões autoestabelecidos, sua avaliação do valor, estratégia e sucesso de qualquer investigação, submissão responsável com intenção universal, a estrutura fiduciária de todas as reivindicações de verdade, o fato de que as premissas da ciência com as quais o cientista está comprometido são tacitamente alteradas para uma racionalidade que acomoda uma descoberta iminente.

Conhecimento Pessoal

Esther Meek, baseada no conhecimento pessoal desenvolvido por Polanyi, aprofunda a reflexão apontando para a relação entre conhecedor e o que se busca conhecer em um universo pessoal, considerando a existência de um Deus pessoal como fonte de todo conhecimento. Afinal, Deus criou muitas coisas, incluindo cada um de nós e toda a realidade. Ele nos coloca nessa realidade, nos capacita cognitivamente para conhecer e nos convida a conhecê-lo, a conhecer a nós mesmos e a todas as coisas à nossa volta. Há mistério e deslumbramento à medida que vamos conhecendo mais; há curiosidade e imaginação envolvidas em um processo não apenas de adquirir informação, mas em uma aventura de transformação; há virtudes intelectuais sendo forjadas em nosso caráter.

Deus não nos ensina tudo de uma vez, mas vai nos conduzindo ao longo do tempo à medida que vamos caminhando com ele e o conhecendo cada vez mais. Por isso, Esther Meek considera que nós conhecemos ao passo que nos entregamos a Deus e somos conhecidos por ele. Cada ato de nosso aprendizado está relacionado com a presença de Deus conosco, sua doação, sua vinda, seu conhecimento redentor de nós. E conhecer a Deus pode nos ajudar a conhecer melhor as outras coisas criadas e sustentadas por ele.

Incluir Deus no processo de conhecimento, é claro, significa colocá-lo no assento do motorista epistêmico. Conhecê-lo seria formativo para saber qualquer outra coisa. Nessa visão, nós mesmos não somos Deus; somos criaturas conhecedoras. Nossa glória como humanos é saber de um determinado lugar e orientação, viajar para o que ainda não conhecemos. Sempre estamos no caminho. Estamos a caminho de conhecer a Deus e, também, de conhecer nosso mundo. Nós entendemos parcialmente.⁹

Incluir Deus no processo de conhecimento, é claro, significa colocá-lo no assento do motorista epistêmico. Conhecê-lo seria formativo para saber qualquer outra coisa.

A realidade do universo que almejamos conhecer não é impessoal e, por isso, todos nós que nos engajamos no processo de conhecer entramos em uma relação com o que desejamos conhecer. Assim, a Epistemologia da Aliança de Esther Meek nos surpreende por pensar no conhecedor e no que é conhecido como pessoas em um relacionamento, onde conhecer é o relacionamento. Esse relacionamento tem dimensões de aliança. Com isso, o conhecedor se compromete com o que ainda está por ser conhecido, da mesma forma que um noivo se compromete com uma noiva. Ter essa visão pessoal e relacional do processo de conhecimento, reorienta nosso aprendizado e oferece uma visão que molda nossa vida. Conhecer, assim, envolve tudo que somos e, ao conhecermos, somos transformados profundamente.¹⁰

A Epistemologia da Aliança, então, é a proposta de Esther Meek para que tomemos como paradigma de todo conhecimento o relacionamento interpessoal, constituído pela aliança. Ela entrelaça três vertentes de teses: (1) a epistemologia polanyiana com um “conhecimento pessoal” mais profundo do que Polanyi articulou em seu trabalho, (2) um motivo teológico e uma visão da aliança bíblica como relacionamento e (3) um conjunto de teses chamadas de “interpessoalidade”.¹¹

Assim, a Epistemologia da Aliança de Esther Meek nos surpreende por pensar no conhecedor e no que é conhecido como pessoas em um relacionamento, onde conhecer é o relacionamento.

Uma aplicação para o conhecimento teológico

Conhecer é uma jornada compartilhada, acompanhada por outras pessoas e vivida em constante relacionamento com Deus. E, também, é uma dádiva, um presente muitas vezes ignorado por pessoas que vivem preocupadas em fazer a vida dar certo, tendo uma visão utilitarista do conhecimento.

Deus nos conduz em tudo o que conhecemos, e isso vale para todas as áreas de conhecimento e todas as coisas que aprendemos: da matemática à jardinagem; da história às receitas culinárias. Deus é Senhor sobre todas as áreas e nos convida para conhecê-las. Imagine Deus empolgado para te ensinar todos os detalhes das leis da física em um curso de Engenharia ou dos processos cognitivos em um curso de Pedagogia. Leis e processos que ele mesmo criou.

Vemos uma relação ainda mais clara no ensino de Teologia, no estudo da Bíblia e no processo de discipulado. A Epistemologia da Aliança, como um paradigma de aprender com Jesus, a Verdade personificada, também permite que vejamos o processo de ensino e aprendizado de modo mais integrativo, pois Deus é o objeto de estudo e também aquele que nos conduz no processo de conhecimento, nos transformando não apenas pelo conteúdo aprendido, mas especialmente por intermédio da relação com ele.¹²

Deus nos conduz em tudo o que conhecemos, e isso vale para todas as áreas de conhecimento e todas as coisas que aprendemos: da matemática à jardinagem; da história às receitas culinárias.

Tudo isso ainda é um esboço proposto por Esther Meek, rumo a uma visão mais integrada da relação entre conhecimento e conhecedor. Precisamos aprofundar mais nas suas implicações e aplicações para visualizarmos melhor toda sua potência e limitações. 

Contudo, é fascinante perceber como a Epistemologia da Aliança pode nos ajudar a ampliar a visão que temos atualmente do conhecimento e, principalmente, incluir a relação com Deus neste processo de conhecimento, especialmente quando cristãos exibem uma desconexão entre a verdade como proposição e o relacionamento pessoal com Jesus Cristo. É possível encontrar pessoas que distinguem o estudo de informações sobre Deus (em um sermão ou no seminário) de seu relacionamento pessoal com Jesus. Esse padrão impede que as pessoas vejam como o relacionamento pode ser central para o que pensamos ser o conhecimento e como conhecer e ser conhecido por Cristo pode ser central epistemicamente.¹³

Assim, a Epistemologia da Aliança nos dá mais recursos para pensar a formação do conhecimento – principalmente teológico, mas também de todo conhecimento – a partir de suas relações interpessoais e do cultivo de respeito, humildade, atenção, obediência e paciência. 

Para conhecer pactualmente, a partir do relacionamento com Deus, devemos nos entregar ao que ainda não conhecemos; devemos viver a vida arriscadamente, sem medo do que ainda não conhecemos; devemos nos comprometer com o trabalho que é necessário para conhecer; devemos abrir um espaço de boas-vindas para a revelação do que queremos saber; e, por fim, devemos estar abertos a como isso nos transformará e a como viveremos a partir do que agora conhecemos. Afinal, conhecemos como bons mordomos, responsáveis pelo conhecimento que nos foi dado.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Também traduzido como Epistemologia do Pacto.

1. Esther LightcapMeek, A Little Manual for Knowing, 2014, p. 2.

2. Ibidem, p. 76.

3. Veja os livros: (1) Michael Polanyi, Conhecimento Pessoal: Por Uma Filosofia Pós-Critica, 2013. E (2) Michael Polanyi, A dimensão tácita, 2020.

4. Esther Lightcap Meek, Loving to Know: Introducing Covenant Epistemology, 2011, p. 23-24.

5. Michael Polanyi, A dimensão tácita, 2020, p. 34.

6. Ibidem, p. 33-34.

7. Esther Lightcap Meek. Contact with Reality: Michael Polanyi’s Realism and Why It Matters, 2017, p. 27-28.

8. Esther LightcapMeek, A Little Manual for Knowing, 2014, p. 132.

9. Ibidem, p. 128.

10. Ibidem, p. 102.

11. Esther Lightcap Meek, Loving to Know: Introducing Covenant Epistemology, 2011, p. 44.

12. Ibidem, p. 44.

13. Ibidem, p. 62.

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