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Uma proposta de reflexão cristã sobre a prática docente*

Natan Fantin|

14/04/2023

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Natan Fantin

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Fronteira Sul e professor do Ensino Básico.

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FANTIN, Natan. Uma proposta de reflexão cristã sobre a prática docente. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

Pensar a educação para além do seu conteúdo. Essa é a tarefa que David I. Smith se propõe trabalhar no livro Pedagogia Cristã: Como praticar a fé em sala de aula. A presente edição, em português, lançada em 2022 é um marco para a comunidade cristã brasileira. Pensar a educação não apenas como uma questão de cosmovisão é abordar o ensino e a aprendizagem como um processo formativo, onde rotinas, hábitos, vivências, espaços e relações são avaliados com um olhar focado na compreensão desses processos por meio de uma concepção cristã de como eles ocorrem no ambiente de sala de aula.

O presente livro, publicado pela Thomas Nelson Brasil, faz parte da Coleção Fé, Ciência e Cultura, que visa superar o abismo que permeia a sociedade ocidental entre as culturas das ciências naturais e das ciências humanas.¹ É uma iniciativa em busca da sabedoria, que é vital para a edificação de uma comunidade intelectual cristã no Brasil.² Essa obra, juntamente com outras publicadas pelo autor,³ são de extrema importância – principalmente no contexto pós-pandêmico — por nos fazer refletir sobre metodologias mais propositivas na prática de sala de aula.⁴ O público-alvo são todos aqueles envolvidos com a educação escolar, em especial gestores, coordenadores pedagógicos e professores.

A pergunta que permeia o livro é a seguinte: Como a fé cristã pode relacionar-se com o processo pedagógico, e não apenas com os tópicos e os contextos institucionais de aprendizagem? A obra possui 11 capítulos e um breve prefácio, no qual David I. Smith aponta os motivos que o levaram à escrita: seu desapontamento com livros e artigos cristãos que tratam da educação, mas muitas vezes dão poucos insights sobre o “chão de fábrica” do ensino-aprendizagem. Smith percebeu a necessidade de um tratamento mais específico sobre como a fé cristã molda a prática dos professores em sala de aula e como esse processo envolve  muito mais do que ideias e conteúdos. Importante ressaltar de antemão que as perguntas para reflexão e debate ao final de cada capítulo são de grande auxílio para o leitor engajado.⁵

Smith percebeu a necessidade de um tratamento mais específico sobre como a fé cristã molda a prática dos professores em sala de aula e como esse processo envolve muito mais do que ideias e conteúdos.

No primeiro capítulo, intitulado “A lacuna pedagógica”, o autor aponta que grande parte da literatura protestante que trata da educação cristã não menciona o processo pedagógico ou a forma como os alunos vivenciam e interpretam o aprendizado. Essa lacuna é uma oportunidade para que a fé cristã se aproxime, tendo um conjunto de perguntas que dizem respeito à prática docente. O autor argumenta que a fé cristã pode e deve dar subsídios à pedagogia. Seu objetivo nesse capítulo é começar a edificar lares pedagógicos, onde os alunos são recebidos como hóspedes e encontram um lugar para crescer e se desenvolver. 

No segundo capítulo, “A íntegra dos nove minutos”, David I. Smith trata da especificidade da sala de aula, seus ritmos, seus espaços, suas rotinas etc. Sua abordagem não só neste capítulo, mas em toda obra, é lidar com exemplos reais de estudantes dentro do espaço-tempo de aprendizagem de alguma disciplina escolar. Aqui, Smith exemplifica com um primeiro dia de aula no início de um curso de alemão do segundo semestre de uma faculdade cristã de Letras. Seu objetivo é refletir sobre como um modelo de atividade pode (ou não) levar em consideração o aspecto afetivo da experiência dos alunos. E, de igual modo, sobre como a fé molda os relacionamentos a tal ponto de criar um ambiente de segurança e hospitalidade em sala de aula.

No terceiro capítulo, “Padrões que importam”, o autor chega à conclusão de que há não só maneiras cristãs de se relacionar com os alunos, mas também que há uma forma de aprendizagem que se desenvolve e é influenciada pelo espaço físico. Existem padrões “litúrgicos” que formam um ecossistema organizacional, que, por sua vez, influencia na formação dos estudantes. O próprio processo de ensino corporifica as crenças tácitas dos professores; sendo assim, para construir um lar pedagógico, é necessário atentar para os “tijolos” com os quais se edifica a prática docente.

O capítulo quatro, intitulado “O movimento da alma”, reorienta a visão autocentrada de muito da prática docente em direção ao outro, a Deus e ao próximo. Essa relação Eu-Tu permite que os outros sejam eles mesmos, e isso faz com que algumas práticas pedagógicas sejam repensadas, tais como a relação com os livros didáticos, os quais, na maioria das vezes, exemplificam o conteúdo com imagens de realidades muito distantes das vivenciadas pelos alunos. Além disso, quando o uso de textos com tópicos – que carregam mundos morais implícitos — formam os alunos para apenas um certo tipo de boa vida (individualista, consumista etc). O autor conclui o capítulo afirmando que as práticas de sala de aula surgem da ordem moral de determinado tempo e lugar.

O Capítulo 5 trata do “Planejamento motivado”, onde o ensino-aprendizagem é pensado sob a perspectiva da hospitalidade para com estranhos. Isso envolve um planejamento aberto culturalmente, que considera as pessoas como feitas à imagem de Deus, que aprende a ouvir as histórias, leva em consideração a afetividade e é paciente, estando atento ao próximo e seus dilemas. Ao refletir sobre sua própria jornada como professor, Smith conclui que a pedagogia é mais como uma casa do que uma técnica, já que o objetivo é cultivar um lar onde o Espírito Santo possa habitar.

No Capítulo 6, “Ver, engajar, remodelar”, Smith aponta para o fato de que a fé cristã motiva o planejamento intencional de padrões de prática em contextos particulares. Neste capítulo, há orientações sobre como ensinar de forma cristã. A abordagem chamada “What if learning” trata a pedagogia com uma mentalidade questionadora, sendo exposta em três tópicos, a saber, ver de maneira nova, escolher o engajamento e remodelar a prática, tendo como objetivo reimaginar a prática pedagógica à luz do Reino de Deus.

Os capítulos 7, 8 e 9, intitulados, respectivamente, “O trabalho da imaginação”, “Vida em comunhão” e “Planejando espaço e tempo” fazem uma aplicação aos tópicos trabalhados na abordagem “What if learning”. Esses três capítulos são o ponto alto do livro, uma vez que neles o autor exemplifica na prática docente como a imaginação, o engajamento e a organização do espaço refletem uma pedagogia formativa à luz da fé cristã.

O Capítulo 10, “Pedagogia e comunidade”, é uma conversa à mesa, onde David I. Smith faz um apelo para que uma comunidade engajada na área da educação se una em um companheirismo estimulante que busca desenvolver uma reflexão cristã sobre suas próprias práticas como docentes. Sinceramente, espero que esse livro fomente no Brasil uma comunidade de diálogo a esse respeito.

O último capítulo, intitulado “O estado da pesquisa acadêmica cristã”, volta-se para aqueles envolvidos com o Ensino Superior. Sua crítica diz respeito, de um lado, ao ensino-pesquisa se voltar amplamente para a relação da fé com a intelectualidade, e, de outro, voltar-se tão pouco para a relação da fé com as práticas de ensino. Smith elenca alguns fatores para essa discrepância, aos quais os envolvidos no Ensino Superior deveriam se atentar. E ele encerra o livro com uma voz de esperança sobre o futuro do engajamento entre pedagogia e fé cristã no âmbito universitário.

Existem padrões “litúrgicos” que formam um ecossistema organizacional, que, por sua vez, influencia na formação dos estudantes. O próprio processo de ensino corporifica as crenças tácitas dos professores; sendo assim, para construir um lar pedagógico, é necessário atentar para os “tijolos” com os quais se edifica a prática docente.

Diante da proposta apresentada por David I. Smith, a obra Pedagogia cristã: como praticar a fé em sala de aula é enfaticamente recomendada como uma obra eminentemente cristã, que adentra o diálogo de metodologias ativas de ensino-aprendizagem que vem sendo realizado no Brasil nos últimos anos,⁶ tendo em vista que sua proposta abre um horizonte de reflexões sobre a prática docente. Após a leitura, fiz alguns apontamentos em forma de resoluções da minha própria prática em sala de aula. Para citar apenas alguns pontos suscitados pela leitura: 

  1. Levar em consideração a comunidade de aprendizagem com aulas expositivas dialogadas, criação de grupos de trabalho, debates, seminários e discussões direcionadas, bem como desenvolver atividades que priorizem a interpretação e a formação de capital moral e social. 
  2. Considerar as rotinas, os modos de organização especial, para que fomentem o aprendizado e a formação de virtudes epistêmicas, assim como sequências didáticas e projetos interdisciplinares que envolvam espaços outros que o da sala de aula.  
  3. Levar em conta a corporeidade e a afetividade com dramatizações, júris simulados e dinâmicas de grupo, visto que a noção de hospitalidade é essencial para tal empreitada docente. 
  4. Essas são apenas algumas das reflexões que a leitura da obra proporcionou, mas ela abre margem para muitas outras.
 

Por fim, é válido dizer que pensar a educação cristã é pensar uma antropologia cristã, pois a pedagogia cristã carrega em si mesma uma visão do ser humano e de sua finalidade como ser criado à imagem e semelhança de Deus, caído no pecado e restaurado em Jesus. A pedagogia cristã visa, portanto, uma formação à luz de Jesus de Nazaré (Rm 8.29). Espero que este livro proporcione uma reflexão sobre nossa prática docente, que ressoe no ambiente de sala de aula para a maior glória de Deus e para a formação dos nossos estudantes à semelhança de Jesus.

A pedagogia cristã visa, portanto, uma formação à luz de Jesus de Nazaré (Rm 8.29).

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Resenha classificada entre as três melhores na 1ª Chamada do Radar ABC².

1. Wilhelm Dilthey ficou conhecido pela sua distinção entre as ciências naturais (Naturwissenschaft), que são explicativas, e as ciências do espírito ou humanas (Geisteswissenschaft), que lidam com a compreensão. Dilthey escreve a esse respeito: “As ciências do espírito (Geisteswissenschaft) distinguem-se das ciências da natureza (Naturwissenschaft), em primeiro lugar, porque estas têm como objeto os fatos que se apresentam na consciência dispersos, vindos de fora, como fenômenos, ao passo que naquelas se apresentam a partir de dentro, como realidade e, originaliter, como uma conexão viva. Por isso, nas ciências da natureza é-nos oferecido um nexo natural só através de ilações suplementares, mediante um complexo de hipóteses. Pelo contrário, nas ciências do espírito, a base é a conexão da vida anímica como algo originariamente dado. ‘Explicamos’ a natureza, ‘compreendemos’ a vida anímica”. Wilhelm Dilthey, Psicologia e compreensão, 2012, p. 22.

2. Sobre a sabedoria como um alvo a ser buscado na formação de uma intelectualidade cristã, veja: Igor Miguel, A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã, 2021.

3. Sobre como a tradição cristã é uma fonte de ricas práticas formativas para a educação atual. Veja: David I. Smith; James K. A. Smith, Teaching and Christian Pratices: Reshaping Faith and Learning, 2011. Sobre o uso da imaginação na prática docente, veja: David I. Smith; Susan M. Felch, Teaching and Christian Imagination, 2016. Sobre o encontro de diferentes culturas na sala de aula, local de trabalho, igreja etc., veja: David I. Smith; Pennylyn Dykstra-Pruim. Christians and Cultural Difference, 2016.

4. John Dewey já apontava para a necessidade dos professores desenvolverem metodologias mais propositivas: “[…] o processo educativo não pode ter fins elaborados fora dele próprio. Os seus objetivos se contêm dentro do processo e são eles que o fazem educativo. Não podem, portanto, ser elaborados senão pelas próprias pessoas que participam do processo. O educador, o mestre, é uma delas. A sua participação na elaboração desses objetivos não é um privilégio, mas a consequência de ser, naquele processo educativo, o participante mais experimentado, e, esperemos, mais sábio”. John Dewey apud Anísio Teixeira, Ciência e arte de educar. Educação e Ciências Sociais, v.2, n.5, 1957, p. 21.

5. Há um excelente trabalho – que adentra esse diálogo proposto por David I. Smith – empreendido pelo padre e professor Elli Benincá (in memoriam) que realiza esse engajamento com a prática pedagógica, mediante perguntas, memória, interação crítica e criativa no livro Educação, Práxis e Ressignificação de 2010. 

6. A série Desafios da educação, publicada pela Editora Penso, reflete sobre metodologias ativas de ensino-aprendizagem com grande perspicácia. A obra de David I. Smith ressoa com muito do que vem sendo dito nesta série de livros.

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