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ARTIGO

A Bíblia e o ciclo virtuoso da leitura

Texto e letramento

Viktorya Zalewski Baracy|

19/04/2023

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Viktorya Zalewski Baracy

É licenciada em Letras – Português e Alemão pela UFRGS, mestre em Letras (Alemão como língua estrangeira) pela UFPR e graduanda em Teologia na Faculdade Luterana de Teologia.

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Como citar

BARACY, Viktorya Zalewski P. S.. A Bíblia e o ciclo virtuoso da leitura: texto e letramento. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

Pode a Bíblia influenciar positivamente as competências de leitura do indivíduo? Num país majoritariamente cristão, as práticas de leitura em torno das Escrituras Sagradas requerem uma atenção maior. Embora recaia prioritariamente sobre a escola a tarefa de letrar, outras instituições sociais também devem intervir nesse processo, contribuindo para a ampliação das competências de linguagem, como aponta Irandé Antunes.¹

Neste artigo, sugiro que a Igreja, como instituição social comunitária organizada em torno de textos, a Bíblia Sagrada, contribui grandemente para o desenvolvimento do letramento e de competências linguísticas. Ao mesmo tempo, o letramento e o desenvolvimento de competências linguísticas beneficiam e dão suporte à própria leitura da Bíblia. É um ciclo virtuoso. 

Bíblia: o Deus que fala

A leitura da Bíblia é um dos atos centrais no cotidiano do cristão. Apesar de diferenças entre tradições cristãs, muitos concordam que Deus fala conosco por meio das Escrituras Sagradas. A compreensão cristã de que Deus fala é bastante profunda, sendo um dos temas importantes na Bíblia: a fala de Deus dá início ao mundo (Gn 1:3) e chama seus escolhidos (Gn 12:1). Robert Jenson descreve o Deus de Israel como um “tagarela”.²

Mais interessante é o fato de que Ele fala conosco em línguas humanas, de maneira que possamos entendê-lo. Tratando-se da Bíblia, “Deus não usou uma linguagem celestial para se comunicar com o ser humano, mas falou na língua dos homens, a saber, hebraico e aramaico no contexto do Antigo Testamento, e grego e aramaico no Novo”.³ Além disso, Deus inspirou autores humanos historicamente localizados. Em uma das visões do dogma da inspiração divina das Escrituras, crê-se que a Bíblia é, ao mesmo tempo, palavra humana e palavra divina, e é palavra humana porque não exclui a atividade humana de seus autores humanos. Como diria B. B. Warfield:

[...] toda a Bíblia é reconhecida como humana, o livre produto do esforço humano, em cada parte e palavra. E, ao mesmo tempo, toda a Bíblia é reconhecida como divina, a Palavra de Deus, suas declarações, das quais ele é o Autor no sentido mais verdadeiro.⁴

É justamente nessa dimensão humana que a Bíblia pode receber diferentes análises e abordagens. Sabemos, por exemplo, que ela é composta de textos, e que o texto é um “todo organizado de sentido”, um evento comunicativo e que tem um propósito social. De quase todas as maneiras, os textos bíblicos seguirão princípios de construção de sentido como qualquer outro texto. Assim, a leitura atenta da Bíblia promoverá habilidades linguísticas que serão utilizadas também em outros contextos. Aponto, aqui, alguns motivos para isso.

Robert Jenson descreve o Deus de Israel como um "tagarela".

Bíblia: uma motivação para ler

Todo professor espera que seu aluno possa desenvolver uma motivação intrínseca pela leitura, isto é, que ele aprenda a“gostar de ler”. Como habilidade não inata do ser humano, a leitura precisa ser desenvolvida, assim como o prazer por ela. Antunes explica que “o gosto por ler literatura é aprendido por um estado de sedução, de fascínio, de encantamento. Um estado que precisa ser estimulado, exercitado e vivido”.

O interesse do cristão pela leitura não é algo incomum. O antropólogo Juliano Spyer, em seu livro, explicita a relação do evangélico pobre com a educação e a leitura. Ele aponta que, “em relação à educação, a conversão motiva o pobre a aprender a ler e a praticar a leitura em seu cotidiano”.⁶ Spyer relata:

O aspecto da leitura da Bíblia entre evangélicos pode ser um ponto de partida para a leitura de outros livros. Se por um lado a biblioteca pública da localidade em que pesquisei tinha fechado (e ninguém reclamava disso), havia no bairro uma pequena livraria especializada no comércio de bíblias e outros livros sobre temas cristãos ou de autoajuda. Nessa localidade em que a maioria das famílias recebe até dois salários mínimos, o consumo de livro fazia parte somente da rotina de alguns evangélicos. A leitura da Bíblia ocasionalmente servia de degrau para a pessoa perceber e usar livros como meio de instrução e entretenimento.⁷

Como livro sagrado, o cristão particularmente lê a Bíblia para ouvir a voz de Deus e para conhecê-lo. Ao mesmo tempo, ele a lê porque é inserido numa dimensão de práticas comunitárias da leitura das Escrituras e outros textos religiosos. Essas práticas são muitas vezes colaborativas. Kersch e Silva apontam que “as igrejas evangélicas promovem diversos eventos de letramento – tais como as escolas bíblicas, as reuniões informais que acontecem em diversos momentos, como almoços, festas de aniversário, retiros, entre outros”.⁸ Esses fatores geram grande motivação, e a motivação é, sabidamente, um dos fatores mais importantes para formar um leitor.

A partir de sua pesquisa, Kersch e Silva relatam que “os eventos promovidos no âmbito religioso contribuem para o letramento de seus fiéis, não só no âmbito da igreja, como na formação integral dos indivíduos”.⁹ As pesquisadoras concluem que “interessa, sim, que o indivíduo se envolva em atividades que tenham significado para sua vida, que a leitura lhe seja necessária e importante para determinada prática social”.¹⁰

Como livro sagrado, o cristão particularmente lê a Bíblia para ouvir a voz de Deus e para conhecê-lo. Ao mesmo tempo, ele a lê porque é inserido numa dimensão de práticas comunitárias da leitura das Escrituras e outros textos religiosos.

Vendo a leitura como profundamente significativa para sua vida, o cristão será impulsionado a ler mais e a conversar sobre o que leu, o que acatará no desenvolvimento de competências linguísticas. Uma das competências promovidas pela discussão em torno da leitura bíblica é, sem dúvida, a competência metagenérica, explicada a seguir.

A Bíblia e seus gêneros

Movido por fatores pessoais, sociais e religiosos, o leitor da Bíblia terá contato com diferentes gêneros presentes nas Escrituras Sagradas. A nomenclatura pode variar (gêneros textuais ou do discurso?), pois compreende diferentes movimentos e abordagens de pesquisa que continuam em desenvolvimento. Na área da Teologia, os termos mais utilizados são gêneros literários, ou, ainda, gêneros bíblicos (que, apesar da aproximação, também apontam para compreensões diferentes).

De qualquer forma, é fato que a Bíblia é composta por diferentes gêneros. O leitor atento perceberá as diferenças entre uma carta de Paulo, um salmo e um evangelho. A própria Bíblia pode ser vista como um hipergênero, pois agrupa diferentes gêneros. Eles são inúmeros e variam conforme sua categorização: epístolas, provérbios, cânticos, discursos de despedida, listas, profecias de juízo, orações, histórias de milagres… Por isso, para ler as Escrituras de maneira adequada, a competência metagenérica se torna imprescindível. Koch e Elias a definem da seguinte forma:

[a competência metagenérica] diz respeito ao conhecimento de gêneros textuais, sua caracterização e função. É essa competência que nos propicia a escolha adequada do que produzir textualmente nas situações comunicativas que participamos. Por isso, não contamos piada em velório, não cantamos hino do nosso time de futebol em uma conferência acadêmica, nem fazemos preleções na mesa de bar.¹¹

A competência metagenérica não orienta apenas a produção, mas também a leitura e compreensão de textos,¹² pois podemos inferir as regularidades de cada gênero e, consequentemente, estratégias de leitura para ler um texto concreto. É verdade que conhecemos e utilizamos muitos gêneros sem conhecimento formal (téorico) sobre eles: muitos falantes saberão rapidamente diferenciar, por exemplo, um comercial televisivo de uma novela. No entanto, sem a inserção em determinadas práticas sociais, falta ao leitor estratégias para compreender (e produzir) especialmente gêneros escritos e mais formais.

A própria Bíblia pode ser vista como um hipergênero, pois agrupa diferentes gêneros. Eles são inúmeros e variam conforme sua categorização: epístolas, provérbios, cânticos, discursos de despedida, listas, profecias de juízo, orações, histórias de milagres...

Um exemplo concreto na Bíblia são as cartas neotestamentárias (também divididas em subgêneros). Na história, a carta foi “um dos primeiros gêneros textuais que viabilizou a construção de relações interativas a distância”.¹³ Na verdade, a carta pode ser mais bem entendida como gêneros epistolares, pois são várias (carta pessoal, carta circular, carta de cobrança, bilhete…). Embora tenha se modificado ao longo dos séculos, os gêneros epistolares guardam “uma tradição das práticas epistolares do mundo clássico, que se pautaram nos princípios da retórica clássica”.¹⁴ O próprio e-mail de hoje mantém semelhanças com a carta, que pode ser classicamente estruturada em “abertura do evento, corpo da carta e encerramento”.¹⁵ 

As cartas costumam ter um caráter ocasional. Paulo, por exemplo, refere-se a pessoas que desconhecemos: Herodião, parente de Paulo (Rm 16:11); Evódia e Síntique (4:2), que haviam se desentendido; Rufo e sua mãe, que havia sido uma mãe para o apóstolo (Rm 16:13). O apóstolo também evoca eventos que somos incapazes de reconstruir: em 1Coríntios, ele faz referência a uma correspondência anterior (1Co 7:1) que nos é desconhecida. São informações imprecisas para nós, mas eram provavelmente bastante compreensíveis para seus destinatários. 

Essa natureza ocasional das cartas nos ajuda a compreender que elas não eram “tratados teológicos” ou “dissertações”, mas sim correspondências que visavam resolver problemas específicos apontando para uma espécie de teologia aplicada. Ao mesmo tempo, tinham caráter didático, pois geralmente eram provocadas por “comportamento que precisava ser corrigido, ou até mesmo um tipo de doutrina que precisava ser endireitado”.¹⁶ Esse caráter didático unido ao seu caráter situacional (apontando, assim, para o propósito comunicativo do texto), além dos recursos oratórios da época, nos ajuda a extrair suas verdades universais e valiosas ao nosso contexto particular.

Por outro lado, a leitura de salmos, de livros históricos ou de textos legais requerem outras estratégias de leitura. Por isso, quando o mestre de ensino cristão explora essas questões com os cristãos em grupos ou no próprio púlpito, ele acaba promovendo o desenvolvimento das competências metagenéricas, apontando para a compreensão e uso de diferentes gêneros bíblicos. É importante ressaltar que as epístolas paulinas apresentavam diferenças significativas em relação às cartas de hoje (por exemplo: eram lidas em voz alta para a comunidade), e espera-se que um bom professor de Bíblia possa explicá-lo. Afinal, gêneros são “fenômenos sócio-históricos e culturalmente sensíveis”.¹⁷

Ao mesmo tempo, é verdade que os textos bíblicos, compilados e inseridos no cânon, são retextualizados, e ainda retextualizados em sermões ou estudos bíblicos. Esse, porém, é assunto para outro artigo.

Conclusão

Conclui-se, assim, que as práticas de leitura comunitárias da Bíblia oferecem valiosos recursos que promovem o letramento, a motivação para leitura e o desenvolvimento de competências linguísticas. Ao mesmo tempo, essas competências beneficiam a própria leitura da Bíblia. 

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Irandé Antunes, Língua, texto e contexto: outra escola possível, 2009, p. 188.

2. Robert Jenson, A Theology in Outline: Can These Bones Live?, 2016. Edição digital, não paginado.

3. Paulo Won, E Deus falou na língua dos homens, 2020, p. 101.

4. Citado por Michael Bird, Evangelical Theology, 2020, tradução livre. Edição digital, não paginado.

5. Irandé Antunes, Língua, texto e contexto: outra escola possível, 2009, p. 201.

6. Juliano Spyer. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam, 2020 p. 40. 

7. Juliano Spyer, 2020, p. 123-124.

8. Dorotea Kersch e Michele da Silva, “Meu modo de falar mudou bastante, as pessoas notaram a diferença em mim: quando o letramento é desenvolvido fora do contexto escolar”, Trabalhos em Linguística Aplicada (UNICAMP), v. 51, 2012, p. 398.

9. Dorotea Kersch e Michele da Silva, 2012, p. 406.

10. Dorotea Kersch e Michele da Silva, 2012, p. 406.

11. Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias, Ler e Escrever: estratégias para a produção textual, 2010, p. 54.

12. Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias, 2010, p. 56.

13. Jane Silva, Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das práticas comunicativas aos indícios de interatividade na escrita dos textos, 2002, tese, p. 52.

14. Jane Silva, 2002, p. 133

15. Jane Silva, 2002, p. 138.

16. Gordon Fee e Douglas Stuart, Entendes o que lês?, 2020, p. 70.

17. Luiz Antônio Marcuschi. “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”, Gêneros textuais & Ensino, 2002, p. 29.

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