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ARTIGO

A filosofia estoica e a mente

Uma relação possível entre as teorias cognitivas modernas e a teoria estoica das emoções

Ana Azevedo Bezerra Felicio|

04/05/2023

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Ana Azevedo Bezerra Felicio

Bacharela, Mestra e Doutoranda em Linguística na UNICAMP na área de Estudos Clássicos. Realizou um estágio de pesquisa na Scuola Normale Superiore di Pisa (Itália, 2019). Ana possui um estágio doutoral na New York University para sua pesquisa de doutorado que verte sobre o estudo das emoções em Lúcio Aneu Sêneca e em Roma Antiga.

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Como citar

BEZERRA FELICIO, A. A.. A filosofia estoica e a mente: Uma relação possível entre as teorias cognitivas modernas e a teoria estoica das emoções. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

Toda vez que tentamos fazer aproximações entre o passado e o presente, podemos incorrer em equívocos fascinantes. Quando decidi escrever sobre a teoria estoica das emoções em comparação com as mais recentes descobertas acerca da cognição humana, sabia que estaria entrando em campo minado. Não tentarei encontrar uma antiga genealogia das descobertas científicas modernas que de alguma forma as valide, nem serei a classicista que diz: “Você viu, os antigos sabiam de tudo!”. Cometer esses dois equívocos é o caminho mais fácil; proponho aqui um exercício de reflexão histórico-filosófica. O que uma filosofia do século 3 a.C., teria a dizer sobre a mente e sobre as emoções para nós que vivemos no século 21, diante de tantas descobertas e teorias que estão revolucionando o que pensávamos saber sobre esses assuntos?

O campo de pesquisa que se interessa pela história das emoções cresce rapidamente desde os anos 1980 do século passado.¹ Se existe uma história das emoções, isso significa que mais modernamente tem se entendido que emoções nem sempre foram avaliadas e classificadas da mesma maneira em todas as sociedades e épocas da história humana. Desse modo, qualquer abordagem que tente responder à pergunta “o que é uma emoção?” precisa se valer de diversas áreas de conhecimento, desde as ciências neurológicas, psicológicas, até a antropologia, história, teologia e linguística; mas certamente não pode se esquivar da disciplina que se dedica a responder a essa e outras questões acerca das emoções há 2.500 anos: a filosofia.  

Desse modo, qualquer abordagem que tente responder à pergunta “o que é uma emoção?” precisa se valer de diversas áreas de conhecimento, desde as ciências neurológicas, psicológicas, até a antropologia, história, teologia e linguística; mas certamente não pode se esquivar da disciplina que se dedica a responder a essa e outras questões acerca das emoções há 2.500 anos: a filosofia.

Emoções² no estoicismo

Popularmente, o termo “estoico” ficou conhecido como sinônimo de alguém que não sente emoções, que enfrenta todos os reveses da sorte, e falar de “emoções estoicas” pode parecer, para alguns, uma contradição em termos. Na verdade, os estoicos não defendiam a supressão de qualquer sentimento, mas para eles era possível distinguir entre os sentimentos naturais (já que a Natureza é a regra máxima de vida e ética) e aqueles sentimentos não naturais que deveriam ser extirpados por meio de exercícios filosóficos sob uma direção espiritual (direction spirituelle).³

Para os estoicos, a alma (spiritus, anima, animus em latim; pneuma em grego) é um hálito quente, ou seja, sua matéria é o ar, e sua característica intrínseca é o calor, já que tudo o que possui vida contém calor, diria Cícero (Sobre a natureza dos deuses, 2.23-25,  45 a.C.) citando Cleantes (século 3 a.C.) um dos integrantes da Antiga Stoa. Logo, as variações de tensão do pneuma seriam a causa de mudanças perceptíveis no corpo do ser humano; o pneuma permitiria tanto o ato de caminhar como o de sentir medo, raiva ou felicidade. A ideia de que as paixões estariam ligadas à cognição antecede os estoicos, e é, de fato, de Aristóteles,⁴ para quem “emoções são julgamentos” que são acompanhados de prazer e dor (Retórica, 2.1, 1378a20-3). Há uma característica fundamental que o estoicismo enfatiza acerca do pneuma: é ele quem gerencia tudo – por isso é também chamado de animus principale (alma principal), em latim; hēgemonikon (central de comando) em grego. Isso nos leva à seguinte conclusão: visto que a alma não é dividida, como sustentava a filosofia platônica, segundo os estoicos, quando a alma é tomada por uma paixão, não há outro lugar a que recorrer para se livrar dela. Assim, concluirá Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), é melhor expelir os impulsos perniciosos antes que eles tomem conta da alma, porque, se esperar demais, a alma se transformará naquela paixão e será demasiado tarde (Sobre a Ira, 1.7.2). 

A diferença entre os estoicos e Aristóteles é que, para estes, as emoções são julgamentos provocados por crenças falsas. E é daí que vem grande parte da associação antitética entre “estoicismo” e “emoção” que permaneceu na história e na cultura popular. Para a doutrina estoica, aquele que se aproxima do estoicismo deverá buscar se livrar de crenças falsas acerca do mundo para não sofrer de maneira desnecessária. Sêneca diz que é o medo da morte que nos atormenta e não a morte em si, ou seja, o que você crê, formula e imagina em sua mente acerca da morte é causa de temores (Carta 30.17); assim como ele diz que é a ideia de uma ofensa que causa ira e não a ofensa em si (Sobre a ira, 1.3.1).

Não raro, sem sinais evidentes que prenunciem qualquer mal, a mente cria para si imagens falsas: ora distorce para pior algumas palavras de significado duvidoso, ora, considerando a ofensa recebida maior do que realmente é, a nossa mente não pensa em quanto irado o outro esteja, mas o quanto mais ela pode se irar.⁵

Por fim, os estoicos dividiam as emoções em quatro grandes categorias: prazer, dor, desejo e medo.

Protoemoções

Os estoicos, em especial Sêneca, explicavam o processo afetivo em três estágios: os primeiro movimentos são aqueles fenômenos que acontecem com nosso corpo sem o nosso controle racional. Por exemplo: ficar vermelho quando se fala em público. Para Sêneca, nem mesmo toda a sabedoria do mundo poderia retirar esses vícios; eles podem ser amenizados por artifícios, mas não vencidos. Eles não passam pelo nosso julgamento, diferentemente das emoções propriamente ditas. Podemos chamar esse primeiro movimento de protoemoções, pois alguns deles simulam emoções, mas não o são. No segundo movimento, que é o momento em que acontece o julgamento do acontecimento que está diante de nós, nossa percepção do mundo é permeada por nossas crenças acerca dele; esse movimento pode ser tratado por meio da terapia estoica. A finalidade da terapia é que não sejamos enganados e não venhamos a passar por emoções danosas a nós mesmos (ou, como diriam os estoicos, contrárias à natureza). Portanto, a sabedoria estoica não lida com os “primeiros movimentos da alma” (Sobre a Ira, 1.8.2), inevitáveis e não racionais, mas com o segundo movimento da alma, que é realizado com o assentimento da razão e pode ser extirpado por esta. Por fim, vem o terceiro movimento da alma, que é o extravasar da emoção, e é quando não se tem mais controle do que está acontecendo com o nosso corpo e nossas reações emotivas. Ademais, enquanto para os estoicos a maioria das emoções precisaria ser extirpada, para Aristóteles a maioria das emoções pode e deveria ser moderada.

A finalidade da terapia é que não sejamos enganados e não venhamos a passar por emoções danosas a nós mesmos (ou, como diriam os estoicos, contrárias à natureza).

Diferenças e semelhanças: teorias cognitivas modernas

Para irmos em direção à conclusão, voltemos ao dado com o qual iniciei este artigo: a ideia de que as emoções são, pelo menos até certo ponto, interpretadas socialmente e têm uma história que tem sido sempre mais investigada, gerando a produção de uma imensa gama de estudos, coletâneas e verdadeiras histórias da emoção. Segundo David Konstan,⁶ a ideia moderna de emoção, a categoria, como é entendida nas ciências sociais hoje, pode ser rastreada desde Aristóteles, que primeiro reuniu sentimentos como raiva, amor, piedade e vergonha sob o título de pathē. Ao fazê-lo, Aristóteles identificou a categoria trans histórica da emoção, e assim os estoicos trariam outros desenvolvimentos não no sentido de progresso histórico, já que até os dias de hoje a definição do que seria uma emoção continua nebulosa, como afirmou James Russell:

Pesquisadores de emoções enfrentam um escândalo: não temos uma definição consensual para o termo – emoção – que define nosso campo. Nós, portanto, não sabemos quais eventos contam como exemplos de emoção e quais eventos teorias da emoção devem explicar.⁷

Aponta-se, assim, não para uma falha da ciência, mas para a dificuldade de se definir essa categoria que parece tão natural a nós. A psicóloga construtivista Lisa Feldman Barret faz remontar a Platão a ideia de emoções-base que todo ser humano teria inscritas no seu interior⁸ – mas, seguindo Konstan, seria Aristóteles o sistematizador da categoria. Como construtivista, Barret é veementemente contrária à ideia de emoções-base, que é um dos conceitos base dos universalistas – como Paul Ekman que, além de ter uma lista das emoções base (felicidade, raiva, desgosto, tristeza, medo e surpresa), também dedicou sua vida a estudar as expressões faciais que seriam universais e dariam sinais mensuráveis e reproduzíveis dessas emoções. Se voltarmos aos socioconstrutivistas, veremos que, para eles, existe um afeto central (core affect), o qual é um estado primitivo contínuo que varia seu valor no sujeito entre agradável/bom ou desagradável/ruim e tem uma gradação de excitação (calmo/agitado). Segundo eles, somos nós que interpretamos e conceituamos esse continuum, criando, assim, categorias conceituais de emoções que adquirimos com a experiência e a socialização. Nessa visão, as emoções se parecem com as cores que culturalmente são percebidas de maneira diferente. Por exemplo, no sistema de cores Xavante, povo indígena brasileiro, existe uma palavra para a cor “verde/amarelo/azul”: i`udzé.⁹ O mesmo ocorre com a diferença entre a nossa classificação de cores e a classificação da língua russa, que conta com uma cor a mais do que a do português.¹⁰ 

Segundo David Konstan, a ideia moderna de emoção, a categoria, como é entendida nas ciências sociais hoje, pode ser rastreada desde Aristóteles, que primeiro reuniu sentimentos como raiva, amor, piedade e vergonha sob o título de pathē.

Nos últimos anos, tem se tentado propor posições conciliatórias em vez da longa querela entre universalistas e socioconstrucionistas; ou pelo menos, tem se tentado observar quais são as maiores contribuições das duas teorias.¹¹ Por exemplo: a diversidade de descrição das emoções em diferentes sociedades sugere que a construção social desempenha um papel pelo menos tão importante quanto as emoções-base enraizadas na biologia humana. 

Longe de exaurir a questão no espaço que me é limitado, posso concluir enfatizando o quanto as antigas teorias filosóficas acerca das emoções conseguiriam contribuir com o conhecimento atual, mesmo com os avanços grandiosos das neurociências.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. A primeira obra que hoje é considerada fundadora da sub-disciplina História das Emoções é a de Peter Nathaniel Stearns e Carol Zisowitz Stearns, “Emotionology: clarifying the history of emotions and emotional standards”, American Historical Review, 90, 1985. Cf. também Douglas Cairns, Emotions through Time de Douglas Cairns, 2022.

2. É importante lembrar que em Roma e Grécia Antigas não existia um único conceito de “emoção”. Os gregos usavam, desde Aristóteles, a palavra pathē (plural de pathos) majoritariamente, que podemos traduzir por “afeição”; em latim, encontramos a palavra affectus (afeto, afeição). Por vezes, é também possível verter essas palavras para o português como “paixão”.

3. Ilsetraut Hadot, Sénèque. Direction spirituelle et pratique de la philosophie, 2014.

4. David Konstan, “Afterword”, Emotions through Time, 2022.

5. Sêneca, Cartas Morais, Ep. 13.12. A tradução aqui apresentada é de nossa autoria. Cf. Ana Azevedo Bezerra Felicio, Vestígios De Lucílio: Amizade, medo e cuidados do leitor nas 15 primeiras cartas das epístolas morais de Lúcio Aneu Sêneca. Dissertação de Mestrado, 2020.

6. David Konstan, “Afterword The Invention of Emotion?”, Emotions in Plato. 2020.

7. James A. Russell, “Introduction to Special Section: On Defining Emotion”, Emotion Review 4 (4), 2012.

8. Nos moldes do filme Divertida Mente da Pixar, 2015 ou da série de televisão Lie to me, 2009.

9. Indico a leitura do artigo fascinante de Evandro de Sousa Bonfin e Wellingston Pedrosa Quintino, “I’wamnari: as cores e a cosmologia Xavante”, Revista FSA, 10, 2013. 

10. Matheus Dal’Puppo; Gabriel Jung do Amaral; Daniel Uptmoor Pauly. “A hipótese do Cérebro Bayesiano Sustenta o Relativismo Linguístico das Cores”, SOFIA, 11, 2022.

11. Jan Pampler, “The Navigation Of Feeling: William M. Reddy ’ S Attempt To Move Beyond Social Constructivism And Universalism”, The History of Emotions : An Introduction, 2015.

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