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ENSAIO

Aparente conflito entre universidade pública e igreja*

Construção de pontes entre a igreja e o ambiente acadêmico

Maira M. Trentin, Amanda Hebling do Amaral, Nicolle Mingone |

22/06/2023

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Maira M. Trentin

Pedagoga e Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pela Unicamp, Bacharel em Teologia pela FATIPI. Integrante da Equipe Pastoral da CEU (Comunidade do Estudante Universitário) na cidade de Campinas.

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Como citar

TRENTIN, Maira M.; AMARAL, Amanda Hebling do; MINGONE, Nicolle. Aparente conflito entre universidade pública e igreja: construção de pontes entre a igreja e o ambiente acadêmico. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar-jun, 2023.

Introdução

O exercício deste ensaio é discutir o aparente conflito entre Universidade Pública e Igreja, que reside na ideia de que, ao se inserirem na primeira, os jovens tendem a se afastar da segunda. Para isso, pretendemos expor contribuições teóricas que subsidiam reflexões sobre a cultura e as mudanças de cosmovisão que buscam separar Igreja e instituições sociais – o secularismo –, bem como novas visões do engajamento da Igreja na cultura pela formação de discípulos.

Nosso objetivo é demonstrar que a Universidade e a Igreja possuem compromissos diferentes – além de complementares – e, portanto, não precisam disputar espaços. Enquanto a primeira busca responder questões teóricas e práticas nas diversas áreas científicas, a segunda busca a resposta para a questão mais fundamental da existência humana: sua origem e relação com o Criador.

Além disso, a Igreja é qualificada a partir de um motivo religioso e atemporal, diferente da Universidade Pública, que participa da organização estatal histórica e, no Brasil, limitada pela laicidade. A partir dessas diferenças, buscaremos evidenciar que a Universidade se coloca como campo fértil para ações ministeriais e formação de discípulos. Nossa conclusão converge para um diálogo entre sujeitos, estrutura social e a atividade da Igreja; enfatizando que esta tanto é a instituição eclesiástica (que é a igreja visível) quanto os cristãos reunidos (que são o corpo de Cristo, ou ainda, Igreja invisível), ocupando o espaço universitário.

Universidade pública e igreja: encontros e desencontros

Para o escopo da presente reflexão, trataremos especificamente do estudante jovem, como o perfil que mais evidencia o aparente conflito entre Universidade Pública e Igreja. Com relação à percepção comum de que, ao entrar na Universidade, o jovem se afasta de sua comunidade de fé, uma pesquisa realizada em 2017 nos Estados Unidos revela que o momento de entrar na Universidade (entre os 17 e 18 anos) é o de maior evasão das igrejas.¹ No entanto, isso não parece se dar por um abandono da fé, mas “alguns jovens evangélicos estão saindo da igreja para encontrar um espaço que compartilhe suas crenças políticas e espirituais […], e muitos encontram essa comunidade no campus”.² 

Muitos religiosos repudiam o ambiente universitário como símbolo de desvio da moral cristã. Por esse motivo, muitos jovens cristãos são desincentivados a ingressar em universidades públicas ou, quando ingressam, orientados a não se misturar com a cultura “do mundo”. Isso acaba por diminuir a influência cristã nas relações interpessoais entre estudantes, entre estudantes e professores, e também na produção do conhecimento científico. Constrói-se, dessa forma, uma narrativa de que a Universidade carrega uma “ideologia” contrária à fé cristã, colocando-a como um lugar contrário à vontade de Deus para seus jovens. 

A instituição estadunidense The Barna Group realizou uma pesquisa com duração de cinco anos (entre 2006 e 2011), com ênfase em jovens entre 18 a 29 anos, e verificou motivos que justificam a desconexão desses jovens em relação às suas igrejas.³ O primeiro deles é a tendência das igrejas de serem superprotetoras, isto é , uma aversão à cultura secular que a qualquer momento pode levá-los ao abandono da fé cristã; 23% dos jovens afirmaram que suas igrejas demonizam tudo o que está fora de seu contexto de fé. A segunda diz respeito à superficialidade da experiência na comunidade de fé, que distancia a pertinência do evangelho para assuntos relativos à carreira profissional e interesses desses jovens (24% afirmaram ser verdadeira essa postura). 

Uma estratégia utilizada por algumas igrejas para afastar os jovens da Universidade é vincular a ideia do secular às trevas, esvaziado de qualquer sentido, prazer ou relevância. Líderes religiosos levantam sua tradição de interpretação bíblica ou denominacional como referência inquestionável de cristianismo, utilizando-os como modelo para manifestação de fé e conduta daqueles que seguem a Jesus, e associando todo o restante para além dos muros de sua igreja como pertencente ao maligno. No entanto, na Universidade esse jovem encontra um contexto complexo, no qual há sentido, engajamento social e diversão, ainda que permeado por frustrações e inconsistências.

Tangente está o debate sobre a relação entre a ciência e a religião, sobre se é possível convergir-las ou se são necessariamente excludentes. Parte dos jovens cristãos na pesquisa entendem que o “cristianismo é anticiência” (25%) ou que “os cristãos são tão confiantes que acham que sabem todas as respostas” (35%). O sentimento e desejo de ser acolhido por um grupo também são representativos, dado que três em cada dez jovens entrevistados afirmaram que “as igrejas têm medo das crenças de outras religiões”, assim como sentem que são “forçados a escolher entre minha fé e meus amigos”. Por fim, 23% dos entrevistados sentem que suas dúvidas a respeito da fé não podem ser manifestadas em sua comunidade local e 36% entendem que ela não é capaz de responder a questões importantes sobre suas vidas, tratando-as superficialmente.⁴ 

As igrejas recaem, do ponto de vista dos jovens, em um modo de relacionar fé e ciência a partir de um modelo do conflito inerente entre as duas esferas. Entretanto, de acordo com Denis R. Alexander,⁵ diretor emérito do Faraday Institute, esse conflito ocorre quando ambas buscam responder questões que se inserem no domínio da outra. Nesse sentido, essa oposição só parece ser defendida por extremistas, tanto de um lado quanto do outro, que buscam expandir os limites da religião ou da ciência como explicações suficientes para toda a realidade, o que, no limite, torna inoperante a contribuição da esfera oposta.

Em contraposição a isso, Alexander defende a riqueza do modelo de complementaridade entre fé e ciência: ambas se referem à mesma realidade, ainda que sob diferentes perspectivas. As descrições que oferecem sobre a realidade se complementam ao invés de se excluírem. Mais do que isso, ambas são praticadas pelas mesmas pessoas:

tanto a ciência como a religião são atividades profundamente humanas. O cientista com crenças religiosas que trabalha na Segunda-feira com uma equipe de pesquisa na bancada de um laboratório é a mesma pessoa que adora a Deus com outras pessoas no Domingo, em uma igreja. Embora as duas atividades sejam claramente distintas, o cérebro simplesmente não foi projetado para compartimentalizar as diferentes facetas de nossas vidas, como se elas carecessem de conexões.⁶

Algumas igrejas se apropriam de uma visão conflitiva, obrigando os jovens a escolherem entre a religião e a prática científica, o que afasta os jovens das comunidades eclesiásticas em vez de os manter fora das universidades. De outro modo, as comunidades eclesiásticas poderiam buscar compreensão e engajamento com a prática científica, com suas contribuições, nas diversas áreas do conhecimento, para o conhecimento da Criação e da ação de Deus no mundo. 

Em contraposição a isso, Alexander defende a riqueza do modelo de complementaridade entre fé e ciência: ambas se referem à mesma realidade, ainda que sob diferentes perspectivas.

Alguns cientistas também assumem o modelo de conflito e determinam que a realidade só pode ser explicada por meio de métodos científicos, tratando com hostilidade qualquer pensamento que pressuponha a existência de Deus ou as Escrituras como fonte legítima de conhecimento sobre a realidade.⁷ Esse posicionamento cientificista, que não é representante da ciência, muito menos da Universidade, mas sim uma certa cosmovisão, um compromisso último do coração,⁸ ou até mesmo de um compromisso religioso com a ciência,⁹ fortalece a ideia de que há uma separação e oposição explícita e incontornável entre ciência e fé.

Universitário cristão ou cristão universitário?

O contexto do jovem ao ingressar na Universidade Pública

Mas, então, o que está acontecendo com o estudante que chega à universidade? O ingresso na Universidade Pública representa um símbolo de conquista, seja por acontecer somente após a conclusão da Educação Básica; por ser uma das primeiras grandes escolhas que este jovem faz; pela concorrência para o ingresso ser grande em virtude da pequena quantidade de vagas oferecidas; ou, ainda, por termos um contexto social no qual muitos jovens ainda são os primeiros de suas famílias a ingressar no Ensino Superior.

Em meio a uma profusão de elementos emocionais, psicológicos e culturais, a escolha do curso, a área do conhecimento ou a futura profissão tornam-se elementos secundários, apesar de importantes. Diante das novas demandas, é esperado que elementos da vida pré-universidade mudem severamente. De acordo com James K. A. Smith,¹⁰ essa nova vida acarreta em uma nova visão de mundo, que se relaciona com o tipo de pessoa que a Universidade quer produzir: “consumidores produtivos e bem-sucedidos que serão líderes na sociedade”.¹¹ Nas práticas sociais, isso implica instrumentalizar as relações como meio de atingir os próprios fins, especialmente em busca da concretização de um percurso “de sucesso”. Isso se manifesta pela busca da verdade científica, no caso daqueles que se integram mais firmemente aos meios de estudo acadêmico; pela busca pelo sucesso profissional, para os estudantes que entendem a Universidade como um espaço de aperfeiçoamento para uma profissão; e também aqueles que, nesse período, envolvem-se com a esfera política como uma forma de desenvolvimento da sociedade.

Em busca desses ideais, os universitários frequentam as muitas aulas em suas grades horárias, estudam para provas, realizam exercícios, escrevem trabalhos, participam de reuniões, encontros, eventos, e buscam aprender a linguagem mais apropriada para serem aceitos no meio em que querem se inserir. No caso dos acadêmicos, se dedicam ainda às suas pesquisas individuais, ocupando grande parte de seu tempo com os estudos. Para os profissionais, a dedicação se estende às eletivas, empresas juniores, extracurriculares, estágios etc. Para os engajados politicamente, rodas de conversa, atos, assembleias, congressos. E, a todos, a realidade das festas, dos encontros informais entre os colegas, dos espaços de divertimento e descontração apresentam um contrapeso, uma maneira de se conhecer fora do seio familiar e sobreviver às pressões do mundo universitário.

O papel da igreja nesse contexto

E a Igreja? Que visão de mundo e que tipo de pessoa a Igreja quer construir? Segundo Smith,¹² a Igreja está preocupada – ou deveria estar – em formar discípulos de Jesus e cidadãos do Reino de Deus. E “ser discípulo de Jesus […] é uma questão de ser o tipo de pessoa que ama de maneira certa”.¹³ Portanto, a visão de boa vida do cristão é o Reino de Deus: é o Reino que ele deve almejar e desejar. E, para isso, a Igreja precisa apostar em práticas litúrgicas que moldem o coração para amar, porque é essa a marca do discípulo de Cristo: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (João 13:35, NVI).

Smith define liturgia como “rituais de preocupação suprema”, ou seja, são práticas que intentam formar a identidade e construir visões particulares de boa vida, atingindo nossos amores. Assim, práticas litúrgicas não se restringem ao campo religioso, mas se estendem a todos os âmbitos da nossa vida.

Desse modo, as mudanças da vida universitária se tornam ainda mais relevantes quando falamos de jovens cristãos. Uma das bases da vida cristã é a vida em comunidade. Assim, os momentos coletivos em cultos congregacionais, estudos bíblicos, grupos de oração, atividades de cunho social, encontros de aconselhamento, entre outras, ocupam grande parte da vida de um cristão. Esse jovem cristão, portanto, passa a se ver diante de dilemas e compromissos que se sobrepõem; mas não somente isso: passa a encontrar correspondência de alguns de seus valores e de suas prioridades fora do espaço eclesiástico. Tem a oportunidade de partilhar seus desafios com outras pessoas, ouvir conselhos, se envolver em atividades estudantis comprometidas com transformações sociais, fazer parte de movimentos em prol das mais diversas reivindicações etc.

Em meio a isso, muitas narrativas começam a entrar em conflito. A cultura familiar desse jovem, as experiências vividas até este momento, o convívio com os amigos da escola ou da Igreja se deparam com um novo universo. Assim, um novo e possível conjunto de regras sociais é apresentado diante dele e, agora, as opções para definir sua identidade se ampliam.

Disputa de corações

Neste contexto de mudanças, múltiplas conexões e relações podem ser estabelecidas ou rompidas entre esses estudantes e as pessoas, o mundo e Deus. Vale mencionar que a existência dessas amplas possibilidades é característica própria da secularidade (no Ocidente), segundo Charles Taylor.¹⁴ Somente em um mundo secular a ausência de fé em Deus é uma opção viável e, mais do que isso, não é nem mesmo a opção-padrão. Nesse cenário, a fé está sempre posta em dúvida, porque existem outras opções possíveis, como o ateísmo, o cientificismo e outras cosmovisões em que basear a existência.

O papel desempenhado pela cosmovisão deveria ser como o de uma bússola, que auxilia o sujeito a discernir os acontecimentos e fenômenos de sua vida conforme ele assume uma postura de responsabilidade sobre as escolhas que faz, como um anseio de cada ser humano de possuir uma perspectiva diretiva para a vida.¹⁵ As ações do sujeito podem, todavia, ser contradizentes com suas crenças e sua cosmovisão, o que implica ao sujeito uma decisão de modificar sua cosmovisão, para que se adeque às suas novas práticas; ou a transformação de seus atos, para convertê-los para sua cosmovisão. Em ambos os casos, há uma busca por integralidade e coerência entre o crer e o agir humano.

O momento de ingresso e vivência na Universidade implica decisões a serem tomadas pelo jovem que decide orientar seus hábitos e suas decisões conforme as crenças trazidas do contexto de origem ou desenvolver novas vivências a partir da escolha de crenças que fundamentam e justificam suas práticas, em um espectro de cosmovisões disponíveis. O jovem universitário, cujo compromisso de crença é baseado com seriedade no cristianismo, toma sua crença em Deus como direcionador de suas decisões e hábitos, buscando integralidade e integridade. 

Nesse sentido, por mais que a defesa neste trabalho seja da aparência de conflito entre Igreja e Universidade, existe uma disputa ocorrendo entre a Igreja e as demais instituições – não só a Universidade, mas todos os grupos institucionais de que fazemos parte e os espaços sociais que ocupamos cotidianamente. Segundo K. J. Smith,¹⁶ porém, essa disputa não ocorre no campo do debate teórico. A Universidade não teria tentativas científicas ou racionais de desacreditar a fé cristã: trata-se muito mais de uma disputa pelo coração. Para o autor, toda instituição de que fazemos parte na contemporaneidade tem como objetivo atingir o coração, o lugar do nosso desejo para, ali, construir um ideal de boa vida, de vida plena.

Segundo K. J. Smith, porém, essa disputa não ocorre no campo do debate teórico. A Universidade não teria tentativas científicas ou racionais de desacreditar a fé cristã: trata-se muito mais de uma disputa pelo coração.

Charles Taylor¹⁷ pontua que a diferença fundamental entre crentes e descrentes se encontra na forma de experimentar a existência, por conta de dois pontos de vista concorrentes sobre a plenitude. Para os crentes, por um lado, a plenitude não se encontra e não pode ser alcançada na vida presente, mas no Reino vindouro de Cristo. Já para os descrentes, para os quais não existe algo além da vida material, a plenitude se alcança na vida presente. Essa divergência de visões se desenrola em dois modos de perceber a existência: por um lado, uma vida presente que aponta para uma vida no porvir; por outro, uma vida presente que aponta para as possibilidades existentes nela mesma.

É disso que se trata a visão de boa vida ou de vida plena: para onde queremos ir? Como vislumbramos uma vida excelente? E qual visão de ser humano se relaciona a ela? Assim, “[n]ão é o que penso que molda minha vida completamente; o que estimula minha paixão é o que desejo, o que amo”.¹⁸

Mas como esses ideais são adquiridos? Aqui se insere o conceito de liturgia do autor: por meio de práticas litúrgicas, de ritos, de hábitos incrustados que se repetem cotidianamente, cada indivíduo, participando das atividades da instituição, se apropria das visões de plenitude e passa a viver em prol de conquistá-las. Nesse sentido, são as práticas que importam, e não as ideias. São os modos de vida aos quais nos habituamos, o modo como cotidianamente experienciamos a vida, que moldam nosso coração – e não simplesmente nossas mentes – para almejar uma imagem de vida plena. Isso porque, para James Smith, somos “criaturas afetivas, dotadas de um corpo, que abrem caminho pelo mundo sentindo-o à nossa volta”.¹⁹

Essa definição implica que estamos no mundo com uma intenção, em busca de algo, e o fazemos na interação com o mundo que se dá, em primeiro lugar, de forma não cognitiva e pré-reflexiva, movidos pelos nossos desejos, por aquilo que amamos. Tais desejos são, em contrapartida, moldados pelos nossos hábitos, pelo que fazemos cotidianamente de forma tão corriqueira e repetida que se torna uma segunda natureza, algo que fazemos sem precisar pensar.

Nosso coração é direcionado, portanto, pelas práticas e pelos rituais que treinam nosso desejo: “os movimentos e ritmos das rotinas físicas treinam nossa mente e nosso coração, de modo que desenvolvem hábitos – como se fossem reflexos de atitudes – que nos levam a agir de certas maneiras, tendo em vista determinados fins”.²⁰ Para Smith, essas práticas são sempre sociais – encontram significado em grupo – e institucionais – encontram expressão nas instituições.

Portanto, podemos falar, em um mundo moderno e secular, da “natureza impregnada de religião das instituições culturais”.²¹ Desse modo, a Universidade, assim como outras instituições da modernidade, pode ser percebida como um espaço de “culto”, com seus rituais específicos e suas perspectivas de “boa vida” definidos – ou “lugares de plenitude”, como diz Taylor²² – que moldam os corações e capturam os desejos, almejando formar um certo tipo de sujeito. Não se trata, portanto, apenas de um lugar onde as ideias disputam com a cosmovisão cristã. Trata-se de um lugar onde as práticas litúrgicas diariamente nos convidam a desejar uma certa vida e agir como os sujeitos que se preparam para essa vida ou já supostamente a possuem.

No entanto, isso não significa que jovens cristãos não devam adentrar esses espaços, mas que precisam estar mais atentos para as práticas do que para o discurso: são as práticas, a convivência, os relacionamentos que mais importam. Não se trata, aqui, de um conflito em torno de ideias: as ideias cristãs versus as ideias da academia. Trata-se de uma disputa pelos corações, pelos desejos mais profundos que apontam para um ideal de vida plena e que se desenvolvem muito mais por meio da inculcação de hábitos e padrões de comportamento vivenciados em grupos do que por meio de conteúdos teóricos.

Universidade como campo de disputa 

Até aqui, discutiu-se como a Universidade disputa corações e desejos com a Igreja. No entanto, a Universidade possui um papel e uma função importantes demais para simplesmente serem descartadas pelas igrejas como local de permanência de cristãos. Como já mencionado, o conflito entre os dois espaços é aparente e se dá muito mais pela tentativa de invasão do espaço de uma pela outra. É preciso, então, identificar o propósito de cada instituição para analisar o aparente conflito que se instaura entre ambas. Cabe a cada uma reconhecer os diferentes papéis que ocupam na estrutura social, de forma que as atividades de ambas possam ser exercidas de maneira mais efetiva. 

A filosofia social de Herman Dooyeweerd oferece uma perspectiva que pode auxiliar no estabelecimento de papéis entre as igrejas locais e as universidades, a partir da soberania de cada esfera social, nos seus campos de atuação. Indo mais além, no entanto, a partir de pressupostos bíblicos, Dooyeweerd desenvolve seu pensamento sobre as instituições sociais a partir da noção de ordem criacional divina,²³ sendo cada entidade social, tais como as universidades, as empresas, as igrejas locais, com diferentes poderes decisórios e preocupações próprias de cada instituição sobre a cultura. Os diferentes aspectos da realidade (aspectos modais) elencados por Dooyeweerd em suas obras, tais como o jurídico, o linguístico e o histórico, são formas pelas quais o ser humano compreende a realidade de forma integral e conjunta, quando experienciados de forma simultânea, no cotidiano. Aplicando-se à aparente disputa em questão, não se trata, portanto, de um isolamento entre as igrejas e as universidades, de forma que a fé cristã não dialogue ou influa a produção científica: “A soberania das esferas não produz uma compartimentalização estanque ou uma divisão mecânica entre as esferas da vida. Trata-se, como temos visto, de um princípio coerente organicamente mais profundo, pois parte da unidade radical das esferas da vida”.²⁴

As esferas sociais possuem funções e princípios distintos entre si na ordem criacional, porém harmônicos, com o objetivo comum de integrar a sociedade por meio de solidariedade e compromissos mútuos. Para essa visão da filosofia social, cada esfera social está vinculada a uma função qualificante, ou seja, que aponta para o propósito que cada esfera desempenha na sociedade, o que implica uma imposição de limite de suas soberanias umas em relação às outras. Dessa forma, Universidade e Igreja, como esferas sociais distintas, possuem funções sociais e qualificações próprias, “com propósitos e competências que não anulam e substituem uma à outra, mas podem ser entrelaçadas para fortalecer uma comunidade”.²⁵ Anderson Paz, à luz da filosofia social de Dooyeweerd, considera que esferas sociais são irredutíveis umas às outras e inter-relacionáveis, concluindo-se, portanto, que Universidade Pública e Igreja ocupam papéis culturais distintos e, simultaneamente, cooperativos.

Dessa forma, apesar do aparente conflito ocorrendo entre Universidade e Igreja, ambas as instituições possuem uma função necessária e específica que não anulam ou se sobrepõem uma à outra. Pelo contrário, é possível que ambas trabalhem juntas para dar integralidade à sociedade, já que fazem parte da realidade criada por Deus e podem, cada uma em sua esfera e exercendo seu papel com excelência, contribuir para o aprimoramento uma da outra. 

Dessa forma, apesar do aparente conflito ocorrendo entre Universidade e Igreja, ambas as instituições possuem uma função necessária e específica que não anulam ou se sobrepõem uma à outra. Pelo contrário, é possível que ambas trabalhem juntas para dar integralidade à sociedade, já que fazem parte da realidade criada por Deus e podem, cada uma em sua esfera e exercendo seu papel com excelência, contribuir para o aprimoramento uma da outra.

Considerações finais

A fé cristã é comunitária e relacional. É de fato importante que cristãos se reúnam entre si, porém, é de igual importância a resposta ao ide de Jesus Cristo. Para além das igrejas locais, podemos encontrar cristãos comprometidos com o Evangelho dentro da própria Universidade, promovendo o acolhimento e a formação de comunidades de universitários que buscam integrar sua identidade de cristãos universitários.²⁶ Mencionamos aqui, dentre diversas outras ações de missão universitária, o exemplo da Aliança Bíblica Universitária (ABU), que atua em Universidades brasileiras desde 1957 a partir do princípio “estudante evangelizando estudante”.²⁷ Sobre a ação da ABU, Groppo e Borges afirmam: “na adequação à condição juvenil, o grupo destaca a vinculação à identidade de estudante da universidade, usando argumentos mais racionalistas e buscando apoiar estudantes em sua adaptação à vida acadêmica, mas dialogando com as culturas religiosa e universitária do que se contrapondo a elas”.²⁸

Comprometidos muito mais com o acolhimento e com o associativismo do que com a fé individual vivida privadamente, a ABU e outras ações similares criam comunidades emocionais, famílias de fé e grupos de auxílio aos universitários dispostos a dialogar com a cultura universitária e atuar como discípulos. Destacamos também a Associação Brasileira de Cirstãos na Ciência (ABC²) que, por intermédio dos mais de 72 grupos locais, proporcionam espaços de interação e comunhão entre pessoas que habitam simultaneamente o ambiente acadêmico e o religioso, demonstrando a possibilidade de que ciência e fé sejam desenvolvidas de forma complementar, e não conflitiva.²⁹

Por meio da convivência com aqueles que compartilham da mesma fé e das práticas litúrgicas – leitura e estudo da Bíblia, por exemplo -, cristãos universitários buscam manter a identidade de cristãos em uma instituição secular.³⁰ Além disso, buscam promover apoio e direcionamento com relação às dificuldades da rotina acadêmica e do distanciamento familiar, oferecendo, em nossa perspectiva, uma comunidade eclesiástica que ajuda a olhar para a experiência universitária com uma visão de plenitude crente³¹ ou uma imagem de boa vida cristã.³²

A busca pela integralidade e coerência entre o crer e o agir humano pode não ser o objetivo da formação acadêmica, científica ou intelectual das Universidades, mas pode ser um balizador para a missão da igreja em formar seus jovens. A partir de uma visão cristã sobre ser discípulo no mundo, não é possível reduzir as confissões de fé para dentro das paredes das igrejas locais ou sequer ignorar a soberania de Deus sobre a ciência e o conhecimento humano. A produção científica, tipicamente vinculada à atuação das Universidades, além de reunir pessoas que são alvos do discipulado, possui grande potencial como instituição formativa de cultura e criação, aspectos que apontam para o fato de sermos à imagem e semelhança de um Deus criador, criativo e sábio. 

Segundo Smith,³³ as instituições educacionais cristãs se apropriaram da noção iluminista do ser humano como ser pensante, movido pela razão, e têm se esforçado muito mais em transmitir as ideias ou a cosmovisão correta da fé cristã, dando pouca importância às práticas que moldam nossos desejos. O mesmo fenômeno pode ocorrer nas igrejas locais, nas escolas missionárias, nos seminários de formação teológica etc. Isso abre espaço para o perigo de a Igreja se deixar moldar por padrões externos, de incorporar modos de vida e práticas litúrgicas de outras instituições – por vezes com o objetivo de se tornar “atrativa” para os jovens -, ignorando que são as práticas, justamente, que moldam os corações e direcionam o desejo. 

Nesse sentido, a diferença de objetivo e de sentido entre Igreja e Universidade fica enevoada: qual a diferença entre ser um cristão universitário e um universitário cristão se a liturgia dos dois ambientes é a mesma? Partindo da análise de James Smith,³⁴ devemos perguntar: as igrejas têm formado discípulos que desejam o Reino e não se deixam ser moldados por outras práticas litúrgicas? Mais do que isso: as igrejas têm preparado missionários para o meio universitário conscientes do poder do hábito em tornar corações desejosos de uma certa plenitude?

À vista disso, defendemos que seria mais frutífero para as igrejas locais enviarem às universidades os mais virtuosos estudantes e pesquisadores, realmente comprometidos com um telos cristão, em vez de distanciarem seus jovens desse contexto social. Encarar com seriedade a manifestação pública da fé e a missão como chamado de todo cristão tem implicações em nossa prática cotidiana que ainda não assumimos com a devida responsabilidade.

À vista disso, defendemos que seria mais frutífero para as igrejas locais enviarem às universidades os mais virtuosos estudantes e pesquisadores, realmente comprometidos com um telos cristão, em vez de distanciarem seus jovens desse contexto social.

Por fim, apontamos que existem duas visões de boa vida concorrentes, e a Igreja, por si só, corre o risco de enviar os jovens para a Universidade para se tornarem bons profissionais e acadêmicos, e não bons discípulos. Não se trata de declarar uma guerra cultural, com vistas a transformar o ambiente universitário e dominar o campo da cultura, mas sim de promover uma vivência comunitária, como Corpo de Cristo, de discípulos que buscam viver para o Reino, desejando o Reino, no interior das Universidades. E é por meio dessa experiência de vida diferenciada que os cristãos universitários atraem os olhares dos descrentes e os envolvem em uma nova disposição do coração: não para o sucesso acadêmico ou profissional, mas para se tornarem pessoas que amam.³⁵

Na ocasião do confronto entre Igreja e ambiente universitário, estendemos à Igreja o convite para olhar para a Universidade como um local fértil para ações ministeriais. Tendo-se uma Igreja que ama e serve a cidade, esse olhar pode ser ampliado inclusive para as fragilidades da Universidade: no suprimento das necessidades de estudantes, funcionários e professores; no preparo de seus jovens para vivenciar um curso de Ensino Superior e lidar com aquele espaço como seu campo missionário; na elaboração de projetos de incentivo e interação entre membros da Igreja e estudantes que estão afastados de seus familiares, em fase de intensa construção e definição de identidade. Dessa forma, não somente será constatado que o conflito entre ambas é aparente, como também a Igreja irá corresponder ao seu chamado no mundo, amando e servindo as pessoas na Universidade.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

Referências

ALEXANDER, Denis R. Modelos para relacionar Ciência e Religião. Cristãos na Ciência, 2017. Clique aqui para acessar.

ALIANÇA BÍBLICA UNIVERSITÁRIA. História. s/d. Clique aqui para acessar.

ASSI, Gustavo.  A força da ABC² está em seus grupos locais. Cristãos na Ciência, 2018. Clique aqui para acessar.

BARNA GROUP. Six reasons young christians leave church. Barna, 2011. Clique aqui para acessar.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. Brasiliense: 2017.

DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania. São Paulo: Editora Vida Nova, 2014.

DULCI, Pedro. O problema da ciência é o cientificismo. Ultimato, 2018. Clique aqui para acessar.

GROPPO, Luís Antonio; BORGES, Lívia Furtado. Grupo Evangélico na Universidade: práticas formativas, identidade religiosa e práticas políticas. Em: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(3): 173-196, 2018. Clique aqui para acessar.

MADUREIRA, Jonas. Inteligência humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.

NOVAIS, Tiago de Melo. Tradição e teologia pública neocalvinista: descrições e análises comparativas no contexto da contemporaneidade. Orientador: Breno Martins Campos. 2021. 148f. Dissertação (Mestrado) – Ciências da Religião, Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2021. Clique aqui para acessar.

PAZ, Anderson. Introdução à filosofia social em Herman Dooyeweerd: Estado, Sociedade Civil e vínculos intercomunitários. Em: Tabulæ – Revista de Philosophia, 2022. Clique aqui para acessar.

SMITH, James K. A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, 2018.

TAYLOR, Charles. Introdução. Em: A Era Secular. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2010, pp. 13-37.

THEODORO, Daniel. Por que e quando os jovens saem da igreja. Ultimato, 2019. Clique aqui para acessar.

WOLTERS, Albert M. A Criação Restaurada. A base bíblica da cosmovisão reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.

 

Co-autoras:

Amanda Hebling do Amaral 

Bacharel em Sociologia, Licenciada em Ciências Sociais e Mestranda em Sociologia pela Unicamp. Co-líder do grupo local da ABC² em Campinas.

Nicolle Mingone

Bacharela em Direito pela FACAMP – Faculdades de Campinas, Advogada (OAB/SP) e aluna da Escola de Teologia e Vida Cristã do L’Abri Brasil.

* Ensaio com menção honrosa na 1ª Chamada do Radar ABC².

1. THEODORO, Daniel. Por que e quando os jovens saem da igreja. Ultimato, 2019. Clique aqui para acessar.

2. Ibidem.

3. BARNA GROUP. Six reasons young christians leave church. Barna, 2011. Clique aqui para acessar.

4. Ibidem.      

5. ALEXANDER, Denis R. Modelos para relacionar Ciência e Religião. Cristãos na Ciência, 2017. Clique aqui para acessar.

6. Ibidem.

7. MADUREIRA, Jonas. Inteligência humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.

8. Ibidem.

9. DULCI, Pedro. O problema da ciência é o cientificismo. Ultimato, 2018. Clique aqui para acessar.

10. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, 2018.

11. Ibidem, p. 120.

12. SMITH, 2018.

13. Ibidem, p. 33.

14. TAYLOR, Charles. Introdução. Em: A Era Secular. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2010, pp. 13-37.

15. WOLTERS, Albert M. A Criação Restaurada. A base bíblica da cosmovisão reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2019.

16. SMITH, 2018.

17. TAYLOR, 2010.

18. SMITH, 2018, p. 51.

19. Ibidem, p. 47.

20. SMITH, 2018, p. 59.

21. Ibidem, p. 23, grifo do autor.

22. TAYLOR, 2010.

23. DOOYEWEERD, Herman. Estado e Soberania: ensaios sobre cristianismo e política. São Paulo: Vida Nova, 2014. 

24. Ibidem, p. 95.

25. PAZ, Anderson. Introdução à filosofia social em Herman Dooyeweerd: Estado, Sociedade Civil e vínculos intercomunitários. Em: Tabulæ – Revista de Philosophia, 2022. Clique aqui para acessar.

26. GROPPO, Luís Antonio; BORGES, Lívia Furtado. Grupo Evangélico na Universidade: práticas formativas, identidade religiosa e práticas políticas. Em: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38(3): 173-196, 2018. Clique aqui para acessar.

27. ALIANÇA BÍBLICA UNIVERSITÁRIA. História. s/d. Clique aqui para acessar.

28. GROPPO; BORGES, 2018, p. 178.

29. ASSI, Gustavo.  A força da ABC² está em seus grupos locais. Cristãos na Ciência, 2018. Clique aqui para acessar.

30. GROPPO; BORGES, 2018.

31. TAYLOR, 2010.

32. SMITH, 2018.

33. Ibidem.         

34. SMITH, 2018.

35. Ibidem.         

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