QUEM SOMOS

ENSAIO

Biofilia, pais de pets e mandato cultural*

Lucas Alves|

27/10/2023

Screenshot 2023-10-27 at 14.08.41

Lucas Alves

Pastor em Santa Catarina, biólogo e teólogo. Há 10 anos, casado com Déborah, e temos três filhos: Heitor, Estêvão e Liz. Meu propósito é unir fé e ciência, buscando glorificar Deus na investigação da natureza.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Alves, Lucas. Biofilia, pais de pets e mandato cultural. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Definição de biofilia, seus usos e aplicações

O conceito de biofilia pode ser uma novidade para muitos, mas vem ganhando mais destaque em virtude da ênfase que a sociedade contemporânea têm dado a pautas voltadas à ecologia e preservação ambiental. A teoria foi criada pelo biólogo Edward O. Wilson em seu livro Biophilia, publicado em 1984. A hipótese de Wilson é que o ser humano tem uma tendência natural de se conectar com a natureza e que a privação desse contato pode reduzir drasticamente sua qualidade de vida.¹ Isso explicaria comportamentos como apreciar a brisa do mar, visitar parques ecológicos e respirar ar fresco. Ter animais de estimação ou transformar pequenos apartamentos em florestas suspensas seriam formas de encontrar prazer na natureza. Em resumo, é essencial que os seres humanos interajam com outras formas de vida em nosso planeta, em vez de apenas conhecê-las teoricamente.

Salienta-se que, embora a hipótese da biofilia ainda careça de provas científicas, as inúmeras observações de alteração de comportamento humano decorrente de um afastamento exacerbado do contato com a natureza reforçam a sua razoabilidade.

Inúmeros dados relacionados à saúde mental, especialmente de crianças, estimularam o surgimento de conceitos como Transtorno de Déficit da Natureza.² A expressão não é clínica ou científica, no entanto, é um desdobramento natural do conceito de biofilia e é amparada em vários dados clínicos, tais como a ocorrência de melhora em crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em virtude do contato direto com a natureza.³

Mesmo que não explicitamente, o princípio da biofilia também tem sido bastante empregado em diversas áreas do conhecimento, como no ramo da psicologia, que tem se desenvolvido progressivamente, chamado de Psicologia Ambiental. Essa área de estudo tenta explorar a relação do ser humano com o meio em que ele está inserido e, assim, propor opções para melhorar essa interação com a natureza.⁴ Na literatura científica, inclusive, há evidências de que pacientes que enfrentam problemas de saúde mental podem melhorar seu quadro aumentando o tempo semanal em áreas públicas, como parques ecológicos. Alguns países, como a Inglaterra, já implementaram grandes programas relacionados a essa pauta, como o Programa Nacional de Prescrição da Natureza.⁵ Porém, tal tratamento deve ser utilizado como um complemento aos procedimentos médicos convencionais de saúde mental e não substituí-los.

A falta de evidências quantificáveis sobre a biofilia levanta questionamentos sobre seus limites. Por exemplo, a topofilia apresenta-se como uma segunda explicação para essa afetividade humana pelos ambientes naturais e sugere que as experiências e os afetos humanos são moldados pelos lugares ao longo da vida. Nessa análise, o lugar ideal para viver varia de acordo com cada cultura, e até mesmo a concepção de “vida após a morte” pode indicar o modelo de vida perfeito, refletindo as paisagens vivenciadas durante a vida. Sumariamente, de acordo com a tese da topofilia, os seres humanos tendem a projetar um lugar no “além vida” próximo às suas experiências com paisagens locais.⁶

Considerando que várias áreas têm debatido a hipótese de Wilson, este ensaio propõe uma análise dos seus pressupostos à luz de uma cosmovisão cristã. Wilson observou que a conexão intrínseca entre os seres humanos e outras formas de vida era pouco explorada pela filosofia e religião, mas reconheceu o potencial da biologia moderna em abordar essa questão devido ao seu modelo epistemológico.⁷ Neste trabalho, será estabelecido um diálogo entre Wilson e a interpretação da teologia reformada sobre o inatismo sugerido pela biofilia, considerando as conexões relevantes entre o conceito de biofilia e a criação segundo a narrativa bíblica. Essas ligações podem enriquecer a compreensão contemporânea sobre a ecoteologia, a relação humana com os animais e a explicação cristã para nossa afinidade com a natureza.

A possibilidade da biofilia inerente à criação

Quando se discute a relação entre o ser humano e a natureza no contexto da cosmovisão cristã, é comum encontrar desconfiança. Isso ocorre porque algumas religiões pagãs tendem a exagerar na valorização da natureza, chegando a adorar seus elementos como divindades. No entanto, o cristianismo tem a prática histórica de “desdeificar” a natureza, provendo os pressupostos e as motivações para o progresso da ciência, e não  a prática de rejeitar conceitos científicos em favor de  uma possível interpretação idólatra.⁸

Para construir essa ponte, é importante voltar às origens da humanidade, segundo a perspectiva bíblica e observar o que a Escritura revela sobre o contato do ser humano com o restante da natureza. Porém, é importante salientar que essa conexão precisa ser tratada com cautela e atenção, já que Wilson não tinha a intenção de estabelecê-la e nem foi influenciado pela cosmovisão cristã.

Segundo o relato bíblico, foi no sexto dia da criação que os seres humanos foram criados. Mas não foram criados como outros seres vivos, tais como vegetação (3º dia), peixes e aves (5º dia) ou animais terrestres (também no 6º dia). O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, e, por isso, recebeu uma bênção especial da parte do seu Criador. Essa é a perspectiva que se entende a partir da leitura de Gênesis 1.27-31 (ARA):

Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra, e a todas as aves dos céus, e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez. Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia.

Fica patente na leitura do texto que o ser humano não só tinha autoridade sobre a criação, mas também dependia de maneira intrínseca dos elementos naturais para o seu desenvolvimento. A ênfase no texto não é necessariamente o prazer ou afetividade. No entanto, fica evidente uma necessidade de conexão do ser humano com o meio, o que reflete a proposição central da biofilia.

Examinando mais detalhadamente, no entanto, fica claro que, além de mera interação, elementos de amor e afeto entre o ser humano e o restante da criação são perceptíveis. Desde o início da história bíblica, o contato do ser humano com a natureza torna impossível uma indiferença em relação às demais formas de vida criadas por Deus. Se Deus considerava Sua criação “boa”, o ser humano, criado à Sua imagem e semelhança, certamente encontraria prazer em cada elemento da criação. Colocado no jardim, o homem desfrutava do constante contato com animais e plantas. Além de ser responsável por zelar pela criação, o homem recebeu a primeira função de classificar as espécies animais, o que exigia uma proximidade com esses seres que se tornaram objetos de estudo e análise para Adão. Portanto, podemos afirmar que, além da necessidade de interagir com a natureza, há também uma relação de prazer e afetividade entre o homem e a criação divina, corroborando ainda mais a possibilidade de uma biofilia estabelecida por Deus.

Comentando Gênesis 2.15, Calvino afirma:

O SENHOR Deus pegou o homem e o colocou no Jardim do Éden para lavrá-lo e cuidar dele[…] Este trabalho foi verdadeiramente agradável e cheio de deleite, inteiramente livre de todos os problemas e cansaço.⁹

podemos afirmar que, além da necessidade de interagir com a natureza, há também uma relação de prazer e afetividade entre o homem e a criação divina, corroborando ainda mais a possibilidade de uma biofilia estabelecida por Deus.

O fato de Deus criar o trabalho não só como uma forma de o homem se sustentar, mas também como uma forma de encontrar prazer e satisfação, parece ser a chave para a compreensão da relação entre o ser humano e a ecologia do jardim. Se o trabalho com a natureza despertava a satisfação do ser humano desde os seus primórdios, isso é uma evidência necessária para se afirmar que Deus criou os seres de modo a terem o afeto do primeiro casal.

Essa afetividade, inclusive, não desaparece da natureza humana depois da entrada do pecado no mundo, apesar de ser inegável que esse evento maculou essa relação, que se tornou confusa e ambígua, trazendo satisfação e fadiga. É como se a ecologia da Terra fosse parcialmente dependente da moralidade humana¹⁰ e, portanto, qualquer impacto ambiental causado pelo homem torna-se um lembrete constante do pecado original cometido contra Deus. Apesar do gemido da criação, ironicamente o homem não consegue simplesmente se isolar da natureza, dependendo dela constantemente.

Cabe aqui uma observação importante sobre as questões sacrificiais no Antigo Testamento. Pode-se argumentar que o fato de Deus exigir sacrifícios de animais mostra que o Criador considera tais seres irrelevantes para a ordem criacional. No entanto, tal afirmativa ignoraria a razão da existência do sacrifício, tanto em seu caráter simbólico quanto tipológico.¹¹ Os animais eram usados como substitutos dos humanos, assumindo a punição destinada aos pecadores. Assim, a questão da morte não estava relacionada à importância dos animais na criação, mas sim às consequências das ações humanas. Por isso, o sacrifício de animais era realizado de maneira metódica e cerimonial, e não se tratava de uma matança indiscriminada. Os animais oferecidos não podiam apresentar deformidades físicas resultantes de maus tratos, conforme descrito no texto de Levítico 22.24-25 (ARA):

Não oferecereis ao Senhor animal que tiver os testículos machucados, ou moídos, ou arrancados, ou cortados; nem fareis isso na vossa terra. Também da mão do estrangeiro nenhum desses animais oferecereis como pão do vosso Deus, porque são corrompidos pelo defeito que há neles; não serão aceitos a vosso favor.

Para reforçar que a valorização dos animais existia a despeito do sistema sacrificial do Antigo Testamento, basta observar a vida do rei Salomão que estava inserido no sistema de sacrifícios e, no entanto, se dedicava ao estudo do que hoje chamamos de zoologia e botânica, tal como descrito em 1Reis 4.33 (ARA):

Discorreu sobre todas as plantas, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que brota do muro; também falou dos animais e das aves, dos répteis e dos peixes.

Qual a motivação do rei Salomão para estudar plantas e animais? Talvez a resposta seja a mesma para o impulso que os seres humanos têm em conhecer profundamente as espécies de plantas criadas na sacada do apartamento: um interesse intrínseco pela natureza, um desejo constante de manter contato com ela e se deleitar com aquilo que Deus fez. Isso poderia muito bem ser definido como biofilia.

Inclusive, Wilson escreve algo semelhante em sua obra, onde explica que o interesse humano por explorar novas formas de vida e novos locais é quase como um combustível para a nossa busca por conhecimento. Porém, sua explicação é resultado de uma análise evolutiva, como se essa afetividade e interesse pela natureza tivesse sido desenvolvida ao longo da história da evolução humana.¹² Analisando, no entanto, por uma cosmovisão cristã, a busca pelo desconhecido já é a procura daquilo que nos foi parcialmente revelado.

Qual a motivação do rei Salomão para estudar plantas e animais? Talvez a resposta seja a mesma para o impulso que os seres humanos têm em conhecer profundamente as espécies de plantas criadas na sacada do apartamento: um interesse intrínseco pela natureza, um desejo constante de manter contato com ela e se deleitar com aquilo que Deus fez.

Com respeito ainda ao rei Salomão, pode-se destacar um trecho do livro de Provérbios 12.10 que reforça a tese da biofilia: “O justo atenta para a vida dos seus animais, mas o coração dos perversos é cruel”. Aqui, há uma descrição sobre o cuidado que o homem justo deve ter com seus animais. É possível identificar que o tratamento atencioso com os animais que estão sob a tutela do ser humano é uma característica que os distingue dos homens perversos.

Portanto, a falta de interesse e amor pela criação é, na verdade, uma subversão da ordem criacional. Nesse sentido, o pecado desumaniza o homem de tal maneira que alguns maltratam os seres criados, afastando-se cada vez mais da harmonia com a Lei de Deus e os ecossistemas à sua volta.

Em contrapartida, a Bíblia também aborda uma tendência do ser humano em perverter a criação a ponto de idolatrar seus elementos. O texto que mais claramente fala sobre essa tendência do ser humano à idolatria para com os seres criados é o de Romanos 1.22-23 (ARA):

Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis.

É possível identificar que o tratamento atencioso com os animais que estão sob a tutela do ser humano é uma característica que os distingue dos homens perversos.

Neste texto, é possível notar que a rebelião humana contra Deus os levou a trocar (como sugere a expressão original – ἤλλαξαν “ēllaxan“) a glória que deveria ser dirigida a Ele pela semelhança de um homem corruptível, ou seja, o que está ao alcance humano, como os animais. Traduzindo esse conceito para os propósitos deste ensaio, pode-se entender que, quando um ser humano se depara com um cachorro abanando o rabo, um gato se esfregando em suas pernas ou um papagaio imitando uma palavra, devia-se glorificar o nome de Deus e adorá-lo. No entanto, o coração manchado pelo pecado tende a se curvar diante dessas criaturas, depositando nelas um amor que não lhes é devido.

Ao adorar a criação como divindade, o ser humano subverte a lei de Deus e cai em contradições. Isso pode ser observado em exemplos históricos, como o dos Incas que divinizavam elementos da natureza, mas ao mesmo tempo cometiam sacrifícios humanos,¹³ ou os nazistas, que tinham uma forte fixação por cachorros, mas cometeram atrocidades no holocausto.¹⁴ Essa subversão também pode ser vista em situações cotidianas, quando alguém pode se comover mais com o cachorro magro de uma pessoa em situação de rua do que com o seu tutor também faminto. Assim, o amor pelas criaturas não pode levar o homem a desvalorizar a humanidade, criada à imagem e semelhança de Deus.

Esses comportamentos demonstram que, mesmo de forma idólatra, há na  natureza humana um desejo intrínseco pela criação, como um resquício do anseio de glorificar a Deus por meio do seu relacionamento com ela. A ideia de Paulo em Romanos 1.20 é esta: uma percepção do homem que revela a presença de Deus.

Paulo nos diz que é possível ter conhecimento básico da existência de Deus por meio das coisas que foram criadas. O argumento é muito forte, pois a palavra grega que ele usou e que foi traduzida por “coisas criadas” é a palavra poihma, poiema. Ou seja, a natureza é o poema de Deus para que todos os seres humanos tenham a percepção da existência do Deus Criador.¹⁵

Com isso, vimos argumentos bíblicos e teológicos que reforçam a possibilidade de se ver o princípio da biofilia à luz da Escritura. Tanto o homem tem interesse pelos seres criados, quanto a criação tem características que despertam o interesse do ser humano por ela a ponto do salmista se maravilhar com essas obras: “Que variedade, Senhor, nas tuas obras! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas.”¹⁶

Uso da biofilia para ecoteologia

Abraham Kuyper foi um dos teólogos que melhor trabalhou o conceito da interação entre o homem e o restante da criação. Para ele, a bênção de Deus sobre a humanidade mostrava que esta tinha o potencial de interagir com o mundo criado produzindo cultura. Essa interação é comumente chamada de “mandato cultural”. A ideia de Kuyper é que esse mandato não se limitava apenas ao primeiro casal, Adão e Eva, mas se estendia por toda a sua descendência, mesmo após a Queda.¹⁷ A partir desse momento, a humanidade enfrentou conflitos éticos com relação à sua responsabilidade natural, de forma que o respeito que o homem tem pela criação de Deus é o que determinaria a qualidade de sua interação com ela.¹⁸ Tal situação só não chega a níveis extremos devido a graça comum que apesar de não ser uma graça regeneradora ou eletiva auxilia o homem na busca de paz em sua interação com a criação.¹⁹

Em geral, a teologia reformada tem sido amplamente influenciada pela visão kuyperiana de mundo, no entanto, há de se admitir que, desde a época de Kuyper (entre os séculos 19 e 20), as discussões quanto às questões ambientais avançaram e se desenvolveram significativamente. Questões sobre aquecimento global, necessidade de preservação dos grandes biomas, poluição marinha, derretimento das calotas polares, tinham pouca ou nenhuma relevância à época de Kuyper, porém, ganharam destaque na história recente da humanidade.

Portanto, o que se propõe nessa altura é o desenvolvimento de uma Ecoteologia²⁰ reformada que se baseia na programação original de Deus concernente à sua proximidade, simpatia e interação com os seres vivos. Para isso, é apresentado um diálogo com autores da tradição neocalvinista holandesa, mas, também, um pouco da visão de James Gustafsson.

Essa possibilidade de conexão só pode existir por conta da própria perspectiva que Kuyper defendia. Para ele, apesar de existir uma embate direto entre a cosmovisão cristã e a pagã, os ímpios podem desenvolver pensamentos benéficos à sociedade, e isso só é possível porque a graça comum de Deus contrabalanceia as divergências, propiciando um diálogo entre ideias sem abrir mão da matriz de pensamento cristão. Falar de uma biofilia inata à criação de Deus seria, então, o exercício de uma ciência regenerada, honrando, assim, o legado de Kuyper.²¹

Kuyper e outros representantes do neocalvinismo holandês, como Herman Bavinck, reconheciam que Deus estendia Sua graça a toda a criação. Eles afirmavam que a redenção por intermédio de Cristo também se estendia aos elementos criados que foram afetados pela Queda. Segundo essa visão, embora o povo de Deus tivesse prioridade na redenção, o restante da criação também seria redimido. Assim, essa perspectiva de mundo está intimamente ligada a uma preocupação ecológica fundamentada nas Escrituras.²²

Vale ressaltar que Bavinck não propõe uma equiparação do homem com o restante da criação, mas a sua primazia,²³ e essa primazia obviamente pressupõe uma superioridade, não significando dissociação completa. Em paralelo, a hipótese da biofilia levanta a ideia de que a simpatia do homem pela natureza é uma necessidade intrínseca. Pode-se dizer que a primazia que o homem tem em relação à criação presume, nas duas visões, a afetividade exposta no relacionamento dos homens uns com os outros e com as demais formas de vida do planeta.

Essas perspectivas que reconhecem a primazia e responsabilidade ética do ser humano em relação à criação oferecem uma base sólida para a aceitação do conceito de biofilia. Ao compreendermos a afinidade intrínseca do ser humano com a natureza, a necessidade de preservação e cuidado pela saúde física e mental, encontramos uma coerência com a visão neocalvinista da redenção e com a estrutura conceitual de criação-queda-redenção. Essa síntese nos leva a abraçar a biofilia como uma expressão da responsabilidade e do cuidado cristão pela criação de Deus, buscando uma vida harmoniosa e sustentável.

É possível considerar que o mandato cultural ganha mais significado quando se reflete que a relação humana com o mundo criado não é apenas uma escolha cultural, mas sim uma consequência direta da dependência do ser humano, como vice-regente da criação, de outras formas de vida criadas por Deus.

Isso de maneira nenhuma é uma tentativa de diminuir o homem, mas, ao mesmo tempo, é uma demonstração clara de que o ser humano não é o centro do universo. Esse é um erro comum dentro da teologia, ou seja, enxergar que todo o mundo está a serviço da humanidade. No entanto, quando atentamos para a verdade da Escritura, vemos algo diferente. O texto de Deuteronômio 10.14 expõe que Deus é o possuidor de todas as coisas, ou seja, que a centralidade de toda a criação está em Deus e não na humanidade.

É possível considerar que o mandato cultural ganha mais significado quando se reflete que a relação humana com o mundo criado não é apenas uma escolha cultural, mas sim uma consequência direta da dependência do ser humano, como vice-regente da criação, de outras formas de vida criadas por Deus.

É nesse ponto de vista que James M. Gustafson expõe a necessidade de enxergarmos o padrão da moral e da ética, inclusive relacionado à natureza, como algo fora do homem, a dizer, em Deus, pois ele é o Criador que cuida e zela por toda a sua criação de maneira amorosa.²⁴ Gustafson nos oferece uma perspectiva valiosa para a intersecção entre a biofilia e a ética cristã, visto que suas visões ético-teológicas são propostas que priorizam a teocentricidade dos argumentos.²⁵ Usando esse parâmetro, pode-se dizer que a biofilia é notada inclusive no próprio Deus, uma vez que ele ama e cuida de Sua criação e, a partir do fundamento da perspectiva da imagem e semelhança, é possível compreender a origem do anseio humano pela criação.

Ao considerar a biofilia juntamente com a perspectiva teocêntrica que Gustafson oferece pode-se ter uma base sólida para a discussão ética nesse contexto. A visão de que Deus é o centro de toda a criação nos lembra da responsabilidade moral de cuidar e preservar a vida na terra. Essa abordagem traz à tona a importância de uma ética cristã que inclua a proteção da biodiversidade, a promoção do bem-estar animal e a busca por práticas agrícolas sustentáveis.

Nesse sentido, entende-se que a afetividade do ser humano pela natureza é algo indispensável para o entendimento e o exercício de uma boa ecoteologia, visto que:

[as] condições de dependência do homem sobre o resto da natureza são tais que a violação deles leva a ameaças ao bem-estar humano e, em casos extremos, a ameaças à sobrevivência humana.²⁶

Em vista disso, a biofilia pode ser entendida como um conceito fundamental, destacando a necessidade de uma conexão saudável e respeitosa com a criação, reconhecendo a importância vital do equilíbrio entre o ser humano e o ambiente natural que o cerca.

Novos padrões de afetividade

Considerando as mudanças sociais e culturais que têm impactado a relação entre os seres humanos e o meio ambiente, é possível relacionar a importância atribuída à criação com os princípios fundamentais da biofilia. Enquanto o princípio de mandato cultural destaca a necessidade de uma conexão saudável e respeitosa com a criação em geral, também faz-se necessário que essa perspectiva se aplique à uma abordagem específica à nova configuração do mundo, na qual os animais e plantas têm convivido com os seres humanos de maneira bem diferente em relação às gerações anteriores. Essas mudanças de contextos mostram a necessidade de enriquecer a discussão sobre mandato cultural, e, nessa direção, mais uma vez a biofilia pode ajudar.

Uma das questões que não foram concebidas por Kuyper à época em que o conceito de mandato cultural foi desenvolvido diz respeito ao relacionamento dos seres humanos com animais e plantas domésticas. Diferentes fatores, tais como a entrada da mulher no mercado de trabalho e a mudança no ritmo da vida urbana, têm transformado os padrões de lazer, consumo e afetividade. Anteriormente, a atenção era direcionada às crianças, mas agora é direcionada aos animais e plantas. Nessa nova configuração do mundo, a criação parece ter alcançado um status de protagonismo, tornando-se alvo de demonstrações extremas de carinho por parte de seus cuidadores.²⁷

Essa análise do mundo atual só reforça a relação do desejo inato do ser humano com a natureza e o mandato cultural. No presente, temos a consciência de que a troca da glória de Deus por elementos da criação não é um fenômeno limitado a povos de religiões animistas, mas sim algo cada vez mais presente em nosso mundo contemporâneo. Isso pode ser observado no mercado de pets, revelando as expectativas elevadas que as pessoas têm em relação aos seus animais de estimação, o que pode ser visto como um resultado de uma biofilia manchada pelo pecado. Por exemplo, em algumas situações, uma decepção com um ser humano pode levar alguém a afirmar que prefere cachorros a pessoas. No entanto, tal postura compromete uma visão bíblica que afirma que aquele que não desampara o ser humano é Deus, e não qualquer animal doméstico (por exemplo, Salmo 145.18-19).

Não se está afirmando que todo tipo de afeto direcionado a animais de estimação ou plantas seja desproporcional. Brincar e chamar o cachorro de “filho” com amor e descontração não implica necessariamente pecado. Contudo, algumas condutas podem ser um sinal evidente de que se está ultrapassando limites estabelecidos pela Escritura. As redes sociais têm potencializado significativamente esse recorte da sociedade, permitindo que indivíduos publiquem fotos de seus animais de estimação, de sua horta, de suas árvores do quintal e até mesmo de plantas ornamentais com legendas variadas, tais como: “amor verdadeiro”, “quase humano”, “minha terapia”, entre outras. Essa relação com a criação é tão emocional que em tempos passados só poderia ser direcionada a outro ser humano ou até mesmo a Deus.

Os termos “pais de pets” e “pais de plantas” evidenciam que o interesse humano pela criação pode atingir níveis excessivos. Visto que afeta os padrões de Gênesis 1, a associação entre paternidade/maternidade e a criação de animais e plantas mostra-se uma afronta aos valores cristãos e uma ameaça à moralidade. Reconhece-se a existência de exageros na relação entre humanos e animais de estimação e plantas, porém, é importante evitar críticas desmedidas que possam desconsiderar a importância desses seres vivos e o dever humano de exercer o mandato cultural em relação à criação de Deus

Em um outro lado do espectro, há aqueles que simplesmente desacreditam e desprezam as pautas e reivindicações ecológicas, mas não entendem que, ao desprezá-las, além de negar sua responsabilidade criacional, também negam a sua própria essência que é criada para se relacionar e interagir com a natureza. Nesse sentido, o desprezo pela preservação seria a negação de nossa própria humanidade, e esse é o motivo pelo qual  “toda a criação geme e suporta angústias até agora”.

A biofilia pode ser o caminho para compreendermos que reivindicações ecológicas precisam ser feitas como um ato de adoração ao Deus criador tanto quanto como um anseio legítimo por completude, visto que, sem a criação de Deus, ficamos deslocados, já que fomos feitos para zelar por ela.  A luta pelo direito dos animais, pela preservação de biomas globais, pela busca de recursos renováveis e desenvolvimento de energias limpas tem, portanto, o fator da simpatia pela criação divina como sua força motriz.²⁸

A biofilia pode ser o caminho para compreendermos que reivindicações ecológicas precisam ser feitas como um ato de adoração ao Deus criador tanto quanto como um anseio legítimo por completude, visto que, sem a criação de Deus, ficamos deslocados, já que fomos feitos para zelar por ela.

No entanto, para fazer a leitura correta, é necessário enxergar o universo como criado, e não autônomo; do contrário, as conclusões serão simplesmente erradas. Para Wilson, o futuro dos movimentos de conservação ambiental precisa evoluir para uma questão moral, a fim de que haja um amadurecimento da filosofia juntamente com as recentes descobertas da biologia, e, assim, seja possível  expor a conexão intrínseca entre seres humanos e o restante da natureza.²⁹ Como a visão do biólogo é naturalista, suas conclusões inevitavelmente desembocaram em uma perspectiva paganizada na qual Deus é um mito e o acaso se torna a divindade. Por que então não propor uma conexão intrínseca relacionada à teologia, a fim de que amadureçamos também a nossa posição em relação à preservação do meio ambiente, fugindo da ideia de que se trata apenas de uma tendência pagã ou então secularizada de nosso tempo?

Entendemos então que, mesmo que haja riscos associados ao interesse pelo mundo natural, este não deve ser negligenciado. Como mencionado anteriormente, a Bíblia enfatiza a importância da dependência e do contato humano com a natureza. Além disso, Deus cuida dos seres que criou e os considerou bons (como em Salmos 11.5 e Gênesis 1.21 e 25). O desejo inato do ser humano pela natureza é um reflexo da criação de Deus e é tão forte que não pode ser suprimido, mas deve ser direcionado de forma adequada para que possamos entender nossa verdadeira responsabilidade em relação a esse mundo criado.

Conclusão

A Bíblia não ensina que pessoas são pais ou mães de animais, mas as define como zeladores da criação de Deus. Tal afirmação não desconsidera o afeto e o desejo que as pessoas possam ter pelos seres vivos, mas os resgata de maneira verdadeira. Dizer que o ser humano depende da interação com os outros seres vivos é, portanto, construir uma ecoteologia teocêntrica que, sobretudo, se baseia no fato de que Deus cria tudo de forma completa e codependente. Por isso, essa discussão deve ser mais profunda e relacional, indo além de permitir ou não que um animal durma na cama ou se se deve chamar ou não o cachorro de filho.

Esse debate necessariamente precisa perpassar aspectos redentivos. Nessa direção, entende-se que, assim como a criação geme aguardando a urgente expectativa do desfecho na história, o povo de Deus também geme em seu íntimo aguardando a redenção de seu corpo. Portanto, neste mundo decaído que anseia urgentemente pela redenção, precisamos resgatar o nosso interesse inato e original pela criação para vivermos em conformidade com o propósito de Deus, cuidando e zelando pelo mundo que Ele criou. Com um correto entendimento de biofilia, cada interação com a natureza é uma forma de reconexão com a criação divina e um exercício correto do mandato cultural. Em última análise, é uma forma de adoração a Deus.

Em conclusão, à medida que exploramos a convergência entre o conceito de biofilia, mandato cultural e ética cristã, emerge a necessidade imediata de repensar o papel do homem como cuidador do grande jardim. A nossa responsabilidade não se baseia em nós, como o centro da criação divina, nem no restante da criação, mas na missão atribuída a nós por Deus, o Criador de todas as coisas. Ele é tão preciso em sua obra que faz com que toda a sua criação interaja entre si e, em nosso caso, faz com que tenhamos afeto por ela. Embora a falta de comprovação científica direta da biofilia seja uma consideração válida, essa exploração abre caminho para a construção de uma ecoteologia reformada que promova um diálogo mais profundo e significativo entre a ciência e a fé cristã.

Ao abordar as implicações práticas dessa interação, podemos enfrentar questões cruciais sobre o comportamento dos cristãos em relação à preservação ambiental e ao cuidado com os animais. Ao superar o desprezo ideológico, baseado em argumentos não bíblicos, podemos elevar o nível das discussões e promover uma maior conscientização da importância de uma abordagem integrada da questão. Com isso em mente, espera-se que a comunidade científica e teológica desempenhem um papel fundamental na promoção desse diálogo e na busca por uma ecoteologia reformada mais abrangente.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

Referências

Bacote, Vincent E. “Introduction.” In: Ballor, Jordan J.; Flikkema, Melvin; Grabill, Stephen J. (Orgs.). Wisdom & Wonder: Common Grace in Science & Art. Traduzido por Nelson D. Kloosterman. Bellingham, WA: Lexham Press, 2015.

Boff, Leonardo. Ecologia e Teologia da Libertação. Leonardo Boff, 4 Dezembro 2019. Clique aqui para acessar.

Calvino, João. Gênesis. Livro digital. Editora Crossway, 2001. Disponível aqui. Acesso em 25 Maio 2023.

Campos Junior, Heber Carlos de. Amando a Deus no mundo: por uma cosmovisão reformada. São José dos Campos: Fiel, 2019.

Falavinha, Luzilete. “Cuidado com os animais é uma das contradições do nazismo.Jornal Plural, 31 August 2022. Clique aqui para acessar.

Kristanto, David. Is the Creation under Destruction?: Abraham Kuyper and Herman Bavinck on New Creation. Veritas: Jurnal Teologi dan Pelayanan, vol. 2, 2020, pp. 189-200. Clique aqui para acessar.

Kuyper, Abraham. Common Grace (Volume 2). Livro digital. Lexham Press, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 26 outubro 2023.

Louv, Richard. A última criança na natureza: Resgatando as nossas crianças do transtorno do déficit de natureza. São Paulo: Aquariana, 2016.

Nguyen, Phi-Yen, et al. Effect of nature prescriptions on cardiometabolic and mental health, and physical activity: a systematic review. Lancet Planet Health, vol. 7, 2023, pp. e313–28. Clique aqui para acessar.

Park, Yale. An Eco-Theology for Korean American Presbyterian Church. Tese de doutorado. EUA: Loyola University Chicago, 2021. Clique aqui para acessar.

Pessanha, Lavínia, e Fátima Portilho. Comportamentos e padrões de consumo familiar em torno dos “pets”. IV ENEC – Encontro Nacional de Estudos do Consumo Novos Rumos da Sociedade de Consumo?, 2008, 1 à 26. Clique aqui para acessar.

Sousa, Rainer Gonçalves. Religião inca: deuses, lendas, características – História do Mundo. História do mundo. Clique aqui para acessar.

Sandlin, Andrew P. O cuidado com a criação: Uma visão cristã do meio ambiente. Versão Kindle. Brasília: Monergismo, 2016. 

Steg, Linda; Groot, Judith I. M. de (editors). Environmental Psychology: An Introduction. John Wiley & Sons, 2018.

Tuan, Yi-Fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo, DIFEL, 1980.

Vos, Geerhardus. Teologia Bíblica: Antigo e Novo Testamento. São Paulo, Cultura Cristã, 2010.

Wagenman, Michael R. Engaging the World with Abraham Kuyper. Lexham Press, 2019.

Waltke, Bruce K., e Cathi J. Fredricks. Genesis. Zondervan Academic, 2016. Clique aqui para acessar.

Wilson, Edward O. Biophilia: the human bond with other species. Massachusetts, London: Harvard University Press Cambridge, 1984.

 

 

* Ensaio com menção honrosa na 2ª Chamada do Radar ABC². 

1. Wilson, 1984, p. 3.

2. Louv, 2016, p. 120.

3. Ibidem, p. 122.

4. Steg e Groot, 2018.

5. Nguyen, 2023.

6. Tuan, 1980,  p. 130.

7. Wilson, 1984, p. 1-2.

8. Junior, 2019, p. 162.

9. Calvino, Capítulo 2,  2001.

10. Waltke e Fredericks, 2016.

11. Vos, 2010,  p. 180.

12. Wilson, 1984, p. 11-13.

13. Sousa, 2023. 

14. Falavinha, 2022.

15. Lourenço, 2009, p. 163.

16. Salmo 104.24.

17. Kuyper, 2019, Volume I, Introdução.

18. Wagenman, 2019.

19. Bacote, 2015,

20. A visão de uma teologia ecológica, no entanto, foi desenvolvida, entre outros, pelo teólogo marxista Leonardo Boff. No entanto, a premissa de sua teologia ecológica é diferente da proposta aqui. Segundo Boff, o que motiva a sua teologia ecológica é a observação do “modo de produção capitalista, o produtor do grito da Terra e do grito do pobre.” E assim propõe que “se queremos a libertação de ambos, precisamos superar historicamente este sistema. Aqui trata-se de contrapor um outro modo de habitar a Casa Comum que seja amigável à Terra e libertador.” Boff, 2019 (sem paginação).

21. Junior, 2019, p. 90.

22. Kristanto, 2020, p. 189-120.

23. Ibidem.      

24. Park, 2019, p. 137.

25. Ibidem, 2019, p. 134.

26. Ibidem, 2019, p. 136.

27. Pessanha, 2018.

28. Sandlin, 2016, p. 14.

29. Wilson, 1984, p. 119.

Outros ENSAIOS [nº 2]

jeshoots-com-MCm43tSNVhY-unsplash
Screenshot 2023-12-01 at 18.19
Screenshot 2023-11-24 at 15.15
reformers-wall-8070835_1920
Reijer Hooykaas e Peter Harrison
WhatsApp Image 2023-09-12 at 22.09
Desespero da finitude
Somer_Francis_Bacon
scott-carroll-favQn8WgRyk-unsplash
WhatsApp Image 2023-09-07 at 21.36
Imersos na narrativa
1158px-thumbnail
Deus é uma hipótese científica?
carl-raw-m3hn2Kn5Bns-unsplash
Holy Resistance

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!