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ENSAIO

O lugar de uma teologia científica entre as disciplinas teológicas (em homenagem a Alister McGrath)*

Humberto Schubert Coelho|

24/11/2023

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Humberto Schubert Coelho

Professor de Filosofia moderna e metafísica da Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em filosofia da cultura, estética, filosofia da ciência e filosofia da religião, sempre sob a ótica metafísica. Historiador da cultura e do pensamento luso-brasileiro e alemão. É Membro de diversas sociedades científicas e grupos de estudo no Brasil e em Portugal, e membro titular da Academia Brasileira de Filosofia.

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Como citar

Coelho, Humberto Schubert. O lugar de uma teologia científica entre as disciplinas teológicas (em homenagem a Alister McGrath). Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A demanda por uma teologia científica surgiu do progressivo declínio da dogmática teológica ao longo dos séculos 17 e 18. Uma variedade de teologias naturais emergiu com a finalidade de purgar a teologia de seus traços e sua linguagem religiosos sobrenaturais. Essa “purificação” objetivava a “pura forma” de uma teologia racional, independente de adições culturais, como a cristologia e o papel das instituições, incluindo a própria igreja. Esse movimento produziu ao menos duas reações distintas na transição para o século 19: o romantismo e a teologia sistemática. Os românticos reagiram à aridez da teologia natural enfatizando o sobrenatural e os estreitos limites do entendimento humano, algumas vezes degenerando em irracionalismo. A teologia sistemática, fortemente inspirada pelo idealismo alemão, tentou reabilitar conceitos teológicos basilares em um formato novo e mais respeitável. As ideias de Friedrich Schleiermacher, figura axial em ambos os movimentos, são representativas dos problemas encontrados por essas duas iniciativas. Mais tarde, sob a influência de tradicionalistas modernos como Karl Barth e John H. Newman, a teologia sistemática recuou em favor de uma teologia dogmática renovada, a qual, novamente, levaria a sério as prerrogativas originais da revelação cristã. A reabilitação de uma teologia mais tradicional, contudo, renovou a exigência de acomodação da teologia contemporânea ao conhecimento científico. A “Teologia científica” de Alister McGrath está entre os mais significativos esforços nessa direção.

Após o movimento dramático em favor de uma naturalização da teologia, nos séculos 18 e 19, os teólogos perceberam que uma rejeição de princípios e ideias centrais do cristianismo poderiam ser altamente desvantajosas para o propósito da reflexão teológica. O relativo arrefecimento da teologia natural, portanto, estimulou um retorno a abordagens mais tradicionais e dogmáticas, compatíveis com os métodos hermenêuticos modernos. À medida em que teologias liberais e naturais – e outras formas de crítica à teologia cristão tradicional – se provavam resilientes, no entanto, a dinâmica teológica do século 20 se tornou progressivamente mais complexa, com episódios tanto de harmonização quanto de conflito entre a teologia cristã tradicional e teologias críticas essencialmente secularizadas.

Bebendo dessas várias tradições, Alister McGrath fala de uma “presença perene do transcendente” em todas as culturas humanas, definindo o transcendente como questão de interesse último, em contraste com as preocupações relativas e transitórias da vida mundana.¹ Essa perspectiva filosófica lhe permitiu evitar os mais comuns vícios das posições radicalizadas. Ademais, no lugar de um reducionismo teológico da ciência ou de um reducionismo científico da teologia, McGrath se tornou o principal defensor de uma nova perspectiva, a qual denominou teologia científica. De acordo com ele, “uma teologia científica concebe a empreitada teológica como tentativa bem orientada de oferecer alguma noção da realidade de Deus, a qual ela compreende como integrada a diferentes níveis do mundo”.²

Como se percebe, uma nova disciplina teológica que mostre íntimas relações com as disciplinas tradicionais especializadas na relação entre ciência e teologia, ou natureza e revelação, precisa ser cuidadosamente distinta. No nosso artigo, daremos ênfase a duas grandes tentativas de construção de uma ponte entre a fé e a razão na Modernidade: a teologia natural e a teologia sistemática. Esses exemplos nos ajudarão a aclarar como exatamente a proposta de McGrath de uma teologia científica difere das tentativas anteriores de resolver o bem percebido cisma entre religião e ciência, e em que sentido ela se prova superior àquelas.

Tendo em vista que a proposta dá sinais de ser uma síntese, precisamos começar pelos modelos por ela pressupostos. As duas principais ideias conectadas pela teologia científica são a do realismo científico – fortemente ligada ao naturalismo crítico – e a da teologia cristã.

Escrevendo uma geração após Ian Barbour, McGrath não cede espaço algum à noção moderna de um suposto conflito entre ciência e religião. Ao contrário, ele reconhece uma variedade de tentativas teológicas recentes de lidar com uma visão de mundo na qual as ciências vêm gozando de tremendo sucesso já há duzentos, trezentos anos. Por isso, ele devota especial consideração à teologia natural, que remonta aos primeiros cristãos, como prova a mensagem de Paulo aos romanos: “pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas”.³ Os “homens que não merecem desculpa”, a que se refere Paulo, seriam aqueles incapazes de discernir Deus por meio de Suas criaturas. Simplificando um pouco, Tom Holland declara: “aceitar Cristo era aceitar que Deus poderia escrever Seus mandamentos no coração”.⁴

A revelação e a tradição cristãs nunca estiveram em conflito com a razão. Os maiores pensadores e filósofos foram quase exclusivamente cristãos por onze séculos antes que a noção de um conflito entre ciência e religião fosse sequer concebida na Modernidade. Aliás, a Modernidade foi cunhada pela peculiar piedade de homens e mulheres como Jan Huss, Erasmo, Martinho Lutero, Teresa D’Ávila, Ignácio de Loyola e João Calvino.

Em outra de suas descrições, Holland escreve que “Martinho Lutero […] apelou pela primeira vez para um conceito que ele descobriu em Paulo: ‘devo crer segundo o testemunho da minha consciência’”.⁵ Essa noção ética de crença não é diferente da noção luterana de fé. Em contradição com as interpretações irracionalistas de Lutero, seu conceito de fé não se opunha ao raciocínio, ainda que ele afirmasse que a razão jamais poderia dar origem à fé. Mesmo vendo a fé como superior à razão, Lutero nunca sustentou que estivessem em contradição. Distinguiu, aliás, a razão mundana de uma razão regenerada.

A razão que produz a teologia natural, portanto, não é necessariamente errada, mas sim uma ferramenta cega que pode ser usada em proveito do mal. Apenas por intermédio da expiação é que a razão pode ser purificada de sua neutralidade instrumental e trazida a serviço da salvação. Traduzindo isso para o julgamento da teologia natural, uma teologia natural útil à salvação não pode ser independente ou estar em contradição com a revelação. O ponto, então, é que a fé garantida pela revelação não deve jamais ser julgada pelos padrões da teologia natural ou da teologia filosófica, mas isso não significa que a revelação seja autoevidente em todos os seus pormenores e sutilezas, tornando a interpretação racional inútil.

Apenas por intermédio da expiação é que a razão pode ser purificada de sua neutralidade instrumental e trazida a serviço da salvação.

Ainda que a concepção de teologia natural de McGrath seja muito mais positiva, a analogia com Lutero é frutífera, pois ajuda a lembrar que a teologia natural pode não ser sempre a melhor parceira da teologia cristã. Como veremos, a necessidade de permanecer na teologia positiva, evitando o risco de um conceito puramente filosófico (e abstrato) de teologia, faz com que seja relevante ressaltar o indiscutível fundamento factual da teologia cristã em contraste com o fundamento puramente teorético da teologia natural.

Ecoando Alvin Plantinga, no entanto, McGrath aponta para Tomás de Aquino e João Calvino como os inspiradores originais da teologia natural. Uma vez que ambos consideravam a harmonia entre razão e revelação como afirmada pela própria revelação, as raízes originais da teologia natural não assumem o conflito entre ciência e religião ou entre razão e fé. Por isso, é relevante compreender como a teologia natural, um projeto originado do coração da teologia, divorciou-se desta a fim de tentar uma nova fundação da teologia que, ultimamente, se oporia à revelação.

Em favor da brevidade, podemos mencionar os conceitos de Baruch Espinosa de um Deus da razão pura, considerando a razão em um sentido muito mecanicista. Contemporâneo de Robert Boyle, que foi um teólogo natural no sentido tradicional, Espinosa menosprezava as Escrituras como um tratado incoerente e incivilizado sobre Deus. Apesar de conter algumas máximas decentes de sabedoria prática, e de estar geralmente correta sobre a supremacia de Deus sobre os seres individuais, a Bíblia deveria ser considerada coletânea de afirmações para as quais nenhuma demonstração é oferecida. A razão poderia fazer bem melhor, oferecendo provas exatas e irrefutáveis para cada um de seus postulados.

Espinosa foi uma poderosa fonte de inspiração para os pensadores franceses do iluminismo no século 18. Voltaire, o maior dos philosophes, foi muito específico em seus ataques às Escrituras e à revelação. Em seu L’Evangile de la Raison [O Evangelho da razão], título já bastante sugestivo, ele diz que nenhuma religião pode ser verdadeira se contiver erros no coração de sua doutrina. Por erro ele entende qualquer coisa que separe a humanidade ou cause perturbação.⁶ A santidade, segundo Voltaire, deveria ser identificada com a virtude, e não faria diferença para a razão se a virtude é manifestada por um pagão, um muçulmano ou um cristão. A alegada superioridade do cristianismo só seria apoiada pela crença nos milagres, mas todas as religiões afirmam que seus milagres são os verdadeiros e que todas as demais obras são demoníacas.⁷ Por fim, o cristianismo demandaria, de seus seguidores, algumas crenças irracionais. Não se pode ser cristão sem assumir a maior de todas as contradições, a saber, que um Deus possa ser três. A ideia do Deus triúno, ele diz, na verdade produz três deuses.⁸ Dizer que esses três são, ao mesmo tempo, diferentes e que o segundo e o terceiro são gerados do original, mas sem serem menos originais e divinos, só piora as coisas.⁹

Embora um tanto simplistas, os argumentos de Voltaire eram lugar comum ao longo do século 18. O filósofo judeu Moses Mendelssohn, por exemplo, argumentou que o judaísmo deveria ser considerado superior ao cristianismo na exata medida em que só exige a virtude como meio de salvação, enquanto o cristianismo dependeria de absurdidades, como a afirmação de que uma pessoa seria o Deus absoluto encarnado. Ao dar prioridade a crenças desse tipo, o cristianismo falharia em apelar a toda a humanidade, enquanto o judaísmo assumiria que toda pessoa moral seria salva.¹⁰ O que mais interessa aqui não é a crítica de Mendelssohn ao cristianismo, e sim o fato de sua crítica se basear em uma imagem do judaísmo que está totalmente assentada na noção iluminista de teologia natural, a qual dificilmente corresponde à tradição rabínica e seu entendimento da revelação.

Em suma, a guinada para uma abordagem mais dogmática da teologia teve por base a percepção relativamente óbvia de que a teologia natural dispensava a revelação e a tradição teológica. Destacamentos semelhantes da teologia vinham ocorrendo em campos como a história natural, que, paulatinamente, davam lugar a perspectivas não religiosas, quando não antirreligiosas, de acordo com o incremento da narrativa mítica de um conflito entre ciência e religião ao longo do século 19.¹¹

Em suma, a guinada para uma abordagem mais dogmática da teologia teve por base a percepção relativamente óbvia de que a teologia natural dispensava a revelação e a tradição teológica.

O maior nome nesse movimento foi Friedrich Schleiermacher. Ele ofereceu tanto uma filosofia da religião, no sentido da teologia natural, quanto uma dogmática teológica que reabilitava a dogmática cristã. 

Ciente dos efeitos deletérios da teologia natural iluminista para a fé cristã, Schleiermacher percebeu que uma religião filosófica natural não era a aliada ideal da teologia cristã. Contudo, ele também não acreditava que a religião natural estivesse em contradição com o cristianismo e desenvolveu uma abordagem romântica da religião natural e uma dogmática cristã reconciliável com ela. Assim, abriu o caminho para o entendimento mútuo entre um senso natural e progressivo do divino e a verdade revelada. Enquanto a religião natural está disponível a todos os seres racionais, seu desenvolvimento e suas formas concretas se dariam como estruturas culturais na órbita da revelação positiva. Falar de religião natural, então, seria como falar sobre a gravidade como um princípio, e falar sobre a revelação seria como falar sobre estrelas de fato e sobre os planetas que giram ao seu redor.

Apesar de reconhecer essas conquistas, McGrath não sucumbe às limitações da teologia sistemática como concebida pelos idealistas alemães ou, mais recentemente, pelos tradicionalistas. O que ele busca é uma teologia científica, não uma acomodação teológica a dados científicos – se tivermos que dar um exemplo desse segundo caso, poderíamos mencionar Wolfhart Pannenberg –, ou uma interpretação científica de princípios teológicos rebaixados ao status de símbolos e metáforas. Em vez  dessas opções mais comuns do debate contemporâneo, McGrath vislumbra uma terceira alternativa, centrada na ligação entre a teologia positiva ou dogmática e a positividade do realismo científico. Ele, inclusive, apresenta seu próprio retorno à positividade da religião como uma evidência do perene apelo do transcendente, para o qual seu livro The Open Secret: A New Vision for Natural Theology é a melhor referência.

Analisando a posição peculiar de Iris Murdoch sobre o transcendente, McGrath argumenta que esta e outras reações dos anos 1960 e 1970 à generalizada rejeição do transcendente refletiriam uma “vontade” criada pela própria rejeição, rejeição esta que ele atribui a uma cultura “depauperada de metafísica”.¹² A percepção de McGrath de que a rejeição do transcendente tem base metafísica – ou, mais precisamente, antimetafísica – chama atenção para uma tendência geral da filosofia contemporânea: a morte da metafísica. Em seu ataque à metafísica, vários partidos assumiram responsabilidade por eliminar o “segundo maior obstáculo” ao avanço da ciência, abaixo apenas da teologia. Autores como Auguste Comte, Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud orgulhosamente anunciaram as glórias de ciências recém-nascidas, presumindo que essas glórias derivavam da morte do pensamento metafísico. Por um século, cientistas e até professores de filosofia acreditaram que ciências não metafísicas fossem não apenas possíveis como, na verdade, superiores aos métodos e às ciências fundados sobre os princípios da filosofia primeira.

Aqui, contudo, é essencial que levantemos uma crítica às atribuições de responsabilidade por parte de McGrath, pois ele condena o idealismo, talvez a maior defesa jamais feita da metafísica, como um dos criminosos.

A insistência de McGrath pela dogmática em detrimento da sistemática, bem como seu louvor à ortodoxia, representada pelos teólogos que ele mais comenta, como Karl Barth e Thomas Torrance, seguidos de Schleiermacher, Brunner e Calvino, está em agudo contraste com as rigorosas exigências que ele mesmo impõe à metafísica. Por outro lado, sendo ele  extremamente crítico do fundacionalismo, do idealismo (mesmo o idealismo crítico) e de qualquer coisa que se pareça com uma investigação a priori, saúda a dogmática cristã sem restrição nenhuma. Além disso, sem nenhuma referência a Hegel, o maior dos idealistas a ser refutado em uma crítica séria dessa escola, McGrath reduz o idealismo à costumeira caricatura de antirrealismo, um reducionismo que frequentemente critica quando partido do naturalismo. Apresentar o idealismo como nada mais que antirrealismo não faz justiça ao idealismo objetivo, por exemplo, que chega às mesmíssimas conclusões que McGrath tenta construir. A filosofia positiva de Schelling e a insistência de Hegel na verdade como resultado – e não a priori – me parecem ótimos modelos para diversas das posições de McGrath. Também cabe mencionar que muitos idealistas reconhecem as raízes cristãs de sua posição metafísica, e, até certo ponto, é impossível ser idealista sem também ser cristão. No entanto, como argumento em meu artigo sobre o conceito hegeliano de Deus, também é verdade que algumas definições de cristianismo oferecidas pelos idealistas são impalatáveis à ortodoxia cristã.

Uma vez que o idealismo não exerce papel relevante na Teologia científica, não pretendo dedicar mais tempo defendendo-o. A representação que McGrath faz dele é meramente pedagógica, ou mesmo simbólica, e, nesse sentido, preenche o propósito intentado pelo autor, que é o de enfatizar a absoluta necessidade de construção da ponte entre ciência e teologia sobre fatos. Se compreendi bem McGrath, essa é a tese central da Teologia científica.

Fatos são as conexões positivas com a realidade fora da mente humana e, portanto, essenciais tanto para a ciência quanto para a teologia, disciplinas que se debruçam sobre a realidade. Se mais espaço e considerações mais sérias tivessem sido dados à filosofia pura no plano geral da teologia científica, sua estrutura teria de ser rearranjada para lidar com o idealismo de uma maneira sistemática, mas esse não é o caso. Uma maior importância da filosofia quase certamente teria feito todo o projeto pender na direção da teologia sistemática, o que não era o ponto almejado pelo autor. Como bem mostra o exemplo da Teologia sistemática, de Paul Tillich, “o ponto de contato entre a pesquisa científica e a teologia reside no elemento filosófico de ambas, as ciências e a teologia. Consequentemente, a questão sobre a relação entre a teologia e as ciências especializadas se funde à questão sobre a relação entre a teologia e a filosofia”.¹³

McGrath, no entanto, não tentava edificar uma relação sistemática entre ciência e teologia,¹⁴ mas sim uma teologia científica, e isso demanda algum esforço, se nosso desejo é o de entender a diferença entre essas duas empreitadas.

Na teologia científica, a filosofia tem papel limitado, restrito aos problemas específicos que requerem ou enfatizam versões fortes do realismo como as únicas soluções adequadas. Conseguintemente, concordo com McGrath que o caminho escolhido por ele para a defesa da teologia científica foi o mais adequado, se não inevitável.

A melhor forma de triangular a posição de McGrath, particularmente em relação ao realismo, é a partir dos pensadores centrais do século 20 citados no livro: Roy Bhaskar, Karl Barth e Thomas Torrance. Curiosamente, esses nomes estão bem distribuídos no espectro que vai da ciência à teologia: Baskhar, um advogado do realismo; Barth, teólogo dogmático e advogado da autoridade das Escrituras; Torrance, no meio do caminho.

Na teologia científica, a filosofia tem papel limitado, restrito aos problemas específicos que requerem ou enfatizam versões fortes do realismo como as únicas soluções adequadas.

Em Fundamento e gramática da teologia, Torrance escreve:

O fim último da teologia cristã é indubitavelmente o conhecimento e a fruição de Deus em si, mas esse conhecimento e essa fruição derivam da relação íntima entre Deus o Criador e o universo que Ele fez e no qual situou o homem, “coroa da criação”, como é conhecido pela teologia tradicional. Foi no e através do universo do espaço e do tempo que Deus se nos revelou nos modos de racionalidade que ele conferiu à criação e a nós na criação, e é no e através do mesmo universo do espaço e do tempo que a teologia oferece uma resposta disciplinada à autorrevelação de Deus. A compreensão do universo, que é a meta primária das investigações das nossas ciências naturais, só podem ser objeto do mais profundo interesse da teologia.¹⁵

Embora muitíssimo próxima da proposta de McGrath, a noção de Torrance não supera as limitações de uma visão fragmentada. Ele constrói analogias e conexões entre a ciência e teologia, e corretamente entende que ambas estão conectadas através do realismo, mas não apresenta uma teologia científica. De acordo com McGrath:

Uma teologia científica concebe a empreitada teológica como tentativa bem orientada de oferecer alguma noção da realidade de Deus, a qual ela compreende como integrada a diferentes níveis do mundo. Rejeitando prejulgamentos a priori sobre o que se pode conhecer sobre Deus, e de que maneiras tal conhecimento possa ser estabelecido, uma teologia científica se acerca dessas questões à luz do que é factualmente conhecido sobre Deus. A teologia científica, portanto, se concebe como uma disciplina a posteriori, respondendo e oferecendo uma noção do que pode saber sobre Deus através da revelação, tendo plenamente em conta a natureza estratificada desse conhecimento sobre Deus.¹⁶

McGrath está, de fato, criando uma nova disciplina com base em uma visão falibilista e progressiva da realidade de Deus de acordo com o que o conhecimento que o mundo natural pode efetivamente oferecer sobre Ele (sobre isso, para ser politicamente correto?). Nesse sentido, essa disciplina demanda de seus especialistas uma grande familiaridade tanto com a ciência quanto com a teologia, mas oferece em troca uma vantagem extraordinária, já que, graças à teologia científica, o abismo cultural entre a teologia e a ciência não tem mais razões metodológicas para existir.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

Referências

Coelho, Humberto Schubert. A filosofia como juíza: considerações epistemológicas e histórico-culturais sobre o cisma entre ciência e religião. In: Simanke, Richart T.; Bocca, Francisco V. Murta, Claudia (Ed.). Psicanálise em Perspectiva VII. Curitiba: Editora CRV, 2018.

Harrison, Peter. “Science” and “Religion”: Constructing the Boundaries. The Journal of Religion, v. 86, n. 1. pp. 81-106, 2006.

Holland, Tom. Dominion: How the Christian Revolution Remade the World. New York: Hachette Book Group, 2019.

McGrath, Alister E.. A Scientific Theology. Vol. 1: Nature. Michigan: William B. Eerdman’s, 2001.

McGrath, Alister E.. A Scientific Theology. Vol. 2: Reality. Michigan: William B. Eerdman’s, 2002.

McGrath, Alister. The Open Secret: A New Vision for Natural Theology. Malden: Blackwell, 2008.

Gottlieb, Micah. Moses Mendelssohn Writings on Judaism, Christianity and the Bible. Waltham: Brandeis University Press, 2011.

Torrance, Thomas. The Ground and Grammar of Theology. Edinburgh: T&T Clark, 1980.

Voltaire. F. M. A.. L’Evangile de la Raison, ouvrage philosophique. Paris: Du Laurens, 1765.

 

* Texto originalmente publicado na revista Science and Christian Belief, v. 35, 2023. Clique aqui para acessar.

1. McGrath, 2008, p. 26.

2. McGrath, 2002, p. xi.

3. Romanos 1:20.

4. Holland, 2019, p. 186.

5. Ibidem, p. 312.

6. Voltaire, 1765, p. 3.

7. Ibidem, p. 7-8.

8. Ibidem, p. 46.

9. Idem.                

10. Gottlieb, 2011, p. 3.

11. “The transformation of natural history into scientific “biology” was a vital part of this process. Whereas natural history had traditionally been dominated by the clergy, the new scientific disciplines of biology and geology gradually achieved independence from clerical influence while at the same time legitimizing a new set of nonecclesiastical authorities. This was in fact the explicit mission of such figures as Thomas Huxley and his colleagues in the “X-Club,” who sought with an evangelical fervor to establish a scientific status for natural history, to rid the discipline of women, amateurs, and parsons, and to place a secular science into the center of cultural life in Victorian England. It served the political purposes of this clique to deploy a rhetoric of conflict between theology and science, a conflict that was supposedly not unique to the nineteenth century but had characterized the ongoing relation of these two hypostasized entities. Largely as a consequence of the efforts of those who sought to promote the political fortunes of “science,” there emerged the historical thesis of an ongoing science-religion conflict—a view epitomized in the now unfashionable histories of Andrew Dickson White and John Draper. A good sense of the general tenor of these works can be gleaned from their titles, respectively, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom (1896) and History of the Conflict between Religion and Science (1875). The enduring legacy of this group, however, has been the perpetuation of the myth of a perennial warfare between science and religion”. Harrison, 2006, p. 87.

12. McGrath, 2008, p. 48.

13. Tillich, 1951, p. 18.

14. Tarefa a qual dediquei algum esforço em: Coelho, 2018.

15. Torrance, 1980, p. 1.

16. McGrath, 2002, p. xi.

Outros ENSAIOS [nº 2]

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