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ARTIGO

Ciência e fé em diálogo na universidade

Elane Chaveiro Soares|

09/02/2024

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Elane Chaveiro Soares

Professora do Departamento de Química da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Ensino de Química (LabPEQ). Atua no Ensino, na Pesquisa e na Extensão formando Professores e Bacharéis em Química. Orienta no Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências Naturais (PPGECN). Líder do Grupo de Estudos ABC2/FÉCIÊ de Cuiabá-MT.

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Como citar

Soares, Elane Chaveiro. Ciência e fé em diálogo na universidade. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

A universidade, enquanto ambiente intelectual, presta-se à valorização de muitas virtudes, entre as quais figura a curiosidade epistêmica, e isso se faz enquanto se promove, se constrói e se divulga o conhecimento na sociedade, seja pela ação docente no ensino, seja pela pesquisa ou pela extensão. O ambiente universitário é o lócus propício para um diálogo amistoso que reconheça e que fortaleça marcos teóricos, filosóficos, históricos e epistemológicos daqueles que se propõem a aprender e a fazer boa ciência. Em um ambiente assim, nenhuma dúvida é omitida, desconsiderada ou mesmo desvalorizada. Esta é a convicção e a motivação inicial para emitir este texto.

O ambiente universitário é o lócus propício para um diálogo amistoso que reconheça e que fortaleça marcos teóricos, filosóficos, históricos e epistemológicos daqueles que se propõem a aprender e a fazer boa ciência.

Compartilho aqui algumas reflexões teóricas e práticas que objetivam discutir a habilitação das universidades para o debate entre os campos da ciência e da religião com base em uma experiência local. Aponto que o investimento intelectual é alto, mas que há construção e aprimoramento de conhecimentos em diversos âmbitos. Mesmo com algumas ressalvas, considero que a universidade brasileira está menos porosa ao modelo do conflito entre esses campos, abrindo-se dessa forma, para o que McGrath¹ chama de visão estereoscópica da realidade.

Alimentada pela curiosidade relativa a esses dois campos, fui participar da Primeira Conferência Nacional da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC2) realizada em 2016, em São Paulo. A partir desse evento, dediquei-me intencionalmente a algumas questões mais profundas e que exigiram maior estudo e dedicação até os dias de hoje. Nesse sentido, este texto é escrito a partir da experiência pessoal com a proposta de um diálogo entre os campos da Fé e da Religião que depois evoluiu para algo mais coletivo, necessário e relevante academicamente, culminando na constituição de um grupo de estudos.

Sou formada no âmbito das Ciências Exatas, em Licenciatura em Química, e como tal, fui percebendo, ao longo da atuação profissional docente (desde 1990), que possuía algumas visões deformadas a respeito do trabalho científico,² carecendo, dentre outras coisas, de um melhor engajamento em meu próprio desenvolvimento.³ Para além disso, a fé cristã me pareceria, por vezes, inquieta, ora em juízo, ora desprezada, ora desconsiderada e, por muitas vezes, confrontada pela própria academia, o que contraria, em certa medida, a adjetivação feita ao âmbito acadêmico no início deste texto. Isso porque não havia permissão, em meu cognitivo, para aversão ou para dicotomia quanto ao que eu acreditava e o ensino de Ciências/Química que eu fazia, pois eu já entendia que “religião e ciência são duas forças culturais e intelectuais mais significativas no mundo de hoje”⁴ e que eu, como ser integral que sou, não conseguiria deixar a fé do lado de fora das salas de aula ou dos temas que eu estudava/ensinava. Assim, coloquei-me, juntamente com outros pesquisadores,⁵ a pensar sobre os modelos para a relação entre Ciência e Religião.⁶ Esses estudos foram catalisadores para um envolvimento mais elaborado que reconhecia a relação entre esses campos, permeados por outros, como a História e a Filosofia da Ciência.

Na conferência citada anteriormente, conheci pessoas engajadas nessa proposta no Brasil. Além destes, entrei em contato com grandes nomes do discurso mundial sobre a relação entre Ciência e Fé cristã, tais como: Alister McGrath, Ted Davis, Jonh H. Walton e Ard Louis, para citar apenas alguns. Foi a partir daí que comecei a entender que não basta estar disposto: é necessário também estar bem fundamentado para esse diálogo. Dessa forma, motivada pela criação da ABC², organizei um Grupo de Estudos e alguns seminários com vistas a promover esse diálogo com vários convidados.

Neste texto, escrito inicialmente com muita pessoalidade, apresento a criação e o desenvolvimento do Grupo de Estudos ABC2/FÉCIÊ – Cuiabá-MT, como um grupo que objetiva compreender a complexa relação entre os campos científicos e da religião (com foco no cristianismo), oferecendo, e quiçá contribuindo com, um arcabouço teórico para o desenvolvimento de um diálogo que possa ser frutífero e rigoroso, além, é claro, de  bem fundamentado, entre esses dois campos no âmbito acadêmico.

Iniciado em 2017, o grupo de estudos avançou para a dinâmica de um projeto de extensão universitária a partir de 2019, passando a emitir certificados de participação e envolvendo mais a sociedade nas discussões, promovendo uma pertinente discussão para a compreensão do que é fazer ciência e de sua relação com os demais campos. 

Nesse sentido, foi importante o contato com algumas publicações que problematizavam ainda mais a proposta de diálogo, como a de Sepúlveda e El-Hani,⁷ Azevedo e Carvalho⁸ e Riceto e Junior,⁹ o que fez aumentar a relevância da proposta. 

Mesmo com toda a importância sociocultural e histórica, a temática ciência e religião ainda encontra muita resistência e pseudodebates no meio acadêmico, conforme apontam Riceto e Junior em sua pesquisa. Isso tornou a criação do grupo de estudos ainda mais desafiadora diante de conceitos como rigor acadêmico, autoridade ou soberania de cada uma das esferas, e até mesmo consenso científico – para citar apenas alguns –, que são tão necessários para uma relevante divulgação científica e para qualquer projeto universitário.

Como não poderia deixar de ser, há tensões envolvidas na proposta de um grupo que objetiva ser protagonista na ação de habilitar a universidade para esse tipo de ação, no entanto, há também construção de conhecimento que valoriza todo aquele que pretende uma formação acadêmica crítica e mais bem fundamentada. Assim, de forma colaborativa, foram feitas reuniões, normalmente com a presença de um especialista no tema, em que pontos de vistas conflitantes foram considerados a partir do fomento ao debate aberto, respeitoso e profundo entre a academia e a sociedade, promovendo, desse modo, o diálogo entre os campos da Ciência e da Religião.

Como não poderia deixar de ser, há tensões envolvidas na proposta de um grupo que objetiva ser protagonista na ação de habilitar a universidade para esse tipo de ação, no entanto, há também construção de conhecimento que valoriza todo aquele que pretende uma formação acadêmica crítica e mais bem fundamentada.

Habilitar é um ato de tornar hábil, apto ou capaz; dito de outro modo, trata-se de uma ação com a intenção de  preparar-se e/ou dispor-se, uma ação que se volta para o agente que se prepara e que se dispõe a tornar algo possível. Com esse verbete de dicionário e com uma metáfora em mente, vislumbramos uma universidade brasileira que se coloca à disposição de uma proposta que desafia a cultura acadêmica lançando mão de noções básicas para iniciar e dar continuidade a esse diálogo. Esse espaço é mais que adequado para excelentes manobras de condução de um diálogo proeminente, rico e rigoroso entre os dois  campos já citados anteriormente.

Agenda do grupo de estudos sobre Ciência e Religião

Atualmente, há muitas formas de estudar o relacionamento entre Ciência e Fé. Sobre isso, uma publicação recente¹⁰ analisou os cursos de Ciências da Religião das universidades públicas do Brasil e apontou, em seu artigo, que os processos de fundação desses cursos ocorreram por dois caminhos principais. Os primeiros cursos de licenciatura surgem a partir da forte demanda prática do ensino religioso, com ênfases pedagógicas e em universidades estaduais. O outro modelo é constituído pela iniciativa de professores de outras áreas do saber atuantes nas universidades federais e que lutam pela implementação do curso. Segundo o autor, esse conjunto de fatores gerou cursos com ênfase no caráter interdisciplinar das Ciências da Religião e, também, o desafio de evidenciar a importância do estudo da religião no ambiente acadêmico.

No contexto das universidades públicas, é possível encontrar essas três designações distintas para os cursos: Ciência da Religião, Ciências da Religião e Ciências das Religiões. A terminologia adotada para nomear esse campo de estudos na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) é “Ciências da Religião” .

Importa enfatizar que, de modo geral, o que é feito nas universidades brasileiras não se coaduna com a área Ciência e Religião (Science and Religion) desenvolvida fora daqui, e esse, inclusive, é um dos aspectos que diferencia a ABC2 de outras associações.

Assim, apontamos para ações que fazem Ciência e Religião (Science and Religion) dialogarem, mas não uma conversa qualquer, e sim como a ideia de que “esse tipo de diálogo precisa ser robusto e desafiador, investigando questões profundas e potencialmente ameaçadoras sobre a autoridade e os limites de cada participante e de cada disciplina”, ponderando, ainda, que um diálogo exige que “cada participante leve o outro a sério, tentando identificar seus pontos fortes e fracos, ao mesmo tempo que deseja aprender com o outro a enfrentar seus próprios limites e vulnerabilidades”.¹¹ 

Andrew Briggs apresentou uma obra¹² na conferência da ABC2 que nos permitiu o reconhecimento da importância desse tipo de diálogo, dada a efervescência dos contrapontos. Para aqueles que propagam a ideia de que a ciência teria “refutado” a verdade da religião, há o destaque para provas contrárias contundentes:

Como afirmou Peter Medawar, laureado com o Prêmio Nobel (e que não é cristão), “não há limites ao poder da ciência para responder ao tipo de perguntas que ela é capaz de responder”, mas o fato de que a ciência possui “[...] limites é demonstrado em razão de haver perguntas que ela não pode responder e que nenhum avanço concebível dela a autorizaria a responder [...] não é possível extrair dos axiomas e postulados de Euclides um teorema relativo a como preparar uma omelete ou fazer um bolo”. Ele conclui: “Não se deve esperar que a ciência forneça soluções para problemas como o sentido da vida ou a existência de Deus”.¹³

Dessa forma, o Grupo de Estudos ABC2/FÉCIÊ – Cuiabá-MT foi criado, e esse nome foi escolhido por apresentar a abreviação daquilo que se pretendia  fazer no interior da universidade com o objetivo de fomentar a criação de uma comunidade intelectual cristã. Todavia, essa agenda precisou de uma metodologia apropriada, a qual apresentaremos a seguir.

Fazendo funcionar um grupo de estudos

Com o desenvolvimento das atividades, o grupo ficou cada vez mais conhecido e, dessa forma, a partir de 2020 as ações passaram a ser registradas no formato de um Projeto de Extensão, visando alcançar outros interessados nas discussões para além da universidade. Entre 2020 e 2021, os encontros foram realizados de forma remota por conta da pandemia da Covid-19. Tal situação, ainda que dramática e complexa, favoreceu o engajamento de pessoas de outros municípios e até de outros estados ao grupo. Favoreceu também a participação de convidados e palestrantes que, de outra maneira, não teriam condições de contribuir com os estudos.

Em 2022, o grupo alternou atividades remotas e encontros presenciais, de modo que todos os participantes que não residiam em Cuiabá continuaram conectados e participaram das atividades virtuais. A agenda é fomentada e divulgada através de um grupo de WhatsApp e por uma conta no Instagram (@fe.cie_abc2_cuiaba); além disso, a experiência foi também sendo divulgada em eventos de extensão.¹⁴ Apenas para contextualizar, extensão é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade, e, ações de extensão, são as intervenções que envolvem, diretamente, as comunidades externas à universidade e que estejam vinculadas à formação do estudante, como é o caso de compreender a possibilidade de interações entre Ciência e a Religião. De forma mais recente, foram realizadas lives interativas utilizando plataformas de videoconferências, onde cada palestrante era convidado a explorar um tema e a enviar uma sugestão de texto para ser lido pelo grupo antes do encontro. Nessa metodologia, as reuniões se tornaram também uma roda de conversa que aprofundava o tema.

Apenas para contextualizar, extensão é um processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade, e, ações de extensão, são as intervenções que envolvem, diretamente, as comunidades externas à universidade e que estejam vinculadas à formação do estudante, como é o caso de compreender a possibilidade de interações entre Ciência e a Religião.

Em 2023, o Projeto de Extensão foi registrado na universidade com o título de “Verdadeiros Cientistas, Fé verdadeira e os avanços em Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente”. Nessa proposta, os próprios integrantes do grupo escolheram autores para estudar e apresentar suas ideias, publicações e legados; além disso, também estamos elaborando um texto que será publicado no formato de e-book.

Para finalizar, sabemos que ainda há resistências a esse diálogo nas universidades, mas a academia brasileira precisa ser habilitada ou preparada para ele. Todavia, acreditamos que em breve isso será parte do cotidiano acadêmico, pois o primeiro passo já foi dado: a criação de um grupo de interessados cada vez maior e mais dedicado que realiza ações efetivas. Isso certamente fará com que as barreiras que ainda persistem sejam, aos poucos, derrubadas e que o diálogo entre Ciência e Religião passe a ser algo natural no meio acadêmico.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Alister, McGrath, Ciência e Religião: fundamentos para o diálogo, 2020.

2. Daniel Gil-Perez et al., “Para uma imagem não deformada do trabalho científico”, Ciência e Educação, v. 7, n. 2, 2001, p. 125-153.

3. Christopher Day, Desenvolvimento Profissional de Professores: os desafios da aprendizagem permanente, 2001.

4. McGrath, 2020, p. 16.

5. Ian G. Barbour, Quando a ciência encontra a religião: inimigas, estranhas ou parceiras?, 2004.

6. Ana Paula A. de Nóbrega, Elane C. Soares, Ciência e Religião no Ensino de Ciências Naturais: Pode isso?(e-book), 2021.

7. Claudia Sepúlveda, Charbel Niño El-Hani, “Quando visões de mundo se encontram: religião e ciência na trajetória de formação de alunos protestantes de uma licenciatura em ciências biológicas”, Investigações em Ensino de Ciências, v. 9, n. 2, 2004, p. 137-175.  

8. Hernani Luiz Azevedo, Lizete Maria Orquiza-de-Carvalho, “Ensino de ciências e religião: levantamento das teses e dissertações nacionais produzidas entre 1991 e 2016 que abordam essa relação”, Vidya, v. 37, n. 1, 2017, p. 253-272.

9. Bernardo Valentim Riceto, Pedro Donizete Colombo Junior, “Diálogos entre ciência e religião: a temática sob a ótica de futuros professores”, Revista Brasileira Estudos Pedagógicos, v. 100, n. 254, 2019, p. 169-190. 

10. Frederico Pieper, “Religião: limites e horizontes de um conceito”, Estudos de Religião, v. 33, n. 1, 2019, p. 5-35.

11. McGrath, 2020.

12. Berry, R. J. (Org.), Verdadeiros cientistas, fé verdadeira, 2016.

13. Ibidem, p. 12.

14. Elane C. Soares, et al., “Uma extensão universitária que promove o diálogo entre Ciência e Fé”, Anaisda XIV Mostra de Extensão da UFMT, 2023.

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