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Metafísica e Teologia escapando da fogueira

Agnaldo Cuoco Portugal|

16/02/2024

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Agnaldo Cuoco Portugal

Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília. Tem graduação em Filosofia e Antropologia pela Universidade de Brasília, especialização em Filosofia da Religião pela PUC Minas, mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Filosofia da Religião pelo King's College da Universidade de Londres. Foi professor visitante na Universidade de Notre Dame (USA) e presidente da Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR).

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Como citar

Portugal, Agnaldo Cuoco. Metafísica e Teologia escapando da fogueira. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Um dos livros mais importantes de um dos filósofos mais influentes da história da filosofia moderna, o escocês David Hume, termina assim (é exatamente o último parágrafo):

Quando percorrermos bibliotecas, persuadidos desses princípios, qual o tamanho do estrago que faremos? Se tomarmos em nossas mãos qualquer exemplar de teologia ou de metafísica escolástica, por exemplo, perguntemos: ele contém algum raciocínio abstrato acerca de quantidade ou número? Não. Ele contém algum raciocínio experimental sobre questão de fato e existência? Não. Jogue-os no fogo, pois só contêm sofisma e ilusão.¹

Os princípios dos quais Hume supunha que estejamos persuadidos são a respeito da origem e justificação do conhecimento com base na experiência sensorial. Em sua versão do empirismo, ele entendia que todo conhecimento tem origem na apreensão do mundo por meio dos sentidos, que forma em nós impressões, as quais dão origem a ideias por um processo guiado por nossas faculdades intelectuais, ideias estas que podem ser organizadas em raciocínios segundo as leis da lógica. Enquanto a experiência nos dá conhecimento sobre o mundo, a razão nos permite raciocinar sobre as ideias abstratas, incluindo aquelas “de quantidade ou número”, que são tratadas pela Matemática. 

Enquanto a experiência nos dá conhecimento sobre o mundo, a razão nos permite raciocinar sobre as ideias abstratas, incluindo aquelas “de quantidade ou número”, que são tratadas pela Matemática.

Essa concepção acerca da divisão do conhecimento ficou conhecida como “a forquilha de Hume”, pois prescreve que só há dois tipos de saber (que podem constar em bibliotecas): ou por demonstração racional, como na Lógica e na Matemática; ou por indução empírica, como nas ciências naturais, na Psicologia e nas ciências sociais. Entre esses dois tipos de saber, haveria uma relação importante quanto ao grau de certeza e de novidade acerca do que se pode conhecer. O racional envolve necessidade lógica, ou seja, se negarmos uma tese bem fundamentada em Matemática ou outra ciência formal, caímos em contradição. Embora tenha grau de certeza máximo, esse conhecimento não nos revela nada sobre a realidade que está no espaço e no tempo, pois se trata apenas de uma relação de ideias, que avalia o quanto elas são consistentes entre si, e é um saber que avança por meio do que permitem as consequências lógicas de seus axiomas, seus postulados, suas definições, seus corolários e outros tipos de ideias. No outro lado da forquilha de Hume, o conhecimento empírico é o que nos informa sobre o que são o mundo e seus acontecimentos. É pela experiência sensorial que sabemos como são as coisas do universo físico, aquelas que se localizam no espaço e no tempo, e que podem ser relacionadas de forma causal. Mas uma afirmação empírica não envolve necessidade lógica. Se negamos que a grama está verde ou que a bola preta caiu na caçapa porque foi atingida pela bola branca com determinada força e em determinado ponto de contato, não caímos em contradição; no máximo, cometemos um erro.

Mesmo ideias mais gerais relativas ao mundo físico podem ser negadas, sem que isso implique contradição. Um exemplo famoso era a crença entre os europeus de que todo cisne seria branco, porque eram dessa cor todos os indivíduos dessa espécie de ave vistos na Europa até o século 18, quando foram avistados cisnes negros na Austrália. O exemplo é de uma generalização indutiva a partir da constatação de casos individuais. A generalização se confirmava a cada nova observação de um cisne branco, mas se mostrou falsa em determinado momento, e é essa possibilidade de se mostrar falso que significa dizer que o conhecimento empírico é contingente e, portanto, provisório e incerto.

Essa restrição a esses dois tipos de conhecimento não deixa espaço para a metafísica, a qual pretende falar das ideias mais gerais sobre a realidade, sobre o que ela é como um todo, seus componentes principais e as relações entre eles. Questões como “o que é a realidade, afinal?”, “o que é o tempo?”, “o que significa dizer que ‘A causa B’?” e “o que distingue algo necessário de algo contingente?” são típicas da Metafísica desde a antiguidade, que tiveram em Aristóteles um grande sistematizador e proponente, mas foram aprofundadas e respondidas por séculos no pensamento ocidental, incluindo o trabalho que Hume chamou de “metafísica escolástica”. Além desses temas, acrescentaram-se a essa área de investigação questões como as da identidade pessoal (“em que sentido podemos dizer – se é que podemos realmente – que permanecemos os mesmos apesar de mudanças como a passagem do tempo, de alterações em nosso corpo ou de outro tipo?”) ou da natureza da liberdade (“o que significa dizer que um agente é livre?”, “é possível compatibilizar a liberdade com a limitação ou mesmo a ausência de opções de escolha? Em que sentido?”). As respostas que se dão a essas perguntas não têm a força de uma demonstração com necessidade lógica, nem são sobre algo constatável pela percepção sensorial.

A forquilha de Hume deixa de fora também a Teologia, entendida como uma “ciência do divino”. Deus não é um objeto no tempo e no espaço, e, nesse sentido, não é acessível aos sentidos. Por outro lado, ao dizerem que Deus é necessário, os teólogos falam de necessidade aplicada à realidade, a mais real que há, fundamento de todas as outras e que não pode deixar de ser. Não se trata de uma necessidade lógica, pois não é uma relação entre ideias apenas, mas sim do que é real. Além disso, negar a existência de Deus não é evidentemente contraditório. O “evidentemente” se deve em respeito àqueles que entendem ser absurdo negar que Deus existe. Eles defendem que negar a existência de Deus implica ser incoerente com seu próprio conceito de ser maximamente perfeito, ao qual não poderia faltar a qualidade de existir, que seria uma perfeição. Essa é uma das maneiras de apresentar o argumento ontológico que, em linhas gerais, apresenta conclusões sobre a existência de Deus a partir do que devemos supor (ou seja, a partir do entendimento e da compreensão que temos sobre ele) quando usamos o termo “Deus”. Em todo caso, precisaríamos postular outro tipo de necessidade se restringirmos a necessidade lógica a uma relação entre ideias, supondo que Deus não é apenas uma ideia, mas a realidade suprema. Assim, a forquilha de Hume deixa mesmo sem fundamento a Metafísica e a Teologia.

Um problema, porém, é que a forquilha de Hume e as características dos dois tipos de conhecimento que ela permite haver são bases para a elaboração de um dilema que pode ser construído assim:

  1. ou o conhecimento humano é do tipo demonstrativo (das ciências formais, como a Matemática) ou é do tipo empírico (com origem na percepção sensorial);
  2. o conhecimento demonstrativo não nos informa nada do mundo, mas apenas relaciona ideias;
  3. o conhecimento empírico informa sobre o mundo;
  4. o conhecimento demonstrativo é necessário e certo;
  5. o conhecimento empírico é contingente e incerto;
  6. logo, ou o conhecimento humano é necessário, mas não informativo, ou é contingente, mas incerto.
 

A conclusão não é muito animadora para o conhecimento humano, mas, como diria um defensor da forquilha de Hume, a verdade às vezes é dura, e, mesmo que seja desagradável, é mais honesto aceitar as coisas como são. Esse princípio moral parece correto, mas sua alusão parece gerar outro problema para essa distinção entre tipos de conhecimento.

Quando dizemos que é correto aceitarmos as coisas como são, mesmo que nos sejam desagradáveis, estamos dizendo que essa é uma verdade ética e que alguns a conhecem e praticam, enquanto outros a ignoram. Se for isso mesmo, que tipo de conhecimento é esse? Seria uma questão de fato, com origem na experiência? Ou seria apenas uma relação entre ideias? A honestidade em nos conformarmos diante dos fatos é algo que aprendemos pela experiência? Admitindo que não se trata de algo que percebemos sensorialmente, uma regra moral seria apenas uma convenção linguística ou a expressão de uma realidade não empírica?

E o que dizer da própria distinção entre conhecimento formal e conhecimento empírico? Negá-la não é contraditório, ou seja, o enunciado dessa distinção não é parte do conhecimento formal e tampouco parece ser algo que se constata pela experiência dos sentidos. Em outras palavras, a forquilha de Hume é apresentada como uma verdade acerca do conhecimento. Ela não é uma verdade lógica, no sentido de ser contraditório negá-la. Mas, então, que experiência sensorial permite obtê-la? Não se trata de algo que está em um espaço e tempo definidos, cuja verdade nossos sentidos permitem captar, como no exemplo de simplesmente olharmos pela janela e vermos que a grama está verde. Ao contrário, nossos sentidos permitem, por exemplo, ver livros de Metafísica e Teologia em bibliotecas. Contudo, mesmo assim, é possível dizer (falsamente, talvez) que eles não têm valor cognitivo, e isso é feito com base em um princípio que postula haver dois tipos de conhecimento apenas e que não incluem essas duas áreas tradicionais de pesquisa. Mas o próprio princípio, que é afirmado como verdadeiro, não se encaixa em nenhum dos dois únicos tipos de conhecimento que ele afirma haver. Ou seja, ele nega a si mesmo.

Mas o próprio princípio, que é afirmado como verdadeiro, não se encaixa em nenhum dos dois únicos tipos de conhecimento que ele afirma haver. Ou seja, ele nega a si mesmo.

Esse sério problema aplicado a uma tese que rejeita a Metafísica e a Teologia como áreas do conhecimento foi uma das razões para o fortalecimento dessas áreas em novas bases a partir da segunda metade do século 20 nos meios acadêmicos mais influentes. No centro desse processo está o debate acerca da noção de necessidade. Restringi-la à relação lógica entre afirmações acaba levando ao problema apontado anteriormente. Por isso, trabalhos como Naming and Necessity (de 1980), de Saul Kripke,² e The Nature of Necessity (de 1974), de Alvin Plantinga,³ abriram novamente a possibilidade de falar de necessidade aplicada à realidade. Tal como a reflexão filosófica já defendia na Antiguidade, não há nada de errado em dizer que “x é essencialmente y” e que isso quer dizer que x tem qualidades y que ele não pode deixar de ter, ou seja, que x é necessariamente y. Assim, dizer que “a universidade é essencialmente uma instituição multidisciplinar criada para formar pessoas em nível de escolaridade avançado e produzir conhecimento” é postular que essas qualidades não podem faltar a esse tipo de realidade. Isso ajuda a entender, por exemplo, porque o trabalho ali é interminável (há sempre gente entrando e saindo, e a busca pelo conhecimento sempre abre novas fronteiras) e se apresenta como um critério para julgar se estamos diante de uma universidade realmente (e não apenas “no nome”) ou em que grau.⁴

Não só a Metafísica experimentou um novo impulso com as recentes contribuições para o conceito de necessidade, mas também a Teologia. A contribuição de Plantinga explicitamente aplica esse conceito a Deus e termina o livro mencionado anteriormente com uma versão do argumento ontológico. Outro exemplo importante de como o debate teológico ganhou novo impulso com a ampliação do conceito de necessidade é God and Necessity (de 2012), de Brian Leftow.⁵ Não são só a Lógica e a Metafísica (e a Ética) que precisam do conceito de necessidade; o conhecimento científico o pressupõe também. Uma lei natural descreve não apenas o modo como o mundo físico de fato se dá, mas que ele não pode ser de outra maneira. Mesmo que as leis naturais sejam passíveis de revisão pelos testes empíricos, o objetivo é o de encontrar leis que exprimam como o mundo se comporta necessariamente. Parte do argumento de Leftow é que é preciso uma teoria que justifique a existência de verdades necessárias e que, ao mesmo tempo, não as torne produtos contingentes da psicologia ou de culturas humanas, sob pena de cairmos no dilema gerado pela forquilha de Hume. O teísmo seria um bom candidato a cumprir essa tarefa, ao defender que as verdades necessárias são ideias divinas (e Deus é Ser Necessário) e que podem ser conhecidas por nós (ainda que com limitações) graças à possibilidade de interação entre Deus e a humanidade. 

O teísmo seria um bom candidato a cumprir essa tarefa, ao defender que as verdades necessárias são ideias divinas (e Deus é Ser Necessário) e que podem ser conhecidas por nós (ainda que com limitações) graças à possibilidade de interação entre Deus e a humanidade.

É preciso reconhecer que Hume estava certo ao apontar para a crescente importância das ciências formais e empíricas a partir do século 18, inclusive porque os desenvolvimentos recentes da Metafísica e mesmo da Teologia se beneficiam grandemente de desenvolvimentos na Lógica e nas ciências naturais e humanas. Mas hoje é possível dizer que não havia por que jogar aqueles livros na fogueira.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. David Hume, An Inquiry concerning Human Understanding, 1999 [originalmente de 1748].

2. Saul Kripke, Naming and Necessity, 1980.

3. Alvin Plantinga, The Nature of Necessity, 1974.

4. Para aprofundar o conceito de explicação metafísica, ver: Tuomas Tahko, An Introduction to Metametaphysics, 2015.

5. Ver: Brian Leftow, God and Necessity, 2012.

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