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Georges Lemaître, o preconceito antirreligioso e a “má integração” entre ciência e fé

Marcio Antonio Campos|

24/03/2023

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Marcio Antonio Campos

Jornalista com graduação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalha na Gazeta do Povo (Curitiba-PR) desde 2004, e mantém no jornal a coluna Tubo de Ensaio – Ciência e Religião, a primeira do gênero em um grande jornal brasileiro. É coautor de “Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – Reflexões sobre ciência e fé”.

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Como citar

CAMPOS, Marcio Antonio. Georges Lemaître, o preconceito antirreligioso e a “má integração” entre ciência e fé. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

O físico e astrônomo belga Georges Lemaître (1894-1966) estava qualificado como pouquíssimos para ser uma voz dominante em seu tempo na defesa do bom diálogo entre ciência e fé. Sacerdote católico, ele foi o pioneiro de uma das teorias científicas mais importantes do século 20, a do Big Bang, que ele primeiramente chamou de “hipótese do átomo primordial”. E uma voz como a sua era mais que necessária naquela época: quando Lemaître fazia seus estudos na Universidade de Cambridge (na Inglaterra) e no Massachusetts Institute of Technology (MIT, nos EUA), já havia cinco décadas que John William Draper havia lançado o seu History of the Conflict between Religion and Science [História do conflito entre religião e ciência], e três décadas que Andrew Dickson White havia publicado History of the Warfare of Science with Theology in Christendom [História da guerra da ciência com a tecnologia na cristandade], envenenando o debate com sua fake history. No entanto, Lemaître não se engajou ativamente nesse campo, ao menos no auge de sua carreira científica: quando perguntado, especialmente por jornalistas, deixava claro que não via conflito algum entre ciência e fé, mas se absteve de uma presença maior nesse debate. Isso se deve não a qualquer relutância de Lemaître, mas à sabedoria de quem sabia estar se movendo em um ambiente bastante preconceituoso com relação à religião.

Uma teoria sobre um possível início do universo já era algo suficientemente revolucionário em uma época na qual o consenso científico estava do lado do universo estático – Arthur Eddington, orientador de Lemaître, considerava “repugnante” a ideia de que o universo tivesse tido um momento inicial, como Lemaître afirma logo no início de seu curto comentário intitulado “The beginning of the world from the point of view of quantum theory”, na revista Nature de 9 de maio de 1931. Que algo assim fosse proposto por um padre católico, no entanto, era ainda mais complicado, visto que a comunidade científica da época parecia incapaz de analisar sua teoria apenas por seus méritos científicos. Por mais que os dados sobre a expansão do universo já estivessem aparecendo, graças ao trabalho de Edwin Hubble e do próprio Lemaître, sugerir um início para o universo era algo parecido demais com o Fiat Lux bíblico para que outros cientistas deixassem passar batido o fato de tal proposta vir de um padre.

Uma teoria sobre um possível início do universo já era algo suficientemente revolucionário em uma época na qual o consenso científico estava do lado do universo estático

Lemaître estava consciente dessa dificuldade, e lutou por anos com unhas e dentes para que seus colegas avaliassem a ideia do “átomo primordial” única e exclusivamente pelo seu conteúdo, e não por quem a estava sugerindo. Ele teria de insistir nisso mesmo décadas depois de propor o Big Bang. Em 1958, ainda precisava exibir argumentos como: “até onde posso ver, tal teoria [do átomo primordial] está totalmente fora de qualquer discussão religiosa ou metafísica. Ela deixa o materialista livre para negar qualquer Ser transcendental”. Isso porque alguns de seus adversários intelectuais jamais desistiram de tentar pregar no Big Bang a pecha de ser apenas um cavalo de Troia para a ideia de criação (e, consequentemente, de um Criador): foi o caso de Fred Hoyle, defensor do universo estático até sua morte, em 2001, e criador da expressão “Big Bang”, um deboche que, no fim das contas, acabou não funcionando. Outro caso emblemático foi o de Albert Einstein; ainda que ele tivesse posteriormente se rendido à evidência, inicialmente rejeitou a sugestão de um início para o universo. As mídias sociais costumam reproduzir uma frase sua – “essa é a mais bela e satisfatória explicação da criação que já ouvi”, dita no começo dos anos 1930, depois de uma palestra de Lemaître – como evidência de que Einstein estivesse endossando o Big Bang, quando, na verdade, o estava ironizando, apertando o calo do belga onde mais doía (reparem no uso da palavra “criação”).

Esta, no entanto, é apenas metade da luta de Lemaître. Não era suficiente ter de convencer cientistas preconceituosos de que sua teoria não era nenhum subterfúgio para transformar a noção religiosa de criação em mainstream científico; o astrônomo-sacerdote também precisou brigar para conter o entusiasmo dos religiosos para quem o Big Bang efetivamente era uma “bela e satisfatória explicação da criação”; para o padre, tal tipo de argumento era uma espécie de “má integração” entre ciência e fé (para usar uma das famosas categorias de Ian Barbour). No fim das contas, os dois embates estavam interligados: quanto mais religiosos invocassem o Big Bang como “prova” da existência de um Criador, mais o preconceito antirreligioso da comunidade científica se consideraria justificado ao rejeitar a teoria de Lemaître de antemão, sem analisar suas virtudes (uma atitude bastante anticientífica, é verdade). Tratava-se, então, de defender o Big Bang pelo que ele era: uma explicação puramente científica sobre o início do universo e nada mais (nem menos) que isso. E, neste processo, Lemaître teve de corrigir até mesmo o papa Pio XII.

Pio XII, que governou a Igreja Católica entre 1939 e 1958, era um entusiasta da ciência moderna. Foi o primeiro a abordar, mesmo que de passagem, a Teoria da Evolução em uma encíclica, em 1950 – sem afirmar que era verdadeira ou falsa, disse que ela era compatível com a doutrina católica, desde que se ativesse aos aspectos puramente materiais, sem tirar conclusões metafísicas. No ano seguinte, Pio XII falou do Big Bang. Em um discurso à Pontifícia Academia de Ciências (da qual Lemaître fazia parte desde 1936), o papa fez uma série de afirmações que alarmaram o padre-astrônomo:

De fato, a verdadeira ciência […] quanto mais avança, tanto mais descobre a Deus, quase como se Ele estivesse esperando atrás de cada porta que a ciência abre.

Se essas cifras [o papa havia listado uma série de dados sobre o universo] podem nos deixar atônitos, por outro lado ao mais simples dos crentes elas não trazem um conceito novo e diferente daquele contido nas primeiras palavras do Gênesis, ‘no princípio’, ou seja, o início das coisas no tempo. A essas palavras, elas [as cifras sobre o universo] dão uma expressão concreta e quase matemática.

Realmente parece que a ciência moderna, olhando para milhões de séculos atrás, conseguiu se tornar testemunha daquele primordial Fiat lux, pelo qual do nada irrompe, com a matéria, um mar de luz e radiação, enquanto as partículas químicas dos elementos se separam e se reúnem em milhões de galáxias.

[a ciência confirma,] com a concretude própria das provas físicas, a contingência do universo e a fundamentada dedução sobre a época em que o cosmo saiu das mãos do Criador. A criação no tempo, então; e, portanto, um Criador: Deus! É essa a voz, ainda que não explícita e nem completa, que Nós pedíamos à ciência, e que a atual geração humana espera dela.

Pio XII não mencionou o Big Bang pelo nome, mas nem era necessário; qualquer um minimamente familiarizado com o assunto, como eram os membros da Pontifícia Academia de Ciências, certamente entenderia a mensagem. Lemaître decidiu agir. Em 1952, o papa faria um novo discurso, desta vez no congresso da União Astronômica Internacional, que seria realizado em Roma. De alguma forma – segundo algumas fontes, Lemaître conversou com o padre jesuíta inglês Daniel O’Connell, sismólogo, astrônomo e assessor de Pio XII para assuntos científicos –, o belga conseguiu convencer o papa a não repetir os argumentos que associavam o Big Bang à criação. E, em um grande sinal de respeito pela autoridade papal, jamais tornou pública a sua crítica, afirmando, em 1963 (cinco anos depois da morte de Pio XII, portanto), que, “quanto à atitude do Soberano Pontífice, é evidente que ela estava dentro do terreno que lhe é próprio e que não tem relação com as teorias de Eddington ou as minhas”.

Mas qual é, afinal, o grande problema da “apologética do Big Bang, para usar a expressão de William Carroll, professor da Universidade de Oxford? É a confusão entre “criação” e “começo”. O Big Bang é uma teoria sobre o começo e a evolução do universo – mais especificamente, sobre o começo deste universo (já que pode ter havido outros universos “antes” deste, em uma sequência de Big Bangs e Big Crunches, por exemplo). Mas o Big Bang não nos diz nada sobre se o universo foi criado ou não, se existe um Criador ou não; isso é tarefa para a filosofia e a teologia. A fé nos diz que Deus criou o universo a partir do nada – e reparem que o Big Bang jamais postulou algo assim, limitando-se a propor que o universo começou com um estado infinitamente denso e quente, ou seja, algo já existente, não o “nada”; aliás, esse “átomo primordial” pode tanto ser resultado de um ato criador direto de Deus quanto de algum processo natural como um Big Crunch, mas essa resposta não é dada pela teoria do Big Bang. E, mesmo que o nosso universo tenha sido precedido por outro que se contraiu, ou mesmo que exista o famoso “multiverso”, isso em nada “comprova” ou “demonstra” que Deus é desnecessário, pois Ele segue sendo a causa de tudo o que existe. Infelizmente, hoje o mais frequente é que cientistas, filósofos e teólogos desconheçam os conceitos uns dos outros; é assim que cientistas como Stephen Hawking e Lawrence Krauss se julgam capazes de descartar Deus com “criações a partir do nada” em que seu “nada”, na verdade, é algo, mesmo que não material.

O Big Bang é uma teoria sobre o começo e a evolução do universo – mais especificamente, sobre o começo deste universo (já que pode ter havido outros universos “antes” deste, em uma sequência de Big Bangs e Big Crunches, por exemplo). Mas o Big Bang não nos diz nada sobre se o universo foi criado ou não, se existe um Criador ou não; isso é tarefa para a filosofia e a teologia.

Como afirma Dominique Lambert, biógrafo e um dos principais estudiosos da vida e obra de Georges Lemaître, ele protegeu a fé do reducionismo científico e protegeu a ciência da apropriação apologética, sem contradizer sua convicção mais profunda de que essas duas esferas são meios de buscar a única verdade. A conciliação entre a ciência e a religião estava não no discurso, mas na pessoa de Lemaître. O cientista que convenceu a comunidade científica de sua época de que sua teoria tinha mérito e o padre que convenceu seu líder máximo a não usar essa teoria para tirar conclusões metafísicas indevidas é o mesmo que escreveu estas palavras: 

“o pesquisador cristão avança livremente, com a segurança de que em sua pesquisa não pode surgir nenhum conflito real com sua fé. Talvez até mesmo ele tenha uma certa vantagem sobre o colega não crente. Ambos se esforçam para decifrar a intrincada multiplicidade do palimpsesto da natureza, onde estão superpostos e confundidos os traços das diversas etapas da longa evolução do mundo. Talvez o crente tenha a vantagem de saber que o enigma tem solução, que a mensagem subjacente é, no fim das contas, a obra de um ser inteligente, e que, portanto, o problema colocado diante dele pela natureza está lá para ser resolvido; e que sua dificuldade é, sem dúvida, proporcional à capacidade presente ou futura da humanidade”.¹

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Dominique Lambert, Ciencia y fe en el padre del Big Bang: Georges Lemaître, 2015.

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