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ARTIGO

Lutero responde à crise ambiental

Viktorya Zalewski Baracy|

02/01/2024

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Viktorya Zalewski Baracy

É licenciada em Letras – Português e Alemão pela UFRGS, mestre em Letras (Alemão como língua estrangeira) pela UFPR e graduanda em Teologia na Faculdade Luterana de Teologia.

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Como citar

Baracy, Viktorya Zalewski. Lutero responde à crise ambiental. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Enquanto escrevo esse artigo, o Brasil vive uma fustigante onda de calor. O Instituto Nacional de Meteorologia apontou que, entre os meses de julho a outubro, as temperaturas ficaram acima da média histórica, e 2023 provavelmente será o ano mais quente da história. Manaus registrou a terceira pior qualidade do ar do mundo, num nível de alto risco à saúde. Meu marido, conversando com um amigo que mora na capital do Amazonas, ouviu dele o seguinte: “Estamos esquecidos”.

Além disso, a região Sul do país sofreu com fortes chuvas. Após a passagem de um ciclone extratropical em Muçum, uma cidade no Rio Grande do Sul, quase metade das habitações da cidade ficaram inabitáveis. No estado, até meados de setembro, mais de 20 mil pessoas ficaram desalojadas. Algumas cidades foram tão destruídas que precisaram desenvolver um plano de reconstrução. Os acontecimentos são causados por um El Niño somado às mudanças climáticas. E a tendência é que o ano de 2024 seja ainda pior.

A crise ambiental é uma crise teológica

Enquanto diversas ações se mostram necessárias e urgentes frente às mudanças climáticas, a igreja cristã, em um país majoritariamente cristão, precisa começar pela mudança de seu próprio coração e de mentalidade. A verdade é que as nossas ações sobre o meio ambiente são fruto da visão teológica que temos dele. A crise ambiental também é uma crise teológica, como nos afirma o dr. Tiago Pereira: “Ao reconhecer que a crise ambiental é ecológica, científica, econômica e política, mas também moral e espiritual, entendemos que a igreja tem um papel fundamental na busca por respostas para essas múltiplas questões”.¹

De que forma nossa visão sobre a natureza influencia a maneira com a qual cuidamos dela? É simples: para o autor Norman Wirzba, se não acreditamos que a vida foi criada por Deus e é sustentada por ele, passamos a vê-la como produtos da completa aleatoriedade, como fragmentos sem um todo que lhes dê sentido, pois já não há um Deus Criador. A Criação e suas criaturas – inclusive os seres humanos – perdem seu valor,² podendo ser explorados livremente para nossa exclusiva satisfação. Confessamos a Deus em voz alta, mas, em nosso coração e prática, nos tornamos seculares.

Confessamos a Deus em voz alta, mas, em nosso coração e prática, nos tornamos seculares.

Pensando em corrigir isso, lembrei de alguns subsídios importantes que minha tradição luterana oferece, especialmente os Catecismos Maior e Menor de Martim Lutero. A visão do reformador sobre a Criação me impactou desde o começo, quando fiz uma primeira leitura de um trecho do Catecismo Maior, há 2 anos. Para Lutero, o Catecismo era a “Bíblia dos leigos, que compreende todo o conteúdo da doutrina cristã que cada cristão precisava saber para sua bem-aventurança”.³ Os textos contidos nos Catecismos eram considerados os textos fundamentais, que não deveriam ser apenas aprendidos, mas também repetidos como exercício espiritual, não reclusos à vida monástica, mas disponíveis a todo leigo:⁴ “Preciso continuar lendo e estudando diariamente, e ainda assim não me saio como gostaria, precisando continuar sendo criança e aluno do catecismo”.⁵ Creio que o reformador pode muito nos ajudar nesse sentido.

“Sou criatura de Deus”

Para uma teologia de preservação ambiental, dois dos pontos mais relevantes dos Catecismos são as ênfases em nossa criaturidade e finitude diante do Deus Criador, que podem ser percebidos nas explicações de Lutero sobre o Decálogo, o Credo e o Pai Nosso.

O primeiro artigo do Credo Apostólico (“Creio em Deus, o Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra”) é explicado no Catecismo Menor assim:

Que significa isto? Resposta: Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas; e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os membros, razão e todos os sentidos e ainda os conserva; além disso me dá vestes, calçado, comida e bebida, casa e lar, esposa e filhos, campos, gados e todos os bens. Supre-me abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida [...].⁶

Aqui, não aprendemos apenas quem Deus é, mas também quem nós somos: criaturas profundamente dependentes de Deus. Sobre isso, o teólogo Johannes Schwanke explica que a Criação não é um evento abstrato, mas sim algo profundamente pessoal.⁷

No Catecismo Maior, Lutero esclarece: “A intenção desse [primeiro] artigo, então, é que a gente se dê por conta que ninguém possui nem consegue sustentar por si próprio a vida, nem tudo aquilo que acima foi enumerado e ainda possa ser enumerado, por menor e mais insignificante que seja. Tudo isso está compreendido na palavra ‘Criador’”.⁸ Lutero conclui: “[…] tudo isso que possuímos, mais aquilo que está nos céus e na Terra, é dado, mantido e preservado diariamente por Deus”.⁹ Norman Wirzba, de modo semelhante, comenta: “Água potável e saudável, campos e florestas férteis e colheita abundante não são acontecimentos banais. Eles indicam um mundo no qual as criaturas e os ambientes estão em constante comunicação entre si e Deus, na qualidade de seu Criador e Sustentador”.¹⁰

Assim, Deus não “apenas” cria, mas continua intimamente envolvido com sua criação, sustentando-a e cuidando de suas criaturas, como Lutero aponta na explicação do primeiro mandamento do Decálogo:

As criaturas são apenas a boca, o canal, o veículo pelo qual Deus concede tudo: à mãe, ele dá seio e leite para a criança; para o sustento, ele concede grãos e toda espécie de frutos da terra. Nenhuma criatura consegue produzir esses bens por si própria.¹¹

Assim, Deus não “apenas” cria, mas continua intimamente envolvido com sua criação, sustentando-a e cuidando de suas criaturas [...]

Isso não é lindo? Falando das plantas, Norman Wirzba parece apontar algo semelhante, embora com outra ênfase: “[As plantas] são criaturas amadas e abençoadas por Deus, o que significa que não são apenas os objetos da atenção e do cuidado de Deus, mas também um meio pelo qual Deus cultiva, sustenta o solo e cria a atmosfera para o mundo”.¹² Sobre a oração do Pai-Nosso, Lutero ainda diz: “Pois se Deus não o mandasse [o alimento] crescer, abençoando-o e preservando-o na terra, jamais teríamos pão para tirar do forno, nem para colocar na mesa”.¹³

O reformador afirma que a consciência de um Deus Criador deve produzir em nós humildade e maravilhamento:

Se acreditássemos com sinceridade, também agiríamos de acordo, não andaríamos por aí tão orgulhosos, não mostraríamos riqueza, o poder e a glória, como se as pessoas tivessem que nos temer e servir. É assim que procede o mundo errado e infeliz, soçobrado em sua cegueira, abusando de todas as bênçãos e dádivas de Deus para atender sua arrogância, ganância, deleite e prazer, não dando a mínima para Deus, no sentido de lhe agradecer ou de reconhecê-lo como Senhor e Criador. Se acreditássemos nesse artigo, ficaríamos assustados e humildes!¹⁴

“O que lhe fizer falta, espere-o de mim, procure junto a mim”

Ser criatura e dependente de Deus deve implicar nossa confiança nele. Quando confiamos, não precisamos roubar ou acumular o desnecessário. Wirzba explica: “Abraçar a condição de criatura é confiar que Deus fornece os dons de que precisamos para viver e que não precisamos tomar o mundo à força”. No entanto, se tentamos ser deuses, tornamo-nos destrutivos, como nos mostram “zonas de guerra, lixões tóxicos, bairros abandonados, desertos e pântanos alimentares, zonas de extração mineradora, campos agrícolas devastados, cursos de águas envenenados, megafavelas, campos de refugiados, e presídios”.¹⁵

No mesmo sentido, Lutero via a ganância humana como conectada à nossa desconfiança de Deus. O próprio pecado original aponta para um ser humano encurvado sobre si mesmo, que desconfia de Deus e que deseja ser independente.¹⁶ Essa incredulidade afronta diretamente o primeiro mandamento do Decálogo: “Você não vai ter outros deuses além de mim!”. 

Sobre esse mandamento, Lutero escreve:

Há quem pense que tem Deus e não precisa de mais nada, se tiver dinheiro e muitos bens, fiando-se nisso com tanta convicção a ponto de se gabar que não está nem aí para ninguém. Ora, essa pessoa também tem um deus, que se chama Mâmom, isto é, dinheiro e posses, nos quais deposita toda a sua confiança. Esse, aliás, é o ídolo mais comum sobre a face da terra.¹⁷

Ele continua: “aquela pessoa que se gaba de grande erudição, inteligência, poder, prestígio, relações e influência, depositando nesses sua confiança, também tem um deus, mas não o Deus autêntico e único”.¹⁸ Mais adiante, Lutero adverte: “Barrigudos poderosos, ricos e exibidos, que resistem em cima do seu Mamom, pouco se importando se Deus está irado ou rindo, quando ousam enfrentar a ira dele, se dão mal”.¹⁹

Quantas vezes o ser humano toma o que não é seu, ou toma mais do que precisa, para alimentar a própria ganância? E nesse movimento, toda a Criação sofre. Falta-lhe um olhar para Deus. Para não adorar a outros deuses, então, a solução do reformador é a confiança nEle: “deixe somente eu ser o seu Deus e nunca procure nenhum outro, ou seja, o que lhe fizer falta, espero-o de mim, procure-o junto a mim”.²⁰

Quantas vezes o ser humano toma o que não é seu, ou toma mais do que precisa, para alimentar a própria ganância? E nesse movimento, toda a Criação sofre. Falta-lhe um olhar para Deus.

Conclusão

O despertar de uma consciência ambiental pode e deve ser apoiado por nossas tradições teológicas. A mudança urgente em nossa visão talvez não precise de novas, mas velhas raízes, pois o olhar adequado à Criação passa pelo olhar ao Criador. Como afirmou o teólogo Joseph Sittler:

Quando direcionamos a atenção da igreja para uma definição da relação cristã com o mundo natural, não estamos nos afastando de ideias teológicas sérias e apropriadas; estamos nos posicionando bem no centro delas. Existe uma motivação profundamente enraizada e genuinamente cristã para atentarmo-nos à criação de Deus [...].²¹

Como Lutero, que possamos nos entender como criaturas finitas e profundamente dependentes de Deus – aquele que sustenta a Criação e nos concede o que precisamos, sem que tenhamos que acumular ou tomar à força.



Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Tiago Pereira, “Ecoteologia, mudanças climáticas e o cultivo de virtudes ecológicas”, Blog ABC², 8 de setembro de 2021. Clique aqui para acessar.

2. Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: Como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, 2023, p. 163-171.

3. Volker Leppin e Gury Schneider-Ludorff (ed.), Dicionário de Lutero, 2021, p. 194-195.

4. Thorsten Dietz, “Espiritualidade evangélica como formação do coração e da consciência: ‘Exercício’ como conceito fundamental da espiritualidade luterana”, Reforma e Educação, 2013, p. 220.

5. Martim Lutero, Catecismo Maior, 2012, p. 19.

6. Martim Lutero, “Catecismo Menor”, Livro de Concórdia: As Confissões da Igreja Evangélica Luterana, 2016, p. 370.

7. Johannes Schwanke, “Martin Luther’s Theology of Creation”, International Journal of Systematic Theology, v. 18, n. 4, 2016, p. 400.

8. Lutero,  2012, p. 79.

9. Ibidem, p. 80

10. Wirzba, 2023, p. 128.

11. Lutero, 2012, p. 30, grifo meu.

12. Wirzba, 2023, p. 112, grifo do autor.

13. Lutero, 2012, p. 99.

14. Ibidem, p. 80.

15. Wirzba, 2023, p. 236.

16. Volker Leppin e Gury Schneider-Ludorff (ed.), 2021, p. 837.

17. Lutero, 2012, p. 28.

18. Ibidem.         

19. Ibidem, p. 31.

20. Ibidem, p. 26.

21. Joseph Sittler, Gravity and Grace, 2005, p. 4.

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