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ARTIGO

O problema da dupla natureza de Cristo

Fábio Maia Bertato|

02/02/2024

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Fábio Maia Bertato

Doutor em Filosofia, Pesquisador e atual Diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), da UNICAMP, e Professor de Filosofia da Academia Atlântico.

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Como citar

Bertato, Fábio Maia. O problema da dupla natureza de Cristo. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Uma doutrina central da fé cristã é a que diz respeito à dupla natureza de Cristo. Segundo tal doutrina, Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A crença na divindade de Cristo trouxe diversas dificuldades teológicas e lógicas para os primeiros autores cristãos. Juntamente com a doutrina trinitária, os ensinamentos cristológicos fundamentais foram estabelecidos nos primeiros concílios da Igreja, em contraposição a uma série de propostas consideradas heréticas pela ortodoxia cristã.

Do ponto de vista lógico, uma primeira tentativa de se mostrar que uma doutrina é falsa (ou irracional) é sustentar a sua inconsistência. Nessa direção, opositores da dupla natureza de Cristo têm procurado mostrar que a doutrina cristológica é contraditória. Tais opositores tentam evidenciar contradições dedutíveis a partir das seguintes premissas:

(C1) Cristo é verdadeiro Deus.

(C2) Cristo é verdadeiro homem.

Para isso, indicam atributos humanos e divinos que se opõem mutuamente, tais como a mutabilidade e a imutabilidade, mortalidade e imortalidade etc. Como um exemplo, consideremos as seguintes premissas:

(C3) Deus é imutável.

(C4) Todo homem é mutável.

O seguinte argumento é uma tentativa de se evidenciar uma contradição derivada de tais premissas:

  1. Cristo é Deus.                                           [Por C1]
  2. Deus é imutável.                                      [C3]
  3. Logo, Cristo é imutável.                         [De 1 e 2]
  4. Mas Cristo é homem.                              [Por C2]
  5. Todo homem é mutável.                        [C4]
  6. Logo, Cristo é mutável.                          [De 4 e 5]
  7. Então, Cristo é imutável e mutável.      [3 e 6]

 

Dessa maneira, ficaria estabelecida uma contradição a partir das premissas cristológicas C1 e C2. Mas seria tal conclusão realmente contraditória? De imediato, se fosse uma legítima contradição, isso não seria um grande problema caso se adotasse alguma postura em consonância com certas interpretações paraconsistentes, nas quais contradições são toleráveis sem necessariamente se eliminar a racionalidade subjacente ao discurso religioso em questão.¹ Todavia, a prática tradicional em filosofia da religião é adotar uma abordagem de acordo com a lógica clássica.

Procurarei mostrar que a suposta contradição derivada das premissas cristológicas é apenas aparente. Para tanto, consideremos um exemplo que procura mostrar que um raciocínio análogo ao aplicado anteriormente nos obrigaria a concluir que há uma situação real (isto é, no nosso mundo) que seria contraditória.

É bem sabido que no Brasil há diversos descendentes de imigrantes italianos. Alguns deles têm reconhecida a sua dupla cidadania: brasileira e italiana. Suponhamos que Luca seja uma pessoa nessa situação e que possua dois passaportes, um brasileiro e um italiano. Dessa maneira, são verdadeiras as seguintes sentenças:

(L1) Luca é portador de um passaporte brasileiro.

(L2) Luca é portador de um passaporte italiano.

Também é bem sabido que todo brasileiro necessita de visto para visitar os Estados Unidos da América. O mesmo não se dá para os italianos. Para ingressar nos Estados Unidos para estadias de até 90 dias, um cidadão italiano precisa apenas de uma autorização, que pode ser solicitada por sistema eletrônico – um procedimento muito mais simples do que a obtenção de um visto junto à embaixada americana. Assim, para um período conforme o indicado e sem outros possíveis impeditivos, são verdadeiras as seguintes proposições:

(L3) Para ingressar nos Estados Unidos, um portador de passaporte brasileiro necessita de visto.

(L4) Para ingressar nos Estados Unidos, um portador de passaporte italiano não necessita de visto.

Para uma viagem bem-sucedida aos Estados Unidos, se Luca apresentar seu passaporte brasileiro, então o visto é obrigatório. Se ele apresentar seu passaporte italiano, então o visto não é requerido. Sendo assim, com base nas sentenças L1, L2, L3 e L4, é fácil concluir que

(L5) Luca necessita e não necessita de visto para ingressar nos Estados Unidos.

A sentença L5 indica uma contradição real? Se consideramos que as afirmações que constituem a “contradição” são sob aspectos distintos, então tal contradição deve ser apenas aparente.  Tal perspectiva está de acordo com o Princípio de Não Contradição (PNC), conforme proposto por Aristóteles. Uma das versões de tal princípio é a seguinte:

(PNC) Algo não pode ser e não ser, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto

Em interpretação lógica, isso quer dizer que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa, ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto. O PNC nos garante, portanto, que não existem contradições reais. Segundo o Estagirita, tal princípio é “o mais certo de todos os princípios”, de modo que todo aquele que demonstrar alguma coisa tem tal princípio como uma “crença última”, que também é, por natureza, o ponto de partida de todos os demais axiomas.³

Se consideramos que as afirmações que constituem a “contradição” são sob aspectos distintos, então tal contradição deve ser apenas aparente.

Para perceber a questão da simultaneidade ou como uma proposição pode ser verdadeira em um instante e falsa em outro, consideremos a seguinte proposição:

(A) Hoje é dia 25 de dezembro.

Tal proposição é verdadeira apenas um dia por ano. Muito provavelmente, quando este texto estiver sendo lido, ela será falsa.⁴ O fato de que a proposição A é verdadeira no Natal e falsa em outros dias significa que estamos diante de uma contradição real? De modo algum, porque, para ferir o PNC, a sentença A teria de ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.

O mesmo vale com relação ao aspecto. A proposição A é verdadeira no dia 25 de dezembro de qualquer ano, no Brasil, às 14h00 no horário de Brasília, mas é falsa no mesmo instante no Japão, pois já será dia 26, às 2h00 da madrugada, na Terra do Sol Nascente. Assim, ao mesmo tempo, sob a perspectiva “brasileira”, a proposição A é verdadeira e, sob a perspectiva “japonesa”, a proposição A é falsa. Contradição? Não, como vimos.

As duas “contradições” acerca da proposição A não negam o PNC. São apenas contradições aparentes. Ou são consideradas em tempos distintos ou sob aspectos distintos.  As “contradições” sobre Cristo e Luca são obtidas, respectivamente, a partir de sentenças consideradas simultaneamente. O ponto é entender que as supostas afirmações contraditórias se dão sob perspectivas distintas.

Sob o aspecto de ser brasileiro, Luca necessita de visto para ingressar nos Estados Unidos. Sob o aspecto de ser italiano, não. Note-se que as proposições L3 e L4 devem ser lidas contextualmente. Isso quer dizer, em uma interpretação descuidada, que Luca poderia ser considerado um contraexemplo para a proposição L3, pois ele seria um portador de passaporte brasileiro que não necessita de visto. Mas a sua condição só seria contraditória com L3 se ele não necessitasse de visto “enquanto” portador de passaporte brasileiro, mas esse não é o caso. A sua “dispensa” de visto se dá por ele ser italiano, e não por ser brasileiro.⁵

Por fim, de modo análogo, podemos compreender que, em virtude de Sua “dupla cidadania”, Jesus pode ser considerado simultaneamente mutável e imutável. Sob o aspecto de sua humanidade, Ele é mutável. Sob o aspecto de sua divindade, Ele é imutável. O mesmo vale para outros atributos humanos e divinos que Ele possua. Sem contradições reais, apenas aparentes.⁶ Isso nos mostra como o discurso cristológico, na perspectiva da lógica clássica, pode ser considerado consistente e/ou racional.

Sob o aspecto de sua humanidade, Ele é mutável. Sob o aspecto de sua divindade, Ele é imutável. O mesmo vale para outros atributos humanos e divinos que Ele possua. Sem contradições reais, apenas aparentes.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Lógicas Paraconsistentes admitem contradições sem trivialização, isto é, podem haver proposições contraditórias em um sistema lógico sem que isso faça com que qualquer proposição seja derivada nesse sistema. Por um lado, há quem interprete tais sistemas paraconsistentes de um ponto de vista informacional, ou seja, contradições aparentes podem surgir a partir de informações contraditórias. Por outro lado, existe uma perspectiva denominada dialeteísta, segundo a qual existem contradições reais.

2. Uma das versões apresentadas por Aristóteles diz – em uma tradução quase literal – “que é impossível o mesmo, ao mesmo tempo, pertencer e não pertencer ao mesmo, segundo o mesmo [aspecto]” [τὸ γὰρ αὐτὸ ἅμα ὑπάρχειν τε καὶ μὴ ὑπάρχειν ἀδύνατον τῷ αὐτῷ καὶ κατὰ τὸ αὐτό]. Aristóteles, Metafísica, 1005b 19-20.

3. Ibidem, 1005b 30-34.

4. Sem contar que, no Natal, as pessoas estão envolvidas em outras atividades familiares, em viagens, etc, e que não costumam ler artigos dessa natureza, a probabilidade de que tal sentença seja verdadeira no momento da leitura é de 1:365 (ou 1:366), ou seja, aproximadamente 0,27%. Isso mostra como também é possível atribuir probabilidades para os valores de verdade de uma proposição.

5. Recordemos que o Apóstolo Paulo exerceu o “privilégio” de ser decapitado por ser cidadão romano. Na sua condição de judeu, sem mais, ele seria muito provavelmente crucificado.

6. Por estranho que pareça, há vários exemplos de crenças e situações que implicam esse tipo de contradição aparente. Muitas pessoas, teístas, cristãs ou não, até mesmo algumas ateias, admitem que o ser humano tem corpo e alma. Consideram também que o corpo é material e a alma é espiritual. Se isso é admitido, então o ser humano é mortal e imortal. Isso segundo aspectos distintos. Sob o aspecto de sua corporeidade, o ser humano é mortal. Sob a perspectiva de seu princípio vital (alma, anima), o ser humano é imortal. Sem contradições reais.

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