Outro dia, topei com o verbete “Ciborgue” no “Dicionário do corpo”¹ e tive uma surpresa ao observar quem foi o autor do texto: Philippe Breton, um psicólogo, com formação em antropologia e sociologia, cuja preocupação é centrada em ciências da comunicação. A pergunta que me fiz (e aos meus alunos posteriormente) foi: “Por que alguém que estuda comunicação se preocuparia com o corpo?” Foi mais uma peça no quebra-cabeça que eu já vinha percebendo há algum tempo: a importância do corpo e, por consequência, da comunidade, na comunicação. É sobre esses pontos que trata este breve texto, pensando em fomentar o debate e indicar caminhos.
Configurações da comunicação na era hiperconectada
Sentimos, pela experiência, que a comunicação nas redes é truncada, com ruídos, cheia de bolhas e câmaras de eco. Com a pandemia, muitos tiveram um choque de realidade ao perceberem que ocorreu uma redução na qualidade das conversações. Diversas vezes, ao mandarmos um recado por aplicativos de mensagens, temos que esclarecer o que queremos dizer; usamos figurinhas, gifs e emojis na tentativa de nos expressarmos melhor. Ainda assim, podemos ser mal entendidos. A percepção quase geral é que a comunicação é melhor presencialmente. A tela acaba reduzindo boa parte do que se queria dizer. Assim, a comunicação mediada pela tecnologia, como afirmava Breton em relação ao pai da cibernética Norbert Wiener, é uma utopia.²
A busca por compreender a comunicação humana, controlá-la e depois aplicá-la em computadores pelos proponentes da cibernética resultou em avanços tecnológicos, mas também em reducionismos significativos na compreensão humana.³ E a cibernética foi e continua sendo a base das redes sociais atuais.
A percepção quase geral é que a comunicação é melhor presencialmente. A tela acaba reduzindo boa parte do que se queria dizer.
A base da cibernética sempre foi a busca pelo controle.⁴ Assim, os algoritmos se erigiram como o fundamento desse controle. Os algoritmos podem ser definidos como “meras soluções ou instruções lógicas (funções matemáticas) direcionadas para a realização de tarefas ou solução de problemas específicos, posteriormente traduzidas em uma linguagem de programação”.⁵ Aí reside o problema, pois os algoritmos, geridos pelas big techs, são concebidos para filtrar e direcionar conteúdos aos usuários. Tudo o que vemos nas redes sociais é fruto de escolhas geridas pelos algoritmos e personalizada para cada indivíduo, por meio dos dados que nós mesmos disponibilizamos ao fazer uso dos aplicativos.⁶ E a busca por furar essa bolha personalizada demanda muito trabalho, por isso as redes são locais privilegiados para formação de bolhas e câmaras de eco. Bolhas são resultados personalizados pelos motores de busca, e câmaras de eco são espaços fechados onde reverberam as mensagens internas dos membros e isolam-se de outras que as contradizem. Por isso, o diálogo nas redes sociais é um caos. Para além de todo esse controle, também falta um componente fundamental para a conversa online: o corpo.
A importância do corpo na comunicação
Iniciei o texto falando de Philippe Breton e sua percepção de que o corpo importa muito na comunicação. Convém retornarmos a essa ideia. Para Breton, assim como para diversos autores, o corpo é essencial para a apreensão humana do mundo e para a comunicação, uma vez que é por meio de expressões corporais que boa parte da comunicação é feita.
O filósofo da ciência Michael Polanyi defendeu que o conhecimento humano era dependente da condição corporal. Polanyi, em seu contexto, criticava o nascente campo da cibernética, que, para ele, apontava a uma forma reducionista de aprendizado e de comunicação, como se o cérebro humano fosse somente dados passíveis de expressão matemática. Polanyi se esforçou para apontar como no processo de conhecimento questões corporais também eram importantes. Ele entendia que o conhecimento era corporificado e pessoal, exemplificando aspectos como a importância da mentoria e do corpo no trabalho de transmissão de conhecimento científico.⁷ Esses insights foram expandidos por Harry Collins, partindo de Hubert Dreyfus, o qual também afirmou que o corpo é fundamental na apreensão da linguagem.⁸ Por isso, para todos esses pensadores, um computador nunca atingiria fluência nessas áreas.
Isso tem impacto até mesmo na pedagogia, como vemos na obra de David I. Smith, Pedagogia cristã.⁹ Aqui, o autor falou acerca de uma “memória corporal”¹⁰ e das práticas incorporadas,¹¹ importantes no processo de ensino-aprendizagem. A importância do corpo no aprendizado e na comunicação humana tem sido corroborada por estudos da neurociência. Stanislas Dehaene, por exemplo, diz que “até os bebês são sensíveis a isso: o contato visual os coloca numa ‘postura pedagógica’ que os incentiva a interpretar informações como importantes e generalizáveis”.¹² Daí advém a dificuldade de se aprender em ambientes virtuais. Falta alguma coisa. A compreensão de ênfases na comunicação é apreendida em grande parte por posturas corporais. O corpo importa na comunicação.
Para Breton, assim como para diversos autores, o corpo é essencial para a apreensão humana do mundo e para a comunicação, uma vez que é por meio de expressões corporais que boa parte da comunicação é feita.
Todavia, na sociedade hiperconectada de hoje, o caminho é o de uma negação do corpo. Basta ver a ênfase em universos cibernéticos na atualidade. Para as big techs, nossos corpos não são importantes, somente nossa mente. Entretanto, como temos visto, ao contrário do que a narrativa das grandes companhias de tecnologia fazem pensar, as expressões corporais constituem grande parte da comunicação humana. Como aponta o filósofo Byung-Chul Han, a “tatilidade”, “a pluridimensionalidade e multiplicidade de camadas da percepção humana, da qual fazem parte não apenas o visual, mas também outros sentidos”, é ausente nas mídias digitais.¹³ O discurso de Zuckerberg acerca do seu projeto de “Metaverso” é que este será um espaço de “presença” e de “corporificação” por meio da realidade virtual, da realidade aumentada e da internet, em um ciberespaço coletivo. Han diria que ele não poderia estar mais equivocado: no digital, a realidade é desconstruída: “a ordem digital causa uma crescente desincorporação do mundo”.¹⁴
A mesa: por uma visão corporificada e comunitária dos debates
A conhecida filósofa política Hannah Arendt, ao tratar da comunicação como algo fundamental ao ser humano enquanto ser político, usa a bela metáfora da mesa:
Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que o possuem em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo espaço-entre [in-between], o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si.¹⁵
Para ela, devemos imaginar o debate público como ocorrendo em torno de uma mesa. Isso implica conversar respeitosamente, ouvir, dialogar, mudar de ponto de vista quando necessário. Por isso, a corporalidade é fundamental na comunicação. E para ela a sociedade de massas teria perdido essa capacidade, pois não é mais possível congregar as pessoas.¹⁶ Assim, como a vida pública é um artefato humano, é necessário primeiramente construir a mesa em torno da qual se estabelecerá o diálogo. Assim, não parece que ela compreenderia as redes sociais como espaço público de debate, pois ali faltaria a corporalidade e o sentimento de comunidade. Todos vivem isolados e, como diz Byung-Chul Han, a “solidão caracteriza a constituição social atual. Ela é abarcada por uma desintegração generalizada do comum e do comunitário. A solidariedade desaparece”.¹⁷ A sociedade de rede é justamente o oposto da ideia de mesa de Arendt. Para a autora, já em seu tempo havia uma “privação de relações objetivas com os outros”; um desamparo, isto é, solidão é uma situação anti-humana.¹⁸ Há muitos estudos que apontam para a solidão como uma condição essencial da sociedade, ironicamente, hiperconectada.¹⁹
Assim,
Por tudo isso, com Arendt, as redes sociais são espaços públicos incompletos, onde a manipulação algorítmica as transformam em espaços com grau muito baixo de boa inter-ação política. Falta a corporalidade, a presença, o olhar no olho, ouvir as nuances da voz que só é possível em volta de uma mesa, sem a modulação por algoritmos.²⁰
O estabelecimento de diálogo só é possível com compreensão e com a construção de um espaço público em que habite a generosidade para com o outro. Nas redes sociais, isso parece impossível.
Isso não implica, necessariamente, que devemos deletar nossas redes sociais e que a apresentação de ideias nesses ambientes não seja possível. O que parece é que o ambiente virtual, por causa do controle algorítmico e da ausência de corporalidade, dificulta enormemente o desenvolvimento de debates. As redes podem servir bem à introdução de argumentos, apresentação de fatos, exploração de ideias; mas um debate mais frutífero ocorre na dimensão presencial corporificada. É ali, olho no olho, que conseguimos nos expressar melhor. É nas especificidades da comunidade que entendemos mais o que o outro quer nos dizer.
O que parece é que o ambiente virtual, por causa do controle algorítmico e da ausência de corporalidade, dificulta enormemente o desenvolvimento de debates. As redes podem servir bem à introdução de argumentos, apresentação de fatos, exploração de ideias; mas um debate mais frutífero ocorre na dimensão presencial corporificada.
No importante livro Transumanismo e a imagem de Deus, Jacob Shatzer encerra sua argumentação com a metáfora da mesa, e aponta como essa imagem reflete uma prática que incorpora e resume a vida cristã (e, podemos dizer, dialógica e humana): uma prática alicerçada na realidade, que corrobora a importância do corpo e do outro.²¹ A mesa resume o que é uma frutífera vida humana: uma vida de diálogo, incorporada e comunitária. Para o bem dos debates, restabeleçamos a prática de nos sentarmos ao redor de uma mesa, em comunhão.
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1. Philippe Breton, “Ciborgue”, Dicionário do corpo, 2012.
2. Philippe Breton, A utopia da comunicação, 1992.
3. Pedro M. Kritski, “Norbert Wiener”, Filosofia da tecnologia, 2022; Norbert Wiener, Cibernética e sociedade, 1970.
4. Margaret A. Boden, Inteligência artificial, 2020, p. 28; Benjamin Loveluck, Redes, liberdades e controle, 2018, p. 26.
5. Alcides Peron, Vaticínios punitivos: os algoritmos preditivos e os imaginários de ordem e cidadania, 2018. Clique aqui para acessar.
6. Eli Pariser, O filtro invisível, 2012.
7. Michael Polanyi, Personal Knowledge, 2015.
8. Ver especialmente o capítulo “Interactional expertise and embodiment” em: Harry Collins; Robert Evans, Rethinking Expertise, 2007.
9. David Smith, Pedagogia cristã, 2022.
10. Ibidem, p. 163
11. Ibidem, p. 176.
12. Stanislas Dehaene, É assim que aprendemos, 2022, p. 233.
13. Byung-Chul Han, No enxame, 2018, p. 44.
14. Byung-Chul Han, The expulsion of the other, 2018, p. 50-55.
15. Hannah Arendt, A condição humana, 2020, p. 64.
16. Ibidem, p. 65.
17. HAN, 2018, p. 33.
18. ARENDT, 2020, p. 72.
19. Ver, por exemplo, Noreena Hertz, O século da solidão, 2021.
20. Luiz Adriano Borges. A mesa e a condição humana. Comunidade e tecnologia em “A condição humana” de Hannah Arendt (Trabalho não publicado).
21. Jacob Shatzer. Transumanismo e a imagem de Deus, 2022.
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