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ENSAIO

Precisamos de uma filosofia cristã da ciência?*

Adryana Diniz Gomes|

16/06/2023

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Adryana Diniz Gomes

Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes com pesquisa sobre virtualização das experiências artísticas e cibermediação cultural. Professora de Metodologia da Pesquisa no Seminário Betel Brasileiro de Niterói.

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GOMES, Adryana Diniz. Precisamos de uma filosofia cristã da ciência? Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

A filosofia da ciência é o estudo crítico dos elementos da investigação científica (procedimentos, métodos, validação, resultados e teorias), sendo seu objetivo compreender as pressuposições e pré-disposições dos pesquisadores em uma abordagem filosófica.¹

Ao falarmos sobre a interação do cristão com filosofia, uma das primeiras questões que podem surgir é: “o que a cosmovisão cristã diz sobre fé e ciência?”. Mas será que trabalhar com pressupostos teóricos é o suficiente? Mais do que informações (conceitos filosóficos), é necessário formação, moldar o cristão em um certo tipo de pesquisador.²

Este trabalho não se propõe a ser um manifesto sobre a cosmovisão cristã da pesquisa ou uma proposta de metodologia cristã da pesquisa. Ele surge de questionamentos reais de uma pesquisadora e tem como objetivo instigar outros cristãos pesquisadores, em diferentes etapas da carreira acadêmica (e também seminaristas e teólogos), a questionar como abordamos a prática da pesquisa e o que realmente significa fazer pesquisa para a glória de Deus. Talvez assim poderemos ajudar no estreitamento do diálogo entre fé cristã e ciência, e no fortalecimento da igreja diante de uma sociedade cada vez mais contrária à fé cristã.

Neste ensaio, busca-se pensar o que significa fazer pesquisa a partir de uma epistemologia teorreferente, considerando como isso se desdobra na prática do pesquisador cristão. Apresentamos uma breve introdução à epistemologia e ao desenvolvimento da filosofia da ciência, uma alternativa viável de base teórica para o pesquisador cristão na busca do bem comum, e apontamos que a resposta que buscamos passa por considerações éticas.

A pesquisa como prática social

É necessário colocar, logo de início, que o que consideramos aqui é a prática da pesquisa e da ciência (naturais, biológicas, humanas, exatas) como uma produção humana. Precisamos definir então o uso da palavra “prática” e o que ela significa aqui. 

A partir de Alasdair MacIntyre,³ podemos considerar que a prática social é uma atividade humana cooperativa, estabelecida socialmente, que realiza bens internos que são específicos a ela, apresentando padrões de excelência, mas que é ameaçada pelo desvio da regra. Isso significa: 1) que é impossível fazer pesquisa sozinho, ou seja, há uma rede de pessoas que contribuem para sua realização e convenções que organizam essas participações, incluindo nossos contemporâneos e os praticantes do passado; 2) que há acordos dentro das comunidades científicas e acadêmicas (as instituições) que dão suporte à pesquisa e estabelecem como ela deve ser conduzida; 3) que o resultado de uma prática não pode ser produzido por outra prática, sendo o bem interno da pesquisa o bem intelectual; 4) que os padrões que guiam a prática foram estabelecidos historicamente e, por isso, podemos classificar o que é uma boa pesquisa e o que é uma pesquisa mal feita; 5) e, por fim, que se ignoro as convenções estabelecidas, então a pesquisa está em perigo, e seus resultados podem trazer danos às pessoas.⁴

Assim, apontamos a importância de pensar sobre como nos inserimos nessa prática, ou seja, como ocorre nossa participação na rede de pesquisadores e instituições, como nos relacionamos com os padrões estabelecidos e com o bem intelectual, para que então nossa pesquisa possa contribuir para o bem comum.

O que pensamos sobre epistemologia?

Antes, é preciso dar um passo atrás e falar de epistemologia. Esse ramo da filosofia considera se é possível conhecer, como conhecemos e até que ponto podemos conhecer algo. É sobre desenvolver uma Teoria do Conhecimento. Conhecer a realidade é sobre como nos relacionamos com ela, como podemos interagir com a criação, transformá-la, organizá-la e cuidar dela.⁵ O Mandato Cultural requer de nós essas considerações, afinal, se fazemos pesquisa (que é parte do desenvolver da técnica, da arte, da ciência, da tecnologia, da filosofia etc.), estamos nos relacionando com a realidade e precisamos estar mais atentos ao tipo de relacionamento que desenvolvemos.⁶

A primeira consideração é que o tipo de relacionamento que construímos com a realidade depende do entendimento que temos sobre o que é a realidade e sobre quem  nós somos. É consenso entre cristãos de diferentes tradições que o universo veio à existência pelo poder da palavra divina, o Logos. E por mais que possamos divergir em como o universo material veio a ser o que é hoje, aceitamos que Deus criou um universo real fora de si mesmo. Tudo o que existe veio de Deus, sendo Ele a origem de todas as coisas. Schaeffer nos lembra de que “algo existe realmente, para se pensar, com que tratar e para investigar, revestido de uma realidade objetiva”.⁷ Ter uma realidade objetiva de causa e efeito nos permite ter um fundamento para o conhecer: realmente existe algo para ser conhecido.⁸

Também é aceito, atualmente, entre todos os cristãos que todo ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus. Ao longo dos séculos, debateu-se sobre o que isso significa. É possível entender Imago Dei como o ser humano sendo um microcosmo de Deus, isto é, somos uma “versão menor” daquilo que Deus é, possuindo alguns de seus atributos. Não somos pequenos deuses, temos a nossa criaturidade. Porém, somos parecidos o suficiente com Deus para nos distinguir do restante da criação. Assim, podemos dizer que a tradição cristã defende que a Imago Dei inclui a capacidade racional, isto é, nossa capacidade de contemplar, experimentar, racionalizar e transformar a realidade.

Nossa epistemologia deve ser teorreferente, sendo a Trindade a arché¹⁰ e o telos¹¹ do conhecimento, ou seja, consideramos então que Deus estrutura a realidade, está ativamente envolvido no mundo e se revela a nós. Por isso, há uma unidade ôntica¹² na realidade: Ele é origem de tudo e nos permite perceber a relacionalidade entre as coisas que existem.¹³

Nossa epistemologia deve ser teorreferente, sendo a Trindade a arché e o telos do conhecimento, ou seja, consideramos então que Deus estrutura a realidade, está ativamente envolvido no mundo e se revela a nós.

Filosofia da ciência: uma breve introdução

Quais serão então as implicações de uma epistemologia teorreferente na filosofia da ciência? Como isso se transcreve na prática cotidiana do pesquisador?

O desenvolvimento da filosofia sempre esteve ligado com o estudo do que hoje chamamos de ciências naturais. Até o século XIX, era o filósofo natural que investigava a natureza em diferentes áreas (biologia, astronomia, geologia, etc.). Houve uma série de acontecimentos durante o Iluminismo que tornou essas mudanças possíveis, um deles foi a Revolução Científica,¹⁴ no século XVII, que marcou uma virada no pensamento sobre o que significa fazer ciência. A ideia que temos hoje do pesquisador como cientista surge então no século XIX, com a popularização do debate sobre método científico. Sendo assim, seguir o método passa a ser o caminho para se chegar ao conhecimento, e qualquer pessoa treinada no método pode ser bem sucedida. A Razão é elevada e, entendida como pura e neutra, torna-se o único modo de alcançar o verdadeiro conhecimento.¹⁵

Uma corrente filosófica surgida no início do período moderno afirmava que o “eu” seria a própria Razão, pura e neutra. Para o Racionalismo, a autonomia e neutralidade da Razão são o ponto de partida do conhecimento. O “penso, logo existo” de Descartes que buscava, eliminando os sentidos e o corpo, ser uma resposta para o dilema da incerteza. Essa Razão está desconectada do mundo e até mesmo do corpo. O ser humano é uma coisa que pensa. Ao longo dos anos, formou-se a crença¹⁶ de que somente a ciência pode fornecer o verdadeiro conhecimento.¹⁷

Ao longo do século XX, uma nova visão sobre a ciência se formou, questionando a Razão pura e neutra e o método científico. Considera-se, então, que o que realmente importa é a percepção que temos da realidade, pois o pesquisador nunca está desconectado de uma realidade socialmente construída, e esse novo entendimento traz consigo a perda de objetividade sobre o mundo. A própria ciência é uma construção social que sustenta certas crenças de certos grupos e está desconectada da ideia de verdade.¹⁸

Temos, então, o cientificismo e o historicismo em oposição um ao outro, porém, o que se percebe é que nenhum dos dois pode ser considerado teorreferente, pois um erra na crença sobre o que é o ser humano e o outro erra na crença sobre o que é a realidade. Ambas são reducionistas, pois o horizonte de plenitude está preso no imanente. Faz-se necessário, então, deixar ambas de lado e buscar outra alternativa para pensar ciência.¹⁹

Temos, então, o cientificismo e o historicismo em oposição um ao outro, porém, o que se percebe é que nenhum dos dois pode ser considerado teorreferente, pois um erra na crença sobre o que é o ser humano e o outro erra na crença sobre o que é a realidade.

O que seria uma filosofia cristã da ciência?

Qual seria a alternativa viável aos cristãos? Precisamos criar algo novo ou é possível aderirmos a uma das muitas opções de correntes filosóficas? Neste ensaio, defendemos que o Realismo Crítico é, sim, uma opção viável que se relaciona com nossa percepção de epistemologia teorreferente. Entende-se que há uma realidade que pode ser conhecida que é diferente do sujeito conhecedor, ao mesmo tempo que esse sujeito é reconhecido como participante no processo de desenvolvimento do conhecimento. Isso significa que, embora a realidade seja independente do sujeito conhecedor, o conhecimento gerado nunca é independente desse sujeito. A partir dessa afirmação, considera-se que a ontologia guia a epistemologia, isto é, “a natureza de um aspecto da realidade determina a maneira pela qual ela deve ser conhecida e até que ponto pode ser conhecida”.²⁰ Ou seja, cada disciplina desenvolve sua metodologia, pois os métodos são estabelecidos a posteriori por meio da interação com o aspecto. Entende-se também que o conhecimento é desenvolvido em conexão com a tradição à qual o sujeito conhecedor pertence. Sendo assim, o que somos hoje se deve, em parte, àquilo que herdamos do passado e que ainda está presente de alguma forma, e não só as ideias, como o próprio processo de “passar” ou “transferir”. Assim, nossa leitura da realidade não é neutra, e sim permeada pela tradição.²¹

Dentro dessa percepção de ciência, podemos considerar que a nossa participação na rede de pesquisadores e nas instituições é permeada pela tradição da qual fazemos parte e pode não ser a mesma de outros pesquisadores. Haverá colegas que adotam visões cientificistas ou historicistas da ciência, assim como haverá momentos em que uma visão específica será majoritária em um departamento. Então, como lidar com essas diferenças?  Ao pensar sobre como nos relacionamos com os padrões estabelecidos, isto é, os métodos (e considerações sobre validação) que foram historicamente estabelecidos, estamos tomando decisões críticas sobre o uso deles que se diferem das de outros.²² 

Entende-se que há uma realidade que pode ser conhecida que é diferente do sujeito conhecedor, ao mesmo tempo que esse sujeito é reconhecido como participante no processo de desenvolvimento do conhecimento. Isso significa que, embora a realidade seja independente do sujeito conhecedor, o conhecimento gerado nunca é independente desse sujeito.

Será que pressupostos favoráveis ao cristianismo é tudo de que precisamos? Afirmamos anteriormente que a Imago Dei inclui a racionalidade, mas que a razão não é neutra e nem pura. O que compõe a nossa racionalidade então? Ao longo do período moderno, a visão racionalista do homem foi absorvida pelo cristianismo protestante, transformando a fé cristã em um conjunto de ideias e o “crer” em afirmações intelectuais. Dooyeweerd²³ entendeu que o Racionalismo era reducionista sobre o entendimento do que é o ser humano e buscou um afastamento dele em um resgate do pensamento agostiniano. Para ele, conhecemos através do coração, pois é ele que concentra e unifica todas as dimensões (os modos) da experiência. Nossas memórias, nossos afetos, o imaginário social, a língua, dentre outros elementos fazem também parte do modo como interagimos com a realidade.²⁴ Assim, a razão é parte do processo, mas não é o início e nem o todo, até porque somos movidos por nossos afetos muito mais do que por nossas ideias, e são esses afetos que conquistam nossa imaginação, guiam nossas crenças e fundamentam as nossas ideias.²⁵

Isso nos faz pensar a nossa relação com os bens internos da pesquisa. MacIntyre²⁶ afirma que toda prática, seja ela qual for, produz dois tipos de bens: os externos e os internos. Os bens externos são as consequências “acidentais” da prática, que podem surgir em diferentes práticas e são ganhos em estado de competição (se uma pessoa acumula, então outra pessoa deixa de ter). No caso da pesquisa, podemos incluir: status e reconhecimento, financiamento e premiações, influência entre os pares e estudantes do departamento. Já os bens internos são aqueles que apenas aquela prática específica pode gerar e só podem ser reconhecidos por aqueles que participam da prática em questão. Os bens internos não são ganhos em estado de competição com perdedores e vencedores; pelo contrário, toda a comunidade é beneficiada com sua aquisição, pois ela fortalece a prática e gera satisfação.²⁷

Pensemos sobre os bens internos da pesquisa a partir do mandato da pesquisa proposto por Basden:²⁸ “oferecer descobertas teóricas para contribuir com o corpo de conhecimento da humanidade de forma a aprimorar nosso entendimento de como a realidade opera, isto é, o cosmos e tudo o que nele se encontra”.²⁹ Basden³⁰ considera que essa contribuição se dá no aprofundamento do nosso entendimento sobre a estrutura dos diferentes aspectos da realidade, uma vez que cada campo científico foca em um dos aspectos e gera conhecimento que os demais campos não podem alcançar. Sendo assim, podemos, então, como pesquisadores, contribuir para o bem comum quando buscamos os bens internos da pesquisa em nossos respectivos campos sem sermos desencaminhados pelos bens externos.³¹

Entretanto, os bens internos só podem ser alcançados por intermédio das virtudes, sendo elas “uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício costuma nos permitir alcançar aqueles bens que são internos às práticas e cuja ausência de fato nos impede de alcançar quaisquer desses bens”.³² Assim, nossas considerações sobre o cristão pesquisador e a filosofia da ciência nos leva a pensar sobre ética.

A resposta nos leva à ética

Propomos, neste ensaio, que o ponto crucial do nosso questionamento sobre filosofia da ciência está na ética. Há três modos principais de pensar Ética: o Consequencialismo, a Deontologia (a Ética do Dever de Kant) e a Ética das Virtudes. Como já afirmamos, somos mais do que seres pensantes: somos guiados por nossos amores. Por isso, podemos dizer que a motivação é tão importante quanto a ação, uma vez que são nossos amores que guiam nossas práticas. Isso torna necessário pensar sobre ética para além de “coisas que eu devo fazer” ou “como eu devo pensar”. A Ética das Virtudes nos permite examinar como nossos amores guiam nossas práticas.³³

Se conhecer é uma forma de nos relacionarmos com a realidade, o sujeito que conhece precisa considerar que tipo de relacionamento está criando com aquilo que conhece. Ele precisa se tornar um certo tipo de pessoa para fazer um bom conhecimento e alcançar os bens internos. Mas que tipo de pesquisadores precisamos ser se pensamos de modo teorreferente?³⁴

Na ética das virtudes, diz-se que o telos da vida é alcançar a eudaimonia, isto é, o florescimento humano, e isso acontece porque a natureza humana não é perfeita. Esse florescimento é alcançado por meio das virtudes. Em Aristóteles, as virtudes são os hábitos que, praticados com frequência, nos levam a uma vida excelente, ou seja, em direção ao florescimento. Assim, “esses hábitos constituem uma espécie de ‘segunda natureza’: embora sejam aprendidos, podem se tornar tão intimamente entretecidos na fibra do nosso ser que se comportam como se fossem naturais ou biológicos”.³⁵ Porém, virtude não é somente fazer a coisa certa, mas também ter as motivações corretas e os sentimentos adequados.³⁶

Smith³⁷ aponta, então, que “uma das perguntas mais importantes que temos de formular é a seguinte: que tipo de pessoa determinado hábito ou prática está tentando produzir e para que fim tal prática aponta?”.³⁸ Nossos hábitos intelectuais nos levam em direção aos bens internos ou estão sendo desvirtuados na busca pelos bens externos à pesquisa? Para nos ajudar a calibrar esse direcionamento, temos que considerar o que é o florescimento intelectual.³⁹

Para Agostinho, o que nos leva às virtudes não é simplesmente o controle de si mesmo, mas o amor a Deus e ao próximo. É o amor, a maior de todas as virtudes, que pode nos levar a algum tipo de domínio próprio, em oposição à busca por condições materiais que proporcionam mais prazeres e conforto, isto é, os bens externos.⁴⁰

Para alcançarmos o bem intelectual, precisamos de virtudes intelectuais, que são as qualidades, ou os hábitos, que nos tornam excelentes pensadores, isto é, capazes de conhecer de modo excelente. Assim, entramos na Epistemologia das Virtudes. Há duas formas de sermos excelentes pensadores, e cada uma delas nos indica diferentes virtudes que precisam ser desenvolvidas, umas ligadas ao caráter intelectual e outras ligadas à maneira como trabalhamos: produzir crenças verdadeiras de forma consistente e possuir boas motivações intelectuais. Para possuir boas motivações (inclinações) intelectuais, precisamos de curiosidade, humildade intelectual, pensamento crítico, diligência, coragem, tenacidade e ser mente aberta, pois essas virtudes nos levam às ações corretas no processo de conhecer. A elas, adicionamos as disposições confiáveis que são capazes de produzir mais crenças verdadeiras do que falsas: as faculdades cognitivas. Essas capacidades, individualmente, contribuem para o processo de conhecer, porém, não são estritamente necessárias. Além disso, deve-se buscar a verdade, isto é, ter amor pelo conhecimento.⁴¹

Para alcançarmos o bem intelectual, precisamos de virtudes intelectuais, que são as qualidades, ou os hábitos, que nos tornam excelentes pensadores, isto é, capazes de conhecer de modo excelente.

A prática é ameaçada quando os padrões de excelência são abandonados e os bens externos se tornam mais importantes que os bens internos. Isso se dá quando não exercemos as virtudes e somos levados pelos vícios as inclinações na natureza imperfeita que nos impedem de chegar ao florescimento. Os vícios intelectuais nos tornam maus pensadores, pois nos impedem de conhecer verdadeiramente e prejudicam o florescimento intelectual, tanto de um indivíduo quanto de uma comunidade. Há uma disposição natural para o vício em nós, e vícios específicos podem ser “formados” sem que percebamos. Esses vícios também podem se tornar vieses cognitivos e prejudicar a pesquisa.⁴²

Vale lembrar que estamos considerando uma epistemologia teorreferente e como ela nos ajuda a pensar sobre filosofia da ciência. Assim, nossas virtudes epistêmicas também precisam ser teorreferentes. Para os teólogos medievais, alcançar virtudes se torna possível por causa da imago Dei. Entendia-se também que, em Cristo, todas as coisas retornam para Deus. Assim, as virtudes, que são perfeitas em Cristo, são parte desse retorno, pois o cristianismo não era entendido como um conjunto de doutrinas que são afirmadas em uma confissão, mas um modo de vida que se dá na interiorização da verdade das Escrituras. Assim, Aquino e os teólogos medievais acrescentaram às virtudes aristotélicas (prudência, justiça, temperança e coragem) as virtudes teológicas: fé, amor (caridade) e esperança.⁴³

Novamente, voltamos ao amor: a Deus, ao próximo e ao conhecimento. Gera um certo constrangimento falar sobre amor dentro de um discurso sobre filosofia da ciência, afinal, ainda temos influências racionalistas sobre como pensamos a investigação científica. Entretanto, já entendemos que o sujeito que conhece se relaciona com a realidade não só por meio da razão, mas também com suas memórias e seus afetos, com o imaginário social, com a língua, sendo permeado pela sua tradição. Entendemos também que ele é guiado em suas práticas de pesquisa pelos seus amores.⁴⁴

Propomos, então, a necessidade de começar a pensar sobre filosofia da ciência a partir de um amor inquieto, que nos faz contemplar, nos doar e entender o sentido das coisas, percebendo Beleza na realidade, e não somente mecanismos ou dominação, e experimentando um encontro estético⁴⁵ que nos leva ao Bom, à busca das virtudes — para que possamos nos conhecer de modo excelente e, assim, nos encontrarmos com a Verdade. Para o cristão, a ciência começa no maravilhamento de quem Deus é e se desenvolve na direção do bem comum pelo amor ao conhecimento.⁴⁶

Propomos, então, a necessidade de começar a pensar sobre filosofia da ciência a partir de um amor inquieto, que nos faz contemplar, nos doar e entender o sentido das coisas, percebendo Beleza na realidade, e não somente mecanismos ou dominação, e experimentando um encontro estético que nos leva ao Bom, à busca das virtudes — para que possamos nos conhecer de modo excelente e, assim, nos encontrarmos com a Verdade.

Considerações finais

Podemos entender, desse modo, que pensar a relação do pesquisador cristão com a filosofia da ciência é uma consideração mais ética do que teórica. Por mais que as teorias certas nos permitam abrir nosso espaço nos círculos acadêmicos e desenvolver nossas pesquisas, elas não são o suficiente. Quando falamos de uma epistemologia teorreferente, não podemos nos limitar a pensar categorias conceituais. Ao pensar sobre como o sujeito conhecedor se relaciona com a realidade, temos que considerar como esse relacionamento se desenvolve como prática social o que se torna uma questão também ética.⁴⁷

Ainda há muitas outras perguntas que precisamos fazer ao pensar sobre a prática da pesquisa, incluindo nossas abordagens metodológicas. Porém, essas respostas estão para além do que este ensaio se propõe a ser. Certamente, continuaremos nessa linha de questionamento, sendo impulsionados pelo amor a Deus, aos nossos irmãos pesquisadores e à pesquisa.

 

 

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Referências

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CROSSROADS INITIATIVE. Introduction to von Balthasar. Publicação online, 2016. Disponível em: https://www.crossroadsinitiative.com/media/articles/introduction-to-von-balthasar/ Acesso em: 10 ago.  2022.

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HARRISON, Peter. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimato, 2018

KIDD, Ian James; BATTALY, Heather; CASSAM, Quassim. Vice Epistemology. London: Routledge, 2020.

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MIGUEL, Igor. Escola do Messias: fundamentos bíblicos-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2020.

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PSILLOS, Stathis; CURD, Martin (org) The Routledge Companion to Philosophy of Science. New York: Taylor & Francis, 2008.

SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. Viçosa: Ultimato, 2014.

SMITH, James K A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, 2018.


* Ensaio classificado em 5º lugar na 1ª Chamada do Radar ABC².

1. BRITANNICA. Philosophy of science. Verbete online. Clique aqui para acessar; PSILLOS, Stathis; CURD, Martin (org) The Routledge Companion to Philosophy of Science. New York: Taylor & Francis, 2008.

2. SMITH, James K A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, 2018.

3. MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: um estudo sobre teoria moral. Campinas: Vide Editorial, 2021.

4. Ibidem.

5. Boa parte dos livros cristãos sobre filosofia que tem capítulos sobre epistemologia focam no conhecimento de Deus, pois são direcionados a teólogos. Então, o conhecimento das obras de Deus (a natureza e o ser humano) normalmente não é abordado. Poucos são os livros que falam sobre filosofia, cristianismo e ciência, considerando as questões práticas envolvidas no desenvolvimento da pesquisa. Moreland e Craig tratam de filosofia da ciência, porém, seu foco é na integração da ciência com a teologia.

6. MCGRATH, Alister. A Ciência de Deus: uma introdução à teologia científica. Viçosa: Ultimato, 2016; MIGUEL, Igor. Escola do Messias: fundamentos bíblicos-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2020; NAUGLE, David K. Filosofia: um guia para estudantes. Brasília: Monergismo, 2018.

7. SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão. Viçosa: Ultimato, 2014, p. 38.

8. BASDEN, Andrew. Foundations and Practice of Research: adventures with Dooyeweerd’s philosophy. New York: Taylor & Francis, 2020; MIGUEL, 2021; MCGRATH, 2016; SCHAEFFER, 2014.

9. MCGRATH, 2016; MIGUEL, 2021; NAUGLE, 2018.

10. Arché é, no grego, é o fundamento de tudo que existe, a substância inicial de onde tudo deriva. 

11. Telos é o termo grego para finalidade, propósito.

12. Ontologia é a área da Filosofia que considera o que é a Realidade, a essência e a substância do ser e a ideia de existência. Assim, unidade ôntica considera que há uma estrutura comum que perpassa todo o universo Ver: MCGRATH, 2016: MORELAND, CRAIG, 2005.

13. MCGRATH, 2016; MIGUEL, 2021.

14. Por muito tempo, alimentou-se ideias de que a Revolução Científica restaurou a ciência herdada dos gregos e lhe deu um novo patamar de prestígio após séculos sendo desprezada pelos medievais. Entretanto, no século XVII há uma nova emergência de combinações disciplinares entre teologia e filosofia natural e o surgimento de identidades vocacionais: estudiosos que entendiam louvar a Deus com seus trabalhos acadêmicos. Dois deles foram o astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) e o filósofo e químico Robert Boyle (1627-1691), fundador da Royal Society (1660), que até hoje é considerada uma das principais instituições de promoção do conhecimento científico Ver: HARRISON, 2017.

15. HARRISON, Peter. Os Territórios da Ciência e da Religião. Viçosa: Ultimato, 2018; LEITHART, Peter. Vestígios da Trindade: sinais de Deus na criação e na experiência humana. Brasília: Monergismo, 2018; SMITH, 2018.

16. Em filosofia, “crença” é a ideia\concepção que temos sobre a realidade como um todo, não sendo necessariamente religiosa. Pode ser consciente ou não consciente. Ver: MORELAND, CRAIG, 2005.

17. Há também influência do naturalismo, a crença que afirma que não há nada além do natural e nega a metafísica. Ver: MORELAND, J P; GRAIG, William L. Filosofia e Cosmovisão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2005; LEITHART, 2018;  SMITH, 2018.

18. PSILLOS; CURD, 2008.

19. CLOUSER, Roy. A New Philosophical Guide of Science: ontology without reduction. In: The Global Spiral Journal of the Metanexus Institute, publicação online. 2011. Clique aqui para acessar; DOOYEWEERD, Herman. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental: estudo sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. Brasília: Monergismo, 2018.

20. MCGRATH, 2016, p. 158.

21. MACINTYRE, 2021; MCGRATH, 2016.

22. Ibidem.

23. Herman Dooyeweerd (1894-1977) foi um jurista, filósofo e professor universitário cristão. Um dos principais “discípulos” de Abraham Kuyper, Dooyeweerd desenvolveu a proposta de esferas de soberania com a teoria dos aspectos modais em sua filosofia da Ideia Cosmonômica.

24. Aqui, é possível fazer uma aproximação entre Smith e MacIntyre relacionando essas influências com a tradição da qual fazemos parte.

25. James K A Smith (Desejando o Reino) propõe, com a noção de liturgias culturais, que há um amor supremo, muitas vezes não consciente, que guia nossa visão de “boa vida” e nos dá uma imagem do que é “prosperidade humana”. Ver também: DOOYEWEERD, 2018; LEITHART, 2018; MIGUEL, 2021; SMITH, 2018.

26. MACINTYRE, 2021.

27. Ibidem.

28. BASDEM, 2020.        

29. Ibidem, p. 4.

30. Ibidem.          

31. BASDEN, 2020; MACINTYRE, 2021.

32. MACINTYRE, 2021, p. 282.

33. BESSER-JONES, Lorraine; SLOTE, Michael (org). The Routledge Companion to Virtue Ethics. New York: Taylor & Francis, 2015; MACINTYRE, 2021; SMITH, 2018.

34. BASDEN, 2020; MCGRATH, 2016; MIGUEL, 2021.

35. SMITH, 2018, p. 56.

36. BESSER-JONES SLOTE, 2015; MACINTYRE, 2021; SMITH, 2018

37. SMITH, 2018.

38. Ibidem, p. 84.

39. MACINTYRE, 2021; SMITH, 2018.

40. MACINTYRE, 2021; BESSEN-JONES, SLOTE, 2015.

41. BESSER-JONES, SLOTE, 2015.

42. BESSER-JONES, SLOTE, 2015; KIDD, Ian James; BATTALY, Heather; CASSAM, Quassim. Vice Epistemology. London: Routledge, 2020; MACINTYRE, 2021; SMITH, 2018.

43. BESSER-JONES SLOTE, 2015; HARRISON, 2017; MACINTYRE, 2021.

44. BESSER-JONES, SLOTE, 2015; MACINTYRE, 2021; SMITH, 2018.

45. O teólogo suéco Hans Urs von Balthasar (1905-1988) propôs o conceito de “encontro estético” para falar dos sentidos espirituais que nos permitem encontrar o mistério do Ser de Deus, isto é, o encontro com o Belo, a manifestação da glória de Deus no tempo e no espaço nos atrai, pela graça divina, em direção ao Ser contemplado. É então a unidade entre Beleza, Bom e Verdadeiro que nos permite perceber o sentido cósmico total do amor como ato trinitário. Assim, respondemos com amor inquieto. e é nesse amor que o conhecimento se centraliza. Precisamos “ler” o mundo sob a luz do amor. Ver: CROSSROADS, 2016.

46. CROSSROADS INITIATIVE. Introduction to von Balthasar. Publicação online, 2016. Clique aqui para acessar; PSILLOS, CURD, 2008.

47. MACINTYRE, 2021; MCGRATH, 2016; MIGUEL, 2021.

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À beira de um admirável mundo novo
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