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Sabedoria nas mudanças climáticas

Ester Wolff Loitzenbauer|

02/02/2024

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Ester Wolff Loitzenbauer

Oceanógrafa e professora de Ciências Biológicas na UERGS/RS. Sua área de pesquisa envolve qualidade de água, variabilidade climática e gestão de recursos hídricos na zona costeira.

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Loitzenbauer, Ester Wolff. Sabedoria nas mudanças climáticas. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

O ano de 2023 foi emblemático em virtude dos eventos extremos na natureza sentidos no Brasil e no mundo. Especialmente no Rio Grande do Sul, onde moro, desde maio vimos vários ciclones severos trazendo fortes chuvas. Depois de agosto, com o aquecimento das águas do Pacífico, surge o El Niño, causando ainda mais chuvas. Em seguida, não mais restrito ao Sul do Brasil, os efeitos são sentidos no Norte, com a maior seca da história da Amazônia. Também são sentidas as ondas de calor extremo em grande parte do Brasil.

É importante destacar que, para o Brasil, o Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas (IPCC em inglês), no relatório de 2021, apresentou que o Sul tem mostrado tendência de aumento de chuvas e fez projeções de ondas de calor mais intensas, de que o Sul se tornaria mais úmido e o Norte (Nordeste) e a Amazônia mais seca.

Como a igreja cristã no Brasil deve receber e reagir a estas informações? Será que a Bíblia tem algo a nos dizer sobre esse contexto? E, como cristãos, qual nosso chamado diante das mudanças do clima?

Para responder a essas perguntas, proponho nos voltarmos para a sabedoria bíblica, pois precisamos “viver com justiça e sensatez, fazendo o que é justo, direto e correto” (Pv. 1:3) no contexto das mudanças do clima.

Jó, Provérbios e Eclesiastes fazem parte do cânon como livros de sabedoria, cada um complementando o outro com visões diferentes sobre tragédias inesperadas e consequências dos atos humanos. Ao focar no homem e a sua relação com a ordem natural, os livros de sabedoria são textos bastante apropriados para buscarmos respostas bíblicas para a crise climática atual.

Assim, este artigo irá inicialmente explorar o que os cientistas vêm dizendo sobre as mudanças climáticas no Brasil, como essas informações são geradas, os eventos extremos de 2023 e o fenômeno El Niño. Em seguida, buscarei respostas nos livros de sabedoria da Bíblia.

A sugestão de que o aumento na concentração de dióxido de carbono na atmosfera terrestre fosse causar um aumento na temperatura terrestre começou a surgir no final do século 19, um século depois do início da revolução industrial e do início do impacto humano no clima terrestre.¹ Contudo, o despertar para uma preocupação maior com as ações antrópicas surgiu entre 1960 e 1970. Em 1988, foi criado o IPCC, no âmbito da ONU, visando sintetizar e divulgar o conhecimento científico sobre as mudanças climáticas para os governos e organizações civis.

O IPCC não é uma instituição que realiza pesquisa científica; sua ocupação é compilar informações científicas relevantes já publicadas e atuais, escrevendo relatórios que levam em consideração três grandes áreas: 1) Base Científica; 2) Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade; e 3) Mitigação da Mudança Climática. Esses relatórios seguem todo o rigor científico, sendo feitos por cientistas especialistas de diversos países e passando a seguir por revisões de outros cientistas a fim de garantir objetividade e transparência. A confiabilidade dos relatórios do IPCC é evidenciada pelo processo de seleção dos artigos e revisão cuidadosa de seus resultados: os artigos científicos selecionados são artigos publicados que já passaram pelo processo de peer review (revisão por pares, em inglês).² O IPCC seleciona alguns desses artigos, além de relatórios aprovados por governos, e, após análise cuidadosa, os compila, garantindo ainda mais rigor na apresentação dos resultados.

Já foram publicados seis relatórios-síntese pelo IPCC. A partir do 4º relatório, de 2007, já se observa que a mudança climática é inequívoca, e a partir do 5º relatório (2014), que a relação da mudança climática com as atividades humanas é evidente.  A questão, então, a partir de 2014, não é mais se as mudanças climáticas causadas pelo homem são reais, mas que impactos serão gerados e como minimizá-los e mitigá-los.

A questão, então, a partir de 2014, não é mais se as mudanças climáticas causadas pelo homem são reais, mas que impactos serão gerados e como minimizá-los e mitigá-los.

Reconhecendo os efeitos das mudanças climáticas e as causas, 195 estados-membros da ONU assinaram, em 2015, o Acordo de Paris, que tem como principal meta manter o aumento da temperatura global abaixo de 2ºC e, preferencialmente, abaixo de 1,5ºC. Os dados até 2022 mostram que a média global já está 1,1ºC mais quente que a era Pré-Industrial.³ Esse acordo é baseado em estudos científicos (relatórios do IPCC) que mostram que, quanto maior o nível de aquecimento, maiores os efeitos adversos, não só para a Terra, mas também para o homem: em outras palavras, isso significa mais eventos extremos (secas e cheias), ciclones, tempestades, aumento do nível do mar, entre outros. Por isso, a importância de lutar por médias globais inferiores a 1,5ºC, visto que, se continuarmos no ritmo de emissões em que estamos, muito em breve já atingiremos esse nível de 1,5º.⁴

Um dos impactos das mudanças climáticas tem relação com o fenômeno El Niño, que é o aquecimento anormal das águas do Pacífico Equatorial em virtude do enfraquecimento dos ventos que ocorrem na região.

O El Niño foi identificado pela primeira vez por pescadores peruanos no século 18, que perceberam uma relação na diminuição de sua pesca com o aumento da temperatura do oceano, e assim o chamaram em alusão ao menino Jesus, dado que o pico do evento ocorre na época de Natal. Muito se fala nele, pois seus impactos se estendem por várias partes do globo, incluindo o Sul (maior chuva) e o Norte e Nordeste (seca) do Brasil.

O que causa esse enfraquecimento dos ventos não é completamente conhecido. Contudo, as mudanças climáticas têm gerado modificações neste processo natural, como aumento da frequência dos chamados Super El Niños e duração do evento por um período maior.⁵ Normalmente, em decorrência do aquecimento das águas do Pacífico, em anos de El Niño, a temperatura média da Terra sobe e, devido às mudanças climáticas, a cada El Niño novos recordes de temperatura são batidos. Por exemplo, o ano de 2023 tem batido todos os recordes de temperatura do El Niño de 2015.

Os desastres causados pelo clima que atingiram a sociedade brasileira durante o ano de 2023 abrem uma janela de oportunidade para que se fale sobre o tema e gere um call to action também no contexto evangélico. Que lições podemos retirar dos livros da sabedoria bíblica que nos inspirem nesse sentido?

Os desastres causados pelo clima que atingiram a sociedade brasileira durante o ano de 2023 abrem uma janela de oportunidade para que se fale sobre o tema e gere um call to action também no contexto evangélico.

De acordo com o dicionário Houaiss,⁶ sabedoria é discernimento inspirado nas coisas sobrenaturais e humanas. Essa definição aponta dois fatores para a sabedoria, assim como a palavra hebraica para sabedoria, chokmah.

O primeiro, nas coisas sobrenaturais, se aproxima da definição de sabedoria bíblica: o temor do Senhor é o princípio da sabedoria (Pv 1:7, 9:10; 15:33). O temor do Senhor é o início, pois Dele vem toda a sabedoria e Ele a dá a quem a busca. Também Nele encontramos o antídoto para o pecado, que é a causa dos problemas ambientais. A ganância está envolvida na destruição da natureza. Quando homens se apropriam de florestas, cortam árvores, entre outras atividades predatórias, para ter acesso ao solo e retirar minerais, não se preocupam com quem mora ali. Contaminam as águas e, eventualmente, vão para outra área, deixando um rastro de degradação. O único interesse está em obter dinheiro, e no menor intervalo de tempo possível.

O segundo fator, o discernimento, é também inspirado nas coisas humanas, na sabedoria humana associada à observação [ciência], experiência e reflexão para conhecer as coisas em sua essência e realidade, como elas são perante Deus e os homens. Chokmah aparece pela primeira vez na Bíblia com referência às habilidades que pessoas teriam para construir o tabernáculo: tecelão, artífices, todos dons humanos e atividades intrinsecamente humanas. Se partimos de Tiago 1:17 (NVI), “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes […]”, tudo de bom, de verdadeiro e de belo que a humanidade produz vem de Deus, da obra do Espírito Santo. O conhecimento que temos por intermédio das pesquisas científicas é bom, e esse conhecimento nos foi dado como uma dádiva, para aprendermos, termos sabedoria, e para aplicá-la onde necessário. Os relatórios do IPCC são claros em apontar quem são as pessoas que mais sofrerão e as soluções que devem ser implementadas. Cabe a nós aprender com o conhecimento humano e aplicá-lo.

Os livros de sabedoria na Bíblia tratam da humanidade em relação a Deus, à natureza e às outras pessoas. Se começarmos por Provérbios, o mais convencional, podemos imaginar sendo escrito por Salomão relativamente jovem, dando dicas de como viver de maneira feliz e próspera. A essência do livro é o princípio da retribuição justa, que fornece diretrizes de como funciona o universo e de como esse conhecimento pode ser aplicado na vida, seguindo a lógica de que, se você plantar, irá colher. Por exemplo, “quem semeia a retidão colhe segura recompensa(Pv 11.18, NVI).

No livro de Provérbios, diz-se que a humanidade irá arcar com as consequências de seus atos de impiedade para com os trabalhadores (Pv 13.6), e deixa claras as consequências de se zombar da instrução (13.13), do conhecimento humano, da ciência, bem como de opor-se à justiça (Pv 23.10-11).  Diversos versículos são dedicados à importância dos conselhos (Pv. 6:23, 19:20, 24:6) e, no nosso contexto, os relatórios do IPCC podem ser vistos como as informações mais precisas que temos com relação às consequências das mudanças climáticas para as pessoas e para o planeta.

Diversos versículos são dedicados à importância dos conselhos (Pv. 6:23, 19:20, 24:6) e, no nosso contexto, os relatórios do IPCC podem ser vistos como as informações mais precisas que temos com relação às consequências das mudanças climáticas para as pessoas e para o planeta.

Já Eclesiastes tem uma visão mais cética e fatalista, em que conseguimos até imaginar Salomão como o mestre, já mais idoso, após uma vida cheia de riquezas, reconhecimento e poder, vendo que nada fez muito sentido, já que iria se findar. “Vaidade de vaidades, diz o pregador, […] tudo é vaidade(Ec 1:2, ARA). Contudo, não conseguimos entender perfeitamente Eclesiastes sem olhar a palavra original traduzida como “vaidade”, no hebraico, hebel, que significa vapor, névoa, algo efêmero ou enganoso.  Essa palavra se repete 35 vezes ao longo do livro e reflete muito a percepção do mestre ao longo do texto: a vida é efêmera, passageira, então, usufrua sua vida enquanto experimenta o vigor da juventude. Assim, além de apontar para a importância de buscar a sabedoria e temer a Deus (assim como Provérbios), há um ponto além: as coisas nem sempre acontecem como previsto pela lei da retribuição justa, e no final tudo passa como vapor (hebel).

Ao olhar para Eclesiastes, inicialmente temos a impressão de que o livro aproxima da visão estereotipada de evangélicos que não se preocupam com questões ambientais, dando ênfase excessiva a uma escatologia catastrófica, do tipo Jesus está voltando. “Vamos aproveitar a vida, usar todo o combustível fóssil que podemos, já que tudo irá acabar em breve.” Contudo, creio que a mensagem é um tanto mais profunda. Partindo da visão do autor, o Rei Salomão, o homem mais sábio e rico que existiu: ele usou todos os recursos que estavam à sua disposição, e não necessariamente ficou mais feliz com isso. Será que, como humanidade, devemos viver assim? Focados em nós mesmos e em nossos desejos? A conclusão de Eclesiastes é “tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial ao homem” (Ec 12:13, NVI). Ao olhar para Deus, deixamos de focar em nós mesmos. O Deus que pensou em deixar trigo para os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, que pensou no descanso da terra, também preparou para nós as ações propícias à conservação do meio ambiente e da sociedade no nosso tempo.

Por fim, o livro de Jó trata de um homem piedoso que sofre intensamente, e nesse livro o dogma da recompensa justa é colocado à prova. Será o bom sempre recompensado no final e o ímpio sempre punido? O livro nos mostra que as coisas nem sempre são assim, e nem sempre vamos entender os caminhos de Deus.

Penso aqui na realidade de que os países que mais sofrerão com as mudanças climáticas não são os que mais queimaram combustíveis fósseis, mas os mais pobres e vulneráveis, que menos contribuíram para o aquecimento global.⁸ Além disso, o livro de Jó nos encoraja, como crentes, a buscarmos um novo patamar de humildade. O livro critica a arrogância, instruções simplistas e conselhos ingênuos dos amigos de Jó, que se baseavam no princípio da retribuição justa. Mas Jó demonstra fé, integridade e constância no meio da adversidade. Como crentes, devemos seguir esse exemplo. As mudanças climáticas impõem a nós e ao nosso próximo adversidades das mais variadas, e agir com sabedoria é o nosso chamado, com base no conhecimento humano, no temor do Senhor e na orientação do seu Espírito.

Permita-me encerrar este artigo mencionando uma ação da igreja de que faço parte, a qual se mobilizou para ajudar algumas comunidades que sofreram com as fortes enchentes no ano de 2023. Ao limpar as casas, trazer produtos de higiene, limpeza e alimentos, conversamos com uma família de haitianos imigrantes que tinham perdido tudo com a cheia; eles mencionaram que já era a terceira vez, em menos de três anos, que sua casa era inundada. Como não tinham recursos, apenas conseguiram um terreno em áreas com alta frequência de inundação. Ajudamos como podíamos no momento, mas nosso papel não deveria ser restrito a suprir as suas necessidades básicas. Em outras palavras, reconhecendo que essa é uma questão complexa e vai além de apenas suprir uma necessidade imediata, nossa missão é compreender, com base no conhecimento que temos disponível, os reais problemas humanos e trabalhar para resolvê-los de maneira integral. Ou seja, apenas levar alimento não vai fazer com que a família deixe de sofrer com as enchentes; é preciso ir além e buscar alternativas para que, quando houver uma nova situação de fortes chuvas, elas não sejam (ou sejam menos) impactadas. Dito de outra maneira, se temos o conhecimento disponível, temos que valorizá-lo e divulgá-lo. Nesse caso, devemos observar na sabedoria humana o que já sabemos sobre as inundações no local, conversar e instruir a família, além de fornecer recursos para que possam habitar em locais mais seguros.

Temos um papel tanto na causa, mostrando que o aquecimento global é real e que precisamos reagir a ele e comunicá-lo às pessoas, quanto nas consequências, especialmente com relação aos pobres e menos favorecidos. A justiça não é apenas ambiental, é socioambiental, pois as pessoas são dependentes do meio ambiente para viver em plenitude e para o seu florescimento. Portanto, cabe aos cristãos mostrar a cura substancial na relação entre o homem e a natureza⁹ em face das mudanças do clima, aplicando, assim, a sabedoria.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Martin E. Walter, “Earthquakes and Weatherquakes: Mathematics and Climate Change”, Notices of the American Mathematical Society, v. 57, n. 10, 2010, p. 1278. Clique aqui para acessar.

2. Trata-se de um processo no qual o artigo submetido a uma revista científica é encaminhado a pelo menos dois revisores especialistas no assunto que não se conhecem e não conhecem o(s) autor(es) do artigo para que seja feita uma revisão o mais imparcial possível, e somente aqueles com parecer favorável são aceitos para publicação.

3. Dados disponibilizados pela NASA. Clique aqui para acessar.

4. IPCC Climate Change 2023 Synthesis Report. Clique aqui para acessar.

5. Wenju Cai et al., “Increased frequency of extreme La Niña events under greenhouse warming”, Nature Climate Change, v. 5, n. 2, 2015, p. 132-137. Clique aqui para acessar.

6. Dicionário Houaiss online. Clique aqui para acessar.

7. Dicionário Bíblico Davis.

8. IPCC Climate Change 2023 Synthesis Report. Clique aqui para acessar.

9. Francis Schaeffer, Pollution and the death of men, 2022.

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