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ARTIGO

Teologia, Ciência e Metáfora

Guilherme de Carvalho|

27/04/2023

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Guilherme de Carvalho

Teólogo e pastor evangélico reformado, fundou a Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares e, com um grupo de amigos cientistas, a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência.

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Como citar

CARVALHO, Guilherme de. Teologia, Ciência e Metáfora. Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023.

Quem me introduziu ao mundo das metáforas teológicas foi C.S. Lewis; suas imagens da moral como uma esquadra de navios, da própria doutrina como mapa, da vida cristã como crianças imitando seus pais, da verdade do cristianismo como um Sol brilhante, e outras entre suas inúmeras felicidades literárias moldaram incorrigivelmente a minha compreensão teológica. Elas também me abriram as Escrituras; como um rio represado, a profusão de símbolos e metáforas contidos na própria Bíblia inundou a minha própria imaginação teológica, minha devoção e o meu trabalho pastoral.

Essa misteriosa força disruptiva da metáfora ocupou por um tempo meus estudos formais; enquanto explorava a teoria do símbolo religioso de Tillich, fui atraído pela teoria ricoeuriana da metáfora, como uma forma de imaginação e mesmo de cognição que vai além do discurso literal e da precisão das palavras; que “explode” as categorias literais para dizer algo para além de sua capacidade de representação. Pela metáfora, nós sabemos coisas que ainda não conseguimos dizer de forma rigorosa.

Mas, uma vez dada a iluminação metafórica, pode aquilo ser dito de forma literal? Pode a metáfora ficar obsoleta? Não tenho a pretensão de solucionar um problema de tal monta; mas me inclino a pensar que não, que a prosa literal não pode traduzir o mundo do mesmo modo que a metáfora – e, nesse aspecto, também o símbolo – pode traduzi-lo. E por uma razão: a própria realidade é mais rica e dinâmica do que a linguagem, que existe a seu serviço; e a realidade sempre estoura a linguagem. Metáforas, símbolos e analogias mantêm a linguagem aberta para uma realidade que sempre a transcende; eles são como poros pelos quais a imaginação respira sentido.

a própria realidade é mais rica e dinâmica do que a linguagem, que existe a seu serviço; e a realidade sempre estoura a linguagem.

Minhas reflexões sobre o tema deram outro salto enquanto eu explorava as teorias de Thomas Kuhn sobre a origem das revoluções científicas. A teoria de Kuhn me atrai sob certos aspectos e me repele sob outros. Sua tentativa de quase-naturalizar a proliferação e extinção de teorias a partir da teoria darwiniana me parece plausível, e poderia ganhar reforços com a teoria evolutiva da mudança social; já o construcionismo histórico-social da sua hipótese sobre as mudanças científicas me parece intoleravelmente ácido para uma visão realista da ciência. 

Mas o ponto que capturou minha atenção por um bom tempo foi sua visão sobre o papel da metáfora na ciência. Em um artigo de 1986, “Mundos Possíveis na História da Ciência”, Kuhn diria o seguinte:

Os estudiosos da literatura há muito tempo assumem como dado que a metáfora e seus artefatos associados (aqueles que alteram as inter-relações entre as palavras) franqueiam acesso a novos mundos e, ao fazer isso, impossibilitam a tradução. Características similares foram amplamente atribuídas à linguagem da vida política e, por alguns, a todo o âmbito das ciências humanas. Mas as ciências naturais, lidando objetivamente com o mundo real (como o fazem), em geral são consideradas imunes. Acredita-se que suas verdades (e falsidades) transcendam as devastações causadas por mudanças temporais, culturais e linguísticas. Estou sugerindo, é claro, que não podem fazer isso.¹

Esse ponto menos conhecido do trabalho de Kuhn foi introduzido em novembro de 1980 em palestras na Universidade de Notre Dame, nas quais ele discutiu a passagem da física aristotélica para a física newtoniana, a descoberta da pilha elétrica por Alessandro Volta e o conceito de quantum de Max Planck.² Kuhn observou que cada uma dessas descobertas científicas dependia de conceitos que não estavam disponíveis àquela altura; elas exigiram mudanças conceituais holísticas, que alteraram simultaneamente várias categorias taxonômicas necessárias para a explicação científica, ao redor de uma metáfora básica. Cada uma dessas passagens envolveu um novo modelo e um novo léxico, encerrando uma nova estrutura conceitual.

No coração das revoluções científicas estaria “uma mudança central de modelo, metáfora ou analogia – uma mudança na ideia que se tem do que é similar a que e do que é diferente dele”. Ou seja: a descoberta científica revolucionária dependeria de um salto de imaginação, recriando os conceitos e formando uma nova base conceitual para explicar o fenômeno. Essas metáforas básicas estariam por trás da (aparente ou não) incomensurabilidade das teorias científicas. Esse insight se tornou tão importante para Kuhn que ele diria, mais tarde, preferir falar em mudança linguística a falar em “revolução”.

Se estou certo, a característica principal das revoluções científicas é que elas alteram o conhecimento da natureza intrínseco à própria linguagem, e que é, assim, anterior a qualquer coisa que seja em absoluto caracterizável como descrição ou generalização científica ou cotidiana. Fazer que o vazio ou um movimento linear infinito fossem parte da ciência exigiu relatos observacionais que somente podiam ser formulados alterando-se a linguagem com a qual a natureza era descrita.³

Novas metáforas contêm, de forma seminal, uma nova imagem da natureza, levando a novos léxicos e a novos modelos. Mas isso não é tudo; a mudança na estrutura de sentido deve ser assumida por uma comunidade para se tornar efetivamente um paradigma. Uma comunidade de pesquisadores – Kuhn sugere um número simbólico de cem pessoas – comporia uma “unidade produtora de conhecimento científico”, trabalhando a partir de um léxico particular. Esse léxico mantém a comunidade coesa “e, simultaneamente”, a isola de outros grupos, formando uma espécie de “nicho”, em analogia com a relação entre espécies e seus nichos biológicos. Assim como espécies, com seus nichos, podem ou não se mostrar eficientes e adaptativas, as comunidades científicas são fenômenos sociais e podem florescer ou se extinguir.

A discussão de Kuhn sobre o tema é fascinante, mas a uso apenas como um aperitivo; o meu ponto é que o diálogo entre a teologia e as ciências exige a imaginação metafórica, o léxico e a comunidade intelectual.

Em primeiro lugar, é preciso admitir que a prosa literal é insuficiente, porque ela tende a projetar sobre os fenômenos as categorias que ela conhece. Para darmos grandes passos adiante, é preciso introduzir possibilidades novas de sentido, que vão além do léxico corrente. Explicações novas dos fenômenos parecem depender de metáforas, símbolos e analogias novas, que expandem a imaginação, e essas novidades introduzem descontinuidades conceituais e lexicais. O conceito de “espaço” se transforma na passagem da física aristotélica para a newtoniana. Uma nova concepção de “pessoa” precisou ser desenvolvida durante a formulação da doutrina da trindade pelos Pais Capadócios, com ressonâncias em toda a história da civilização ocidental. 

A imaginação metafórica introduz uma instabilidade que afetará necessariamente os diálogos interdisciplinares; eles podem ser estimulados, por um lado, e entrar em conflito, por outro lado. Um exemplo óbvio foi o desconforto causado pela crítica de Galileu à cosmologia aristotélico-ptolemaica, uma vez que isso desestabilizava a teologia escolástica, devedora de Aristóteles. A nova filosofia natural, no entanto, com sua metáfora mecanicista, evocou uma nova teologia – a nova teologia física, que teve seu clímax em Robert Boyle e sua nêmesis em Darwin.

Explicações novas dos fenômenos parecem depender de metáforas, símbolos e analogias novas, que expandem a imaginação, e essas novidades introduzem descontinuidades conceituais e lexicais.

Se essa for a realidade sobre o progresso do conhecimento, não deveríamos nos apoquentar demais com as descontinuidades entre o discurso teológico e o discurso científico em um campo x ou y – entre, digamos, teologia e biologia, ou teologia e psicologia moral, ou teologia e ciência política. Evidentemente, contradições manifestas nos obrigarão a fazer escolhas, mas um sistema completamente fechado pode bloquear a imaginação e novas descobertas. Por isso, deixar uma folga nos sapatos será sempre necessário.

Eu não quero dizer, com isso, que não devamos buscar a integração conceitual entre as várias ciências e a própria teologia; dizer, por exemplo, que a criação é analógica em relação a Deus é, de certo modo, integrar a realidade. Meu ponto é que a tarefa do diálogo entre a teologia e as ciências não pode ser “concluída” por meio de um léxico definitivo e um sistema incorrigível, porque isso contradiz a ordem efetiva da imaginação científica. A imaginação não serve à linguagem, mas a linguagem serve à imaginação.

Isso poderia ser apenas um conselho prudente, baseado em evidências significativas da história da ciência; mas, diante do fato da revelação divina, não temos outra alternativa: a própria realidade criada foi reconhecida no cristianismo como uma espécie de “gramática” que significa o que está além dela (pronto, lá vem as metáforas!). Nesse caso, metáforas e analogias não seriam complementos decorativos, mas as ferragens construtivas para a interpretação da realidade inteira. 

Todavia, essa moeda tem outro lado. Havendo um Criador e sendo o mundo uma criação, deveríamos esperar que nossas explanações científicas sobre a realidade apresentassem algum tipo de congruência com a explanação teológica. Essa é questão do léxico, que se desenvolve ao redor da imaginação metafórica: uma vez que se encontre uma chave promissora para correlacionar Deus e Natureza, uma estrutura conceitual com um alcance cada vez maior precisará ser desenvolvida, explorando as possibilidades que o novo modelo apresenta. Assim como uma andorinha só não faz verão, um salto imaginativo sem um novo léxico não faz um paradigma. 

Os campos de diálogo entre a teologia e as ciências não podem, por conseguinte, renunciar à necessidade de operar com paradigmas. O imperativo da unidade do conhecimento deve atuar sempre em tensão dialética com a criatividade e a descoberta, cultivando a imaginação e a coerência conceitual.

O imperativo da unidade do conhecimento deve atuar sempre em tensão dialética com a criatividade e a descoberta, cultivando a imaginação e a coerência conceitual.

E isso nos leva à questão da comunidade intelectual, que compartilha de um léxico e de uma imagem da realidade ou de uma dimensão da realidade. É muito significativa a amarração que Thomas Kuhn realiza entre os paradigmas e as comunidades que os sustentam. No posfácio de sua obra original, ele chega a dizer que a tomada de decisão nos embates teóricos não é dos membros individuais, mas da comunidade de especialistas como um todo.⁴ Na cooperação/competição entre paradigmas e saberes diversos, as unidades “selecionadas” são coletividades que apresentam coesão imaginativa e lexical. 

Nesse sentido, uma comunidade ocupada com o diálogo de teologia e ciência precisaria cultivar um grau de tensão cognitiva, sabendo que a imaginação criativa pode levar à revisão ou à subversão de um léxico, mas sempre consciente de que nenhum diálogo pode ser feito eficientemente sem um nível de coesão conceptual e linguística. Questões interessantes podem brotar daí: que virtudes poderiam ser nomeadas e cultivadas com o fim de manter as duas atitudes simultaneamente, a criatividade metafórica e a lealdade lexical?

Creio que podemos ser mais específicos a respeito disso; a realidade de que o mundo foi criado por meio do Logos que se encarnou em Jesus Cristo é o núcleo duro de realidade que demanda de nós a correlação entre conhecimento teológico e conhecimento científico. Essa correlação envolve necessariamente um léxico e um conjunto de imagens sobre Deus, a natureza, e a relação entre ambos; mas, de modo mais específico, já que estamos falando sobre conhecimentos, envolve uma imagem sobre como o conhecimento de Deus e o conhecimento da natureza se relacionam.

É assim que poderíamos entender a imagem da “ressonância”, popularizada por Alister McGrath, para descrever o campo da teologia da natureza:

A natureza é aqui interpretada como um "segredo revelado" – uma entidade de acesso público, cujo verdadeiro significado é conhecido apenas com base no ponto de vista da fé cristã. No entanto, essa ideia não está fundamentada em uma tentativa de "provar" a existência de Deus com base na observação da natureza, mas na capacidade da cosmovisão cristã de entender o que é observado, incluindo a capacidade humana de dar sentido às coisas. A fecundidade explanatória do cristianismo é afirmada quando o vemos ressoar (resonate) com o que é observado. "Eu creio no Cristianismo como creio que o Sol nasceu – não apenas porque eu o vejo, mas porque, através dele, eu vejo tudo o mais"... Nessa abordagem, a apologética se funda na ressonância (resonance) entre cosmovisão e observação...”.⁵

Falamos em metáforas, como Lewis com o seu “Sol” brilhante. A ideia de ressonância é a semente de um órganon; ela assume que, sob a avassaladora complexidade do mundo, há um mistério, uma convergência divina, que se manifesta visível apenas sob a luz da revelação trinitária. É uma realidade latente, que se torna patente quando o evangelho reverbera na ordem criada. Se a metáfora pode ser parcialmente traduzida nas ideias de adequação empírica e inferência à melhor explanação, traz um dinamismo e uma amplitude maiores que a teoria epistemológica.

Não quero excluir outras possibilidades explanatórias, mas o fato de a complexa ideia de uma teologia natural evangélica e trinitária ser tão elegantemente expressa em uma metáfora simples não me parece algo trivial; como a Academia de Platão era fechada aos ignorantes da geometria, a integração entre a teologia e as ciências está fechada aos que ignoram metáforas.

Enfim, por mais elegante que seja, uma imagem da realidade não terá força histórica sem uma comunidade que desenvolva essa imagem em uma taxonomia dos fenômenos e um léxico compartilhado. Talvez nem todos compartilhemos das mesmas metáforas e analogias fundamentais, com um grau de coesão mínimo para que uma verdadeira comunidade intelectual possa se desenvolver; isso se mostrará ao longo da jornada. De todo modo, as imagens que adotamos da cognoscibilidade de Deus, da Natureza e de sua relação mútua, bem como o grau de coesão que alcançamos ao explorá-las, determinarão o grau de impacto e a contribuição da nossa comunidade. Em outros termos: sem um paradigma de teologia natural compartilhado, com seu léxico e suas imagens implícitas, há poucas chances para o florescimento de uma comunidade intelectual, tendo em vista que nossa imaginação não irá mais longe do que as nossas metáforas.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Thomas S. Kuhn, “Mundos Possíveis Na História Da Ciência (1986)”, in O Caminho Desde a Estrutura: Ensaios Filosóficos, 1970-1993, Com Uma Entrevista Autobiográfica, ed. by James Conant and John Haugeland, 2003, p. 98.

2. Ibidem, p. 23-45.

3. Kuhn, “O Que São Revoluções Científicas? (1981)”, p. 44-5.

4. Thomas S. Kuhn, A Estrutura Das Revoluções Científicas, 2006, p. 248-9.

5. Alister McGrath, The Open Secret: A New Vision for Natural Theology, 2008, p. 16-17. A tradução brasileira emprega o termo “consonância”, que me parece perder o sentido original de “resonance/resonate”.

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