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ENSAIO

A relação religião-ciência no pensamento de Francis Bacon*

Sobre o domínio da natureza e o propósito da ciência

Marília Giammarco Polli|

22/09/2023

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Marília Giammarco Polli

Mestranda em Filosofia pela UFABC e graduada em Filosofia pela UNICAMP. Professora de Filosofia na educação básica em São Paulo. Foi líder do grupo local da ABC² de Campinas em 2021.

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Como citar

Polli, Marília Giammarco. A relação Religião-Ciência no pensamento de Francis Bacon: sobre o domínio da natureza e o propósito da ciência. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A ciência, enquanto atitude de buscar conhecer o mundo, é uma atividade perene na história da humanidade. No entanto, diversas características da atividade que chamamos de ciência hoje tiveram sua materialização inicial em um contexto histórico específico. Em geral, a historiografia toma como fator importante da construção da “ciência moderna” o que foi chamado de Revolução Científica.¹ No entanto, um traço peculiar da ciência incipiente no período da Revolução é a sua estreita ligação com pressupostos, perspectivas e instituições religiosas – traço este que difere consideravelmente do cenário científico atual.

Se hoje temos uma visão “secular” da ciência, os protagonistas da Revolução Científica não pensavam do mesmo modo. Pelo contrário, muitos eram religiosos convictos que fundamentavam sua prática científica em suas experiências e crenças religiosas. Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei (1564-1642), Blaise Pascal (1623-1662), Robert Boyle (1627-1691), Michael Faraday (1791-1867), dentre outros, eram homens que se situavam em tradições diversas do cristianismo. Vemos, assim, uma prática científica incipiente que forja sua identidade a partir de pressupostos cristãos.²

Dentre os cientistas citados, destaca-se Francis Bacon, filósofo frequentemente considerado um dos fundadores do método experimental. Embora atualmente haja grande discussão sobre o que seria o método científico — se é que se pode se falar de um método único — é inegável que Bacon deu uma grande contribuição, se não por criar, ao menos por ser um dos primeiros a sistematizar e organizar os princípios do novo método experimental que, em grande medida, serviu de base para o fazer científico. Bacon dedicou grande parte de seus esforços para realizar uma “restauração total dos saberes”. Num cenário de uma ciência incipiente e um cristianismo latente — lembremo-nos da proximidade cronológica da Revolução Científica com a Reforma Protestante —, é de se esperar que a relação entre ciência e religião (embora com diferentes roupagens) tenha sido um tema recorrente em sua obra. Neste trabalho, buscaremos evidenciar Bacon como um exemplo de como as crenças religiosas podem influenciar a prática científica. A partir dessa perspectiva, analisaremos a relação entre religião e ciência na obra do filósofo.

O recorte que se propõe aqui é a mudança de paradigmas no que diz respeito às bases epistemológicas e, concomitantemente, aos sentidos últimos da ciência. Se há uma mudança no método científico no período da Revolução Científica, ela não poderia ocorrer sem uma nova base epistemológica. Bacon é, sem dúvida, um filósofo preocupado em estabelecer essas novas bases, e sua contribuição é decisiva nesse sentido.³ 

Destacaremos duas contribuições: (i) a ênfase em uma scientia operativa; (ii) a proposta  de uma ciência que servisse ao bem comum. Nossa breve análise buscará identificar, dentre os pressupostos e caminhos argumentativos das contribuições baconianas, as rupturas e continuidades entre o pensamento de Bacon e o contexto cultural com o qual ele dialoga a saber, a filosofia escolástica e a influência aristotélica. Bacon é não somente um filósofo cristão, mas um filósofo que se preocupa em fazer uma filosofia que nutra e condiga com sua fé. Desse modo, não surpreende que muito de sua filosofia encontre ressonância, se não com a filosofia medieval, ao menos com a teologia cristã puritana, algo que buscaremos evidenciar com este trabalho.

Inicialmente, é importante salientar que o tema que vamos abordar não é exatamente novo. Vários autores já discutiram extensivamente as origens cristãs da ciência moderna,⁴ assim como os pressupostos metafísico-teológicos de seus primeiros proponentes. Não obstante, sendo a obra de Bacon e seus comentadores tão vasta, é proveitosa a sistematização aqui proposta, que tem como eixo a relação entre ciência e religião no pensamento baconiano. Ao examinarmos atentamente a história dessa relação, especialmente no período de  “advento” da ciência moderna, podemos compreender as complexidades e nuances desse debate de maneira mais informada. Nossa intenção, desse modo, é fornecer mais uma ferramenta que promova um diálogo saudável entre esses campos. 

A nova scientia operativa

Como ponto de partida, tomaremos a ideia de scientia predominante na filosofia escolástica, em especial representada por Tomás de Aquino, para o qual  “scientia não é apenas um conjunto de proposições ordenadas, mas também uma disposição mental”.⁶ Em seu Comentário aos “Segundos Analíticos”, Tomás se refere a dois estágios necessários para aquisição de scientia: primeiro, é preciso conhecer as causas e, por meio do conhecimento das causas, conhecer os efeitos; posteriormente, em um segundo estágio, a aquisição da scientia está ligada à familiaridade com a causa em um determinado campo. Enquanto o primeiro estágio depende do uso do método silogístico, o segundo remete a um tipo de formação da mente em que se criam hábitos de pensamento nos quais o conhecimento sobre a causa se torna o fundamento epistêmico do conhecimento do efeito: 

O objetivo da investigação, então, é adquirir uma familiaridade com as causas em um campo de estudo tal que os efeitos não sejam surpreendentes, mas esperados com base em nossa apreensão das causas. Não é suficiente simplesmente chegar à causa por meio da razão, pois imediatamente após a descoberta dela, a causa ainda pode ser menos conhecida do que seus efeitos, e até inferida a partir desses efeitos. Deve haver uma apreensão clara da causa, de modo que dela flua uma consciência de seus efeitos. O que é necessário é a indução do hábito de pensamento sobre um campo de estudo.⁷

Em uma palavra, o propósito da scientia é fazer com que o pensamento se espelhe à ordem da causalidade. Assim, embora a aquisição da scientia necessite do método silogístico, ela não se restringe a ele. Além disso, para Tomás de Aquino, o exercício de habituação da mente iniciado na filosofia natural prepararia as mentes para o conhecimento das verdades teológicas mais elevadas que, por sua vez, levaria a uma restauração da mente.⁸ Segundo Harrison, “o que realmente acontece no exercício da filosofia natural e da teologia é um processo de formação e aprendizado que leva à habituação intelectual para alcançar a reestruturação cognitiva”.⁹ Ou seja, o exercício silogístico, seguido de habituação da mente, quando aplicados à filosofia natural, seriam um processo de habituação para a scientia das verdades teológicas, que almejam, em última instância, a reestruturação cognitiva.

A nova ciência, conforme pensada por Francis Bacon, quebra esse paradigma ao enfatizar a falibilidade da razão humana e a impossibilidade de uma reestruturação cognitiva, ao menos sem o uso das ferramentas apropriadas. Logo nos primeiros aforismos do Novum Organum,¹⁰ Bacon acusa a mente humana de não poder, por si só, produzir a ciência: “A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única: enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados”.¹¹ 

A nova ciência, conforme pensada por Francis Bacon, quebra esse paradigma ao enfatizar a falibilidade da razão humana e a impossibilidade de uma reestruturação cognitiva, ao menos sem o uso das ferramentas apropriadas.

Tal mudança de paradigma repercute o ethos do puritanismo inglês — no qual se situava Bacon — que trouxe uma ênfase na doutrina da Queda.¹² Se antes da Queda o homem era dotado de uma perfeição que “lhe permitia conhecer plenamente a natureza, pois a mente humana tinha a capacidade de refletir o universo”,¹³ após a Queda, Bacon acusa a mente de ser incapaz, por si só, de reproduzir ou compreender a natureza fielmente: 

Pois a mente do homem está longe da natureza de um espelho claro e liso em que os raios das coisas deveriam refletir de acordo com a sua verdadeira incidência; não, é como um espelho encantado, cheio de superstição e impostura, se ela não for liberada e corrigida.¹⁴

A partir de então, a scientia levaria não à restauração da mente para alcançar o conhecimento de Deus, mas sim à restauração do domínio do homem sobre a natureza (domínio instituído por Deus), o que chamamos de scientia operativa. Portanto, se na escolástica prevalecia a esperança na restauração da mente por intermédio da instrução e do desenvolvimento da virtude, a nova filosofia natural experimental, fundamentada na ideia de um intelecto caído, se voltará para a transformação do externo ao ser humano — a operação sobre a natureza. Embora a ideia baconiana de transformação da natureza se contraste com a de desenvolvimento de virtude, nota-se que ela não corresponde a um ideal secularizado de ciência, mas sim a um novo ideal de ciência baseado em pressupostos teológicos distintos.

Desse modo, a scientia operativa deve operar na natureza — restaurando o domínio do homem sobre ela. Bacon, afirma que: 

Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte, ainda nesta vida; a primeira com a religião e com a fé, a segunda com as artes e com as ciências.¹⁵

Será necessário, agora, o uso de outras ferramentas — ou ainda, de técnicas. Se o método que se tinha até então era o silogismo, agora, com a ênfase na falibilidade da razão humana, um novo método instrumental e experimental precisará ser criado para restaurar o domínio do homem sobre a natureza. 

Resta apenas um caminho para a recuperação de uma condição sólida e saudável, a saber, que todo o trabalho do entendimento seja iniciado de novo, e a própria mente desde o início não seja deixada seguir seu próprio curso, mas guiada a cada passo como se por máquinas.¹⁶

Este novo método é o mecanismo pelo qual a mente caída é regulada, e contará agora com novos instrumentos para operar e agir sobre a natureza. O domínio da natureza requer a ação do homem, ação esta que não é uma mera consequência do conhecimento, mas é o próprio atributo que o define: “Bacon acredita que, para conhecermos algo temos que fazê-lo, e que, quando fazemos algo, é porque conhecemos”.¹⁷ A transformação da natureza, em oposição à mera contemplação, se torna um elemento distintivo da filosofia natural: 

Bacon define a filosofia natural como "a investigação das causas e a produção dos efeitos" (IV, 346). Não há nada a objetar à primeira parte desta definição do conhecimento do ponto de vista das antigas epistemologias. No entanto, o complemento crucial de que o conhecimento deve garantir a "produção de efeitos" não pode ser facilmente acomodado na matriz geral do discurso filosófico ocidental. Ele espelha o giro operativo ou a ênfase do "saber-fazer" que Bacon dá à antiga concepção da Natureza [...] o domínio sobre os componentes elementares da Natureza "induz" ou conduz o conhecedor à (re)produção de efeitos naturais.¹⁸

A grande mudança proposta por Bacon é que, agora, o domínio do conhecimento da natureza (ou das causas) deve conduzir à reprodução dos efeitos, ou, ainda, como veremos, ou à criação de novas naturezas. Bacon está aqui subscrevendo uma longa  tradição, que remete à Antiguidade Clássica, conhecida como maker’s knowledge, segundo a qual o ser humano que conhece é identificado com o ser humano que faz. A nova base epistemológica é a de um conhecimento que depende da operação sobre a natureza:

Em resumo: se uma afirmação científica pode levar à (re)produção bem-sucedida do fenômeno que pretende descrever, por mais grosseira ou aproximada que seja, então essa mesma afirmação deve ser aceita como um habitante pleno no reino do conhecimento sancionado na prática.¹⁹

Esse conhecimento criador depende, em grande medida, da negação de uma ideia aristotélica segundo a qual há uma lacuna intransponível entre a natureza e a arte humana. Com essa distinção, a criação de novas naturezas era comumente negada. A arte, ou, ainda, a técnica, seria sempre mimética em relação à natureza. A linha que separa natureza e arte humana se torna mais tênue na medida em que, para Bacon, era possível a criação de novas naturezas: “não havia razão para pensar que o fogo artificial não pudesse fazer as mesmas coisas que o Sol”.²⁰ Era necessário mostrar que a dicotomia entre objetos naturais e artificiais era questionável. Para isso, Bacon adiciona à tradição do maker’s knowledge um sentido teológico, remetendo ao domínio do homem na natureza instaurado por Deus através da ideia de que o homem é “ministro e intérprete da natureza”²¹ e, portanto, pode transformá-la e criá-la. 

A linha que separa natureza e arte humana se torna mais tênue na medida em que, para Bacon, era possível a criação de novas naturezas: “não havia razão para pensar que o fogo artificial não pudesse fazer as mesmas coisas que o Sol”.

Ora, se a filosofia natural baconiana servia para restaurar o domínio do homem sobre a natureza, resta-nos compreender em que especificamente consistia esse domínio. O que deveria o homem buscar na natureza? Ou seja, para que fins deveria manipulá-la?²² 

O propósito da scientia operativa

No contexto escolástico, a transformação da mente como fundamento para o envolvimento com a natureza estava associada ao entendimento dela como um  livro de Deus. Esse entendimento remete, se não ao apóstolo Paulo,²³ ao menos a diversos Pais da Igreja, como Atanásio (296-373), João Crisóstomo (347-407), Agostinho (354-430) e Evágrio Pôntico (345-399).²⁴ Conforme Agostinho aponta em A doutrina cristã, devemos usar este mundo para, por meio do que é material, aprender o que é espiritual. Essa percepção é corroborada, mais tarde, por Tomás de Aquino, ao afirmar que “a bem-aventurança do homem consiste de algum modo no uso correto das criaturas e no amor bem-ordenado delas”,²⁵ e por Hugo de São Vítor (1096-1141), segundo o qual:

[...] o mundo sensível inteiro é como uma espécie de livro escrito pelo dedo de Deus — ou seja, criado pelo poder divino — e cada criatura em particular é de algum modo semelhante a uma figura, não inventada pela decisão humana, mas instituída pela vontade divina para manifestar as coisas invisíveis de sabedoria de Deus.²⁶

Segundo ele, cada criatura do mundo sensível manifesta a sabedoria de Deus. Assim, as criaturas exibem uma certa transparência à sabedoria divina que pode ser acessada pelo homem. Boa ilustração dessa ideia são os bestiários medievais, que descreviam diversas espécies de animais (alguns dos quais poderiam não existir) fazendo interpretações simbólicas ou alegóricas deles com propósitos morais. Nesse sentido, o mundo da natureza seria provedor das necessidades morais e espirituais dos humanos, caracterizando uma abordagem, até certo ponto, utilitarista da natureza baseada na leitura alegórica de seus elementos.

A leitura alegórica da natureza foi posteriormente incorporada, a seu modo, pela tradição protestante ao adentrar na Confissão Belga: 

Nós o conhecemos por dois meios: primeiro: pela criação, manutenção e governo do mundo inteiro, visto que o mundo, perante os nossos olhos, é como um livro formoso em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar “os atributos invisíveis de Deus, isto é, “o seu eterno poder como também a sua própria divindade, como diz o apóstolo Paulo (Rm 1, 20).²⁷

Segundo esse entendimento, Deus se revela de dois modos, ou, ainda, em dois livros: pela divina Palavra (as Escrituras) e pela Criação. Conhecida como a “metáfora dos dois livros”, essa ideia permitiu a leitura e o estudo do “livro da natureza”. 

A metáfora dos dois livros também encontra ressonância em Bacon que, como vimos, estabelece novos modos de ser humano e natureza se relacionarem. Ele faz a distinção entre Palavra Divina [God’s Word] e Obra Divina [God’s Work]. Na Palavra Divina — as Escrituras — Deus revela sua vontade, e na Obra Divina — a natureza — Deus revela seu poder.²⁸ Essa distinção baconiana, embora possa ser facilmente confundida com a metáfora dos dois livros, possui uma característica distintiva: se a vontade de Deus se manifesta somente na Palavra, não se pode conhecê-la por meio da Obra. Encontramos aqui a distinção entre a filosofia natural, ou seja, o estudo da Obra Divina, e a teologia, isto é, o estudo da Palavra Divina: 

investigar as coisas sensíveis e naturais para tentar atingir a verdadeira natureza ou vontade de Deus significa estar corrompido pela vã filosofia; devemos buscar não o conhecimento de Deus, mas acima de tudo a nossa adoração pelo ser supremo. [...] Portanto, confundir teologia com filosofia ou vice-versa é incorrer num grave erro, ou seja, continuar no registro da vã filosofia.²⁹

Bacon não condena o estudo da natureza, mas dá-lhe outro propósito: o filósofo natural não  busca saber a vontade divina — ou seja, não busca descobrir a sabedoria divina por meio da criação —,  mas sim adorar a Deus por meio do conhecimento de seu poder. 

É importante ressaltar que Bacon não tem a intenção de despir a natureza da religião, mas sim de apresentar uma abordagem “verdadeiramente cristã”, que não poderia ser contaminada pela “filosofia pagã”. Esse ideal encontra ressonância na Reforma, que buscava distanciar-se do “catolicismo paganizado” representado pelas leituras escolásticas de Aristóteles. Para além de Bacon, a visão alegórica da natureza já perdia força no século 17 também por causa do ceticismo de reformadores como Lutero e Calvino com relação às leituras alegóricas da Escritura e à consequente exaltação do sentido literal dos textos das Escrituras. Tal ceticismo é levado ao extremo por Bacon, que não buscava ler o livro da natureza como uma alegoria, ou seja, um meio para a sabedoria divina, mas sim como um objeto de estudo por si só. Por fim, agora não se interpretaria mais os dois livros com a mesma hermenêutica (a alegoria), pois a interpretação do livro da natureza ganharia seus próprios métodos, que seriam definidos por Bacon como os preceitos de sua filosofia experimental.³⁰

Bacon não tem a intenção de despir a natureza da religião, mas sim de apresentar uma abordagem “verdadeiramente cristã”, que não poderia ser contaminada pela “filosofia pagã”.

Excluídos a transparência da natureza e o aprimoramento moral, os objetivos da filosofia natural se definirão pela restauração da condição pré-Queda a partir do domínio da natureza. A scientia operativa e o conhecimento do mundo de nada adiantariam sem um propósito maior, que seria agora uma espécie de remediação da condição pecadora do ser humano após a Queda por meio do avanço na técnica e da ciência:

E portanto não é o prazer da curiosidade, nem a quietude da resolução, nem a elevação do espírito [...], mas é restituição e reinvestimento (em grande parte) do homem à soberania e poder (pois sempre que ele puder chamar as criaturas por seus verdadeiros nomes, ele as comandará novamente) que ele tinha em seu primeiro estado de criação.³¹

Essa restauração de um estado original não se confunde com a restauração cognitiva almejada pela filosofia escolástica, como vimos anteriormente. Bacon não depositava completamente na técnica e na ciência o poder redentivo, mas considerava a importância própria da religião:

A nova ciência é "um certo curso e caminho" (IV, 32), acompanhado de "assistência divina" que ajuda a realizar uma "verdadeira e legítima humilhação do espírito humano" (IV, 19-20). A entrada nas novas ciências depende de seus seguidores imitarem as criancinhas favorecidas por Cristo, crianças cuja ausência de vaidade lhes dá acesso privilegiado ao reino dos céus (IV,69).³²

A filosofia experimental, segundo Bacon, está intrinsecamente ligada a pressupostos éticos que envolvem uma busca pela inocência pré-Queda comparável à inocência das crianças. Portanto, a compreensão desses pressupostos éticos se torna fundamental para uma análise mais aprofundada da filosofia baconiana. Nesse contexto, é importante destacar o papel da caridade como elemento central em sua abordagem. Nos próximos parágrafos, examinaremos de forma mais detalhada a presença desses aspectos éticos.

Já vimos que a filosofia experimental continua, com Bacon, fortemente dependente de uma relação com a religião. Adiante, ele estabelece a base sobre a qual a filosofia experimental deve construir-se:

novamente o mesmo autor [Paulo] nega notavelmente o conhecimento e o poder que não estejam dedicados à bondade ou ao amor, pois, diz ele: Se eu tiver uma fé tamanha que possa mover montanhas, (aqui está o poder ativo), se entregasse meu corpo para o fogo, (aqui o poder passivo), se falasse as línguas dos homens e dos anjos, (aqui o conhecimento, pois a linguagem é nada mais que a transmissão de conhecimento), tudo isso não valeria nada.³³

Bacon faz referência a uma passagem do apóstolo Paulo na Bíblia, mais precisamente no primeiro capítulo da primeira carta aos Coríntios. Nele, Paulo fala sobre a importância da caridade (bondade ou amor) em relação ao conhecimento e ao poder. Bacon está argumentando aqui que mesmo a scientia operativa se torna vazia e sem valor se não for dedicada à caridade, sugerindo que o verdadeiro valor do conhecimento e do poder está em como eles são utilizados para o bem-estar dos outros e para o bem da sociedade como um todo.³⁴

Desse modo, a nova filosofia natural não mais se mistura com a religião em seus métodos, mas é subordinada a suas finalidades, e tais finalidades se definem pela busca do bem-estar humano: 

Deve ainda ser lembrado que a menor parte do conhecimento transmitido ao homem por esta carta tão grande de Deus [a natureza] deve estar sujeita ao uso para o qual Deus o concedeu, que é o benefício e o alívio da condição e da sociedade do homem.³⁵

No esquema baconiano, como vimos, o conhecimento é definido em termos de sua operacionalização — conhecer é “fazer”, necessariamente. O trabalho da filosofia natural, desse modo, é medido a partir de seus frutos. No Novum Organum, Bacon faz uma crítica aos antigos sistemas gregos, acusando-lhes de, depois de tantos anos, não terem conduzido um único experimento que alivie e beneficie a condição humana, o que faz com que tais sistemas, na verdade, não possam nem mesmo ser chamados de filosofia.³⁶ Alívio da condição humana, restauração da condição original (pré-Queda) e bem comum se associam, pois todos apontam para o mesmo sentido: uma filosofia experimental que promova o bem para o ser humano e a sociedade.

Nesse sentido, uma visão estritamente utilitarista da ciência só pode ser equivocadamente atribuída ao filósofo. A ciência, para Bacon, deve servir ao bem da civilização, e é esse o propósito fundamental de toda a sua reforma dos saberes. Conhecimento e caridade não podem ser separados

Rezo humildemente... para que o conhecimento, agora descarregado daquele veneno que a serpente infundiu nele e que faz a mente do homem inchar, não sejamos sábios acima da medida e da sobriedade, mas cultivemos a verdade na caridade. Por fim, gostaria de dirigir uma advertência geral a todos; que considerem quais são os verdadeiros fins do conhecimento, e que não o busquem nem por prazer da mente, nem por contenda, nem por superioridade sobre os outros, nem por lucro, nem fama, nem poder, nem por nenhuma dessas coisas inferiores; mas para o benefício e uso da vida; e que o aperfeiçoem e governem na caridade. Pois foi do desejo de poder que os anjos caíram, do desejo de conhecimento que o homem caiu; mas da caridade não pode haver excesso, nem o anjo ou o homem jamais correram perigo por ela.³⁷

A ciência, para Bacon, deve servir ao bem da civilização, e é esse o propósito fundamental de toda a sua reforma dos saberes. Conhecimento e caridade não podem ser separados.

Em sua oração, Bacon alerta para que o conhecimento seja despojado do veneno que a serpente infundiu nele, referindo-se ao relato bíblico da Queda. Se a mente humana corre perigo de tornar-se orgulhosa e inchada por causa do conhecimento, a verdade deve ser cultivada na caridade para que a humildade prevaleça.  Ele ressalta que o conhecimento não deve ser buscado por prazer intelectual, rivalidade, superioridade, ganho material, fama ou poder, nem por qualquer motivo inferior. Em vez disso, deve ser buscado e utilizado para o benefício e o propósito da vida, e deve ser governado pela caridade. Bacon enfatiza a importância da caridade como um princípio fundamental na busca e na aplicação do conhecimento.

Considerações finais

Por meio dessa breve “viagem histórica”, observamos como Francis Bacon delimita as bases da ciência moderna (i) ao estabelecer uma scientia operativa preocupada com o domínio do homem sobre a natureza (ii) para produzir e propagar o bem comum. Vimos, no entanto, o quanto todos esses elementos estão imbuídos de pressupostos teológico-cristãos: (i) uma desconfiança com a razão humana e o consequente uso de instrumentais e ferramentas; (ii) o retorno a um estado natural perdido pelo pecado original e (iii) a ênfase na caridade cristã como fim de todo o conhecimento. 

Os ideais baconianos fizeram parte da origem do que hoje chamamos hoje de ciência, mas carecem da ênfase no progresso como um fim em si mesmo que enxergamos na atualidade,³⁸ e têm como base pressupostos teológicos que foram suprimidos na história. A ideia de utilidade caritativa de ciência baconiana deu lugar a uma ciência concentrada estritamente em resultados práticos e, muitas vezes, mercadológicos. Em um sentido, subsiste hoje uma fé no progresso científico que, quase despido de limitações éticas, leva a uma produção científica por vezes destrutiva. Resta-nos, assim, propagar a busca por uma visão equilibrada da ciência, que entenda seus limites e abrace suas vitórias — empreitada para o qual o estudo da história da ciência, e em especial de figuras como Francis Bacon, tem muito a colaborar.

Por fim, uma leitura estritamente utilitarista, tanto de Bacon quanto da própria ciência nos dias atuais, pode nos levar a pensar que o que importaria, de fato, seria a produção de artefatos e tecnologias para o desenvolvimento e progresso da humanidade. Essa leitura, no entanto, não nos parece coerente com a filosofia de Francis Bacon, que busca atribuir uma finalidade comunitária a seu método experimental: os bens produzidos pela ciência só são relevantes na medida em se alinham ao pressuposto ético da caridade.

 

 

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Referências

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* Ensaio classificado em 4º lugar na 2ª Chamada do Radar ABC². 

A autora agradece à Profª. Dra. Luciana Zaterka pelos comentários valiosos à primeira versão deste trabalho.

1. Há incontáveis discussões sobre a natureza, a datação e a própria existência dessa revolução. Não obstante, é consenso que houve a partir do século 17 um grande florescimento do que se pode chamar de uma filosofia natural e que os expoentes desse período inauguraram alguns traços essenciais da ciência tal qual é hoje.

2. Não subscrevemos, assim, a ideia de que há um conflito perene – histórico e filosófico – entre ciência e religião. Pelo contrário, aliados a inúmeras pesquisas da historiografia e da filosofia, buscamos um olhar honesto para as complexas relações que essas duas atividades humanas têm e tiveram ao longo da história.

3. Rossi, 1996, p. 26. Todas as citações deste artigo são traduções próprias dos originais em inglês, exceto as obras que já foram referenciadas em português.

4. Ver, por exemplo: Hooykaas, 1988; McGrath, 2020.

5. Utilizamos o termo em latim “scientia” para manter a proximidade com os textos originais – tanto de Francis Bacon quanto de outros filósofos citados que utilizam o termo, como Tomás de Aquino.

6. Harrison, 2017, p. 83. 

7. Jenkins, 1997, p. 47. Para uma análise detalhada da interpretação de Tomás dos Segundos Analíticos de Aristóteles que leva o medieval a ter essa visão, ver: Jenkins, 1997, pp. 11-50.

8. Assim, quando Bacon exclui a possibilidade de conhecimento das causas finais no Novum Organum, também está se distanciando desse tipo de pensamento. O ponto principal é que conhecemos a Deus como a causa última das criaturas, enquanto para Bacon não poderíamos conhecer essa causa última.

9. Harrison, 2017, p. 83.

10. O título dessa obra baconiana — em português, o “Novo Órganon” — faz referência ao Organum aristotélico, fato que reflete uma característica marcada pela Reforma: a recusa da filosofia aristotélica. Lembremo-nos dos esforços de Lutero para retirar o estudo da filosofia aristotélica da Universidade de Wittenberg. Ver: Luther, 1908. — para seleção de cartas enviadas por Lutero, em especial a carta “Luther to John Lange, 18 May 1517”.

11. Bacon, Novum Organum, I, IX. Apenas para as citações do Novum Organum, utilizamos a notação usual que segue a fórmula “Número do livro, número do aforismo”. 

12. Harrison, 2007, explora em detalhes os diferentes modos pelos quais a Doutrina da Queda influenciou as discussões sobre a ciência moderna nascente. 

13. Zaterka, 2004, p. 97. 

14. Bacon, 1857-1973, apud Zaterka, 2004, p. 97. Bacon aqui se refere a sua complexa e importante Doutrina dos Ídolos, que se refere a  falsas noções ou ilusões que podem obscurecer a compreensão da realidade, fazendo com que nossa mente seja este “espelho encantado”.

15. Bacon, Novum Organum,  II, LII. 

16. Bacon, Novum Organum, Prefácio.

17. Zaterka, 2004, p. 110

18. Perez-Ramos, 2006, p. 104.

19. Ibidem, p. 111.

20. Hooykaas, 1988, p. 89.

21. Bacon, Novum Organum,  I, I.

22. Vale ressaltar que esse imperativo bíblico sobre o domínio da natureza (presente em Gênesis 1. 26-31) tem sido amplamente discutido nos últimos 50 anos, em especial pela sua relação com o cenário atual de degradação ambiental. O tema aparece, em especial, relacionado a questões concernentes ao mandato cultural e à ecoteologia. Ver: Schaeffer, 2003; Van Dyke et al., 1999.

23. Como na carta aos Romanos 1. 19-20.

24. Para mais detalhes sobre essas referências, cf. Harrison, 2017, p. 72.

25. Tomás de Aquino, ST 2a2ae, 9, 4 apud Harrison, 2017, p. 78. Mais sobre os “livros da natureza”: Tanzella-Nitti, 2004.

26. Hugo de São Vítor, De sacramentos, Prólogo 4, apud Harrison, 2017, p. 73.

27. Confissão Belga, Artigo 2. Utilizamos a Confissão Belga como exemplo paradigmático por ser considerada o primeiro dos padrões doutrinários da Igreja Reformada, embora seu contexto de elaboração seja a Igreja Reformada da Holanda, seus pressupostos reverberam também no contexto do puritanismo inglês no qual se encontrava Francis Bacon.

28. Zaterka, 2004, p. 98. Essa distinção pode ser encontrada em Bacon, 2011, p. 221. 

29. Ibidem, p. 99.

30. Tais preceitos podem ser encontrados no Novum Organum. 

31. Bacon, 2011a, p. 222.

32. Briggs, 1996, p. 176.

33. Bacon, 2011a, p. 222.

34. Despida de sua fundamentação teológica, essa ideia tomará forma mais adiante, na história da ciência, levando-nos a uma visão de ciência totalmente voltada para o progresso da humanidade. 

35. Ibidem, p. 221s.

36. Bacon, 2011b, p. 72. 

37. Bacon IV [1901], apud Klein e Giglioni, 2023. 

38. A questão do progresso da ciência (e da humanidade) é ampla e profunda, sendo aqui apenas citada como uma problemática instaurada a partir de uma leitura parcial ou equivocada de Bacon. Para mais sobre a questão do progresso, ver: Harrison, 2017, pp. 129-156; Goudzwaard, 2019. 

Outros ENSAIOS [nº 2]

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