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ENSAIO

Reijer Hooykaas e Peter Harrison*

Uma análise das precondições estabelecidas pela Reforma Protestante para a ascensão das ciências modernas

Jadson Ramos de Queiroz|

12/10/2023

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Jadson Ramos de Queiroz

Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), membro do Laboratório de História e Estudo das Religiões (LHiER-UFAL), do Núcleo Local ABC² Maceió e da Igreja Presbiteriana do Farol (IPF Maceió).

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Como citar

Queiroz, Jadson Ramos de. Reijer Hooykaas e Peter Harrison: uma análise das precondições estabelecidas pela Reforma Protestante para a ascensão das ciências modernas. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Introdução

O movimento religioso que ocorreu na Europa ocidental ao longo do século 16, comumente denominado de Reforma Protestante, teve influências em diversas áreas: políticas, econômicas e sociais. Com tamanha dimensão daquele movimento, é possível considerar que o que veio a se denominar ciência em nossos tempos, filosofia natural e astronomia para aquele período, também sofreu impactos. Nessa perspectiva, o presente texto analisa as contribuições dos historiadores Reijer Hooykaas e Peter Harrison e suas concepções sobre a relação entre a Reforma Protestante e a ciência com o objetivo de demonstrar as precondições fornecidas pelos reformadores que contribuíram para o desenvolvimento científico. A inseparabilidade entre o aspecto religioso dos demais na organização social é descrito por Pierre Chaunu como algo que “é quase tão indissociável da vida consciente como o ciclo do oxigênio e do azoto o é da vida terrestre”.¹ Tendo em vista que a Reforma Protestante foi um movimento que não ficou restrito ao campo religioso, mas que afetou as mais diversas áreas,² consideramos que o que veio a se denominar ciência em nossos tempos também sofreu impactos. Nesse escopo engloba-se a definição de precondições utilizada por Lawrence Stone.

Em seu estudo sobre as causas da revolução inglesa do século 17, o historiador inglês Lawrence Stone apontou que uma diversidade de fatores no longo prazo, que ocorriam desde o século anterior a partir da Reforma da igreja na Inglaterra, estabeleceram as precondições para a eclosão daquela revolução.³ Tomando por fundamento esse parâmetro estabelecido por Stone, adota-se no presente texto a hipótese de que a caracterização dos traços que marcaram a Reforma Protestante, no que se refere aos seus desdobramentos sobre a ciência, constituíram os elementos que configuraram as precondições para o desenvolvimento científico, ou suas variações terminológicas para o período moderno, ciências naturais ou filosofia natural. Essas precondições foram demonstradas principalmente na obra O desenvolvimento da ciência moderna, de Reijer Hooykaas, e The Bible, The Protestantism and Rise Natural Science, de Peter Harrison, mas não exclusivamente, conforme apontaremos. 

O nosso texto discorre em duas partes. Na primeira, à qual atribuímos o subtítulo definindo características, é apresentado o significado dos termos Reforma Protestante e ciência; na segunda parte, abordamos como elas se relacionavam, ou seu entrelaçamento histórico. São utilizados alguns autores: historiadores, teólogos e sociólogos. Porém, a análise é centrada nas perspectivas de Reijer Hooykaas e Peter Harrison.

Reforma Protestante e ciência: definindo características

Consideramos a Reforma Protestante como um movimento que ocorreu ao longo do século 16 e não está circunscrito a uma ou outra pessoa específica. Ainda que possamos distinguir alguns expoentes daquele processo histórico, como Martinho Lutero e João Calvino, a sua amplitude envolve uma série de agentes em ação e uma diversidade de áreas que foram impactadas:  “a orientação histórica e teológica nos estudos da Reforma enxerga a sociedade europeia em termos de lutas com questões religiosas que levaram a mudanças sociais e políticas”.⁴ A dimensão dela pode ser notada pelo estabelecimento do seu estudo quando se fala do conjunto de eventos que demarcam a passagem da Idade Média (séculos 5 a 15) para a Idade Moderna (séculos 15 a 18) ao ser arrolada junta ao Renascimento, à formação dos estados nacionais e às grandes navegações.

A definição do termo Reforma está relacionada aos eventos decorrentes da mobilização para alterações na Igreja Católica Apostólica Romana, em especial a partir de 1517 no território alemão com a proeminência do monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546). Em 31 de outubro daquele ano, Lutero teria fixado suas 95 teses na porta da catedral de Wittenberg, e em pouco tempo as propostas de reforma da igreja foram disseminadas na França, Suíça e Inglaterra. O termo Protestante passou a ser adotado quando “seis príncipes alemães e quatorze cidades protestaram” contra o resultado da Dieta de Spira, em 1529, que votou pelo fim da tolerância ao luteranismo nas terras germânicas.⁵ Ou seja, até essa data o movimento seria apenas de reforma; é só em seguida que se adota o termo protestante.

A partir de então, o movimento passa a ser denominado de Reforma Protestante, estando dividida em pelo menos quatro vertentes: luterana, calvinista, anglicana e anabatista. Alguns estudiosos têm descrito que a reforma teve suas características essenciais, como é pontuado pelo francês Jean Delumeau ao caracterizá-la com três elementos principais em sua doutrina: a justificação pela fé, o sacerdócio universal e a infalibilidade bíblica.⁶ De forma semelhante, Pierre Chaunu afirma que a “Reforma protestante é, portanto, a autoridade da Sagrada Escritura, a justificação pela fé e a consciência de uma renovação”.⁷

Com relação ao que atualmente denominamos ciência, esta teve seu modelo definido no século 19,⁸ tendo por parâmetro fundamental as leis universais da natureza e a possibilidade de experimentação laboratorial para que a atividade fosse considerada científica. Se apenas nesse período a pesquisa científica tomou essa forma, precisamos olhar para as atividades exercidas ao longo dos séculos 16 e 17 que possuem aspectos similares ao que passou a caracterizar como ciência no século 19. Segundo Peter Harrison, o termo ciência tem proximidade com os estudos sobre filosofia natural, já que “historiadores da ciência defendem há alguns anos que se trata do análogo antigo e medieval mais próximo da ciência atual”.⁹

Com relação ao que atualmente denominamos ciência, esta teve seu modelo definido no século 19, tendo por parâmetro fundamental as leis universais da natureza e a possibilidade de experimentação laboratorial para que a atividade fosse considerada científica.

É senso comum que a ciência sempre esteve em contraposição à religião, mas nos referimos a um período em que elas estavam estritamente relacionadas. A separação ocorreu, de fato, somente a partir do século 19:

o que ocorreu com os elementos morais e teológicos que outrora eram parte integral do estudo da natureza e da pessoa do naturalista? A resposta breve é que a segunda metade do século 19 testemunha a desintegração do contexto religioso e moral comum das iniciativas científicas e vê a reconstrução da ‘ciência’ em torno do princípio de um método comum e de uma identidade comum para seus praticantes.¹⁰

Assim, não é de estranhar que, ao abordarmos as relações históricas entre Reforma Protestante, que se refere ao campo religioso, e o desenvolvimento da ciência, elas sejam percebidas de forma muito próxima, correlacionando-se.

Reforma Protestante e ciência: entrelaçamento histórico

No parecer do teólogo Alister McGrath, “as novas estratégias hermenêuticas promovidas pelos primeiros protestantes, portanto, foram de importância central para estabelecer as condições que tornaram possível o surgimento da ciência moderna”.¹¹ Para esse autor, a mudança da interpretação bíblica em relação aos “dois livros”, ou seja, o livro da Palavra, a Bíblia, e o livro das obras, a natureza, passou a enfatizar uma leitura literal e histórica, diferentemente do que ocorria na Idade Média, que era marcada pela leitura alegórica da natureza. Assim, tornou-se uma traço fundamental para a motivação

do estudo científico da natureza [que] impregna o protestantismo desde então. Ela pode ser vista em muitos documentos confessionais da Igreja Reformada na Europa ocidental. Por exemplo, a Confissão Belga afirma que a natureza foi estabelecida “perante nossos olhos como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar os atributos invisíveis de Deus”. A trajetória do pensamento não podia ser mais clara: ler o “livro da natureza” aumenta nossa apreciação daquilo que é conhecido a respeito de Deus por meio do “livro da Escritura”.¹²

Análise similar com relação a esse aspecto foi realizada por Peter Harrison:

uma mudança de ênfase na esfera da hermenêutica bíblica viu a renovação do enfoque na leitura literal das narrativas de Gênesis, o que significou que a extravagante alegorização em que se baseava a ideia dos animais como representantes de estados da alma humana passou a cair em desfavor. Outra consequência foi que o domínio sobre a natureza passou a ser cada vez mais entendido de modo totalmente literal, como o exercício de controle sobre o mundo natural.¹³

Outros estudiosos apresentaram aspectos distintos nos estudos históricos da relação entre religião e ciência no que concerne ao protestantismo. O sociólogo Max Weber influenciou profundamente as pesquisas acadêmicas nas ciências sociais e humanas. Uma de suas obras mais conhecida é A ética protestante e o espírito do capitalismo, na qual ele descreve, de forma muito simplória, como as ideias ascéticas e de predestinação oriundas principalmente da reforma religiosa em Genebra, denominada de calvinista, teriam contribuído para o capitalismo na modernidade.¹⁴ Robert Merton, discípulo de Weber, partindo desse modelo, afirmou de forma análoga esses efeitos para o desenvolvimento científico em países que adotaram os preceitos da religião reformada. Ele apontou que a ética puritana expressava “as atitudes de valor básicas para o protestantismo ascético em geral, canalizou os interesses dos ingleses no século XVII de modo a constituir-se em um elemento importante na intensificação do cultivo da ciência”, ao passo que na doutrina da predestinação “encontrava-se uma ênfase no empirismo”.¹⁵

Foi nesse contexto, ou seja, de buscar uma explicação alternativa àquela efetuada por Robert Merton, que o historiador holandês Reijer Hooykaas apontou outras características para responder aos números que demonstravam haver mais cientistas em países protestantes que católicos e, portanto, continha naqueles países marcas efetuadas pela reforma religiosa do século 16 que desencadearam tal discrepância. Um fator contextual que Hooykaas descreve para justificar sua pesquisa, na década de 1960, era o consenso de que o desenvolvimento científico ocorreu separado da tradição bíblica, percepção esta que encontrou tanta aquiescência que até mesmo os teólogos compartilhavam dela. Todavia, ele defendeu que, no período do surgimento da “ciência moderna, a religião constituía um dos fatores mais poderosos da vida cultural. O que as pessoas pensavam de Deus influenciava sua concepção da natureza, o que, por sua vez, influenciava os seus processos de investigação da natureza, ou seja, a ciência”.¹⁶

Para Hooykaas, em contraposição a Merton, a relação entre o protestantismo e a ciência não estaria relacionada à predestinação e à ascese, mas, principalmente ao sacerdócio universal. 

É provável que a influência preponderante deva ter sido a ênfase tipicamente protestante no “sacerdócio geral de todos os crentes”. Isso implicava o direito e mesmo a obrigação, para os que tinham os talentos, de estudar as Escrituras sem depender da autoridade da tradição e da hierarquia, e mais, o direito e a obrigação de estudar o outro livro escrito por Deus, o livro da natureza, sem recorrer à autoridade dos fundadores da filosofia natural.¹⁷

no período do surgimento da “ciência moderna, a religião constituía um dos fatores mais poderosos da vida cultural. O que as pessoas pensavam de Deus influenciava sua concepção da natureza, o que, por sua vez, influenciava os seus processos de investigação da natureza, ou seja, a ciência”.

O estudo das Escrituras Sagradas não dependeria mais de recorrer à tradição ou a hierarquia da igreja; semelhantemente, o estudo da natureza não seria mais dependente de recorrer aos autores considerados autoridades em filosofia natural. Hooykaas utiliza o exemplo do huguenote Palassy, considerado sem instrução, que, quando perguntado sobre onde tinha aprendido as coisas que afirmava, disse que “obteve seu conhecimento através da anatomia da natureza, e não lendo livros”.¹⁸

Outros fatores são expressos em sua análise, tais como o efeito do retorno às fontes, que teria o impacto de legitimar uma investigação direta da natureza sem que fosse necessário acessar uma gama de estudos ou comentadores sobre isso, bem como o fato de o exercício da investigação científica ter a função de glorificar a Deus — este último sentido foi caracterizado por ele como “tema central da teologia da Reforma”. Assim, dois aspectos se sobressaem na avaliação de Hooykaas: o sacerdócio universal e a glória de Deus. Este último também foi apontado por Robert Merton quando afirmou que “Boyle sustenta que o estudo da natureza serve à maior glória de Deus e ao bem do homem. Esse motivo recorre constantemente”, acrescentando que, para alguns cientistas daquele período, “a ciência encontra seu fundamento, ao final e durante toda a existência, na glorificação de Deus”.¹⁹

Um dos historiadores contemporâneos que têm pensado a relação entre a Reforma Protestante e as ciências é Peter Harrison. O livro The Bible, The Protestantism and rise Natural Science, publicado em 1998, mas ainda sem tradução para o português, traz apontamentos similares àqueles realizados por Reijer Hooykaas. Todavia, a tese central de Harrison é que a mudança da interpretação bíblica do medievo, marcada pela interpretação alegórica dos textos, passou a ser predominantemente literal com os reformadores. Segundo esse autor, essa alteração seria o contributo dos teólogos reformados para a ascensão das ciências naturais durante as gerações seguintes, em especial aquelas do século 17.

Peter Harrison tem uma perspectiva semelhante àquela que apresentamos com Alister McGrath sobre a mudança da hermenêutica com os reformadores. Segundo Harrison, “a nova forma como [a Bíblia] foi lida pelos protestantes desempenhou um papel central na emergência da ciência natural no século XVII”.²⁰ Para ele, teria ocorrido uma influência indireta do protestantismo no desenvolvimento da ciência na modernidade por meio de um agente específico que ele qualifica como “catalisador na emergência da ciência”:²¹ a mentalidade literalista. Essa característica seria um elemento central da Reforma que, segundo Harrison, tem encontrado pouca atenção nos estudos sobre a dinâmica que envolve o protestantismo e a ciência. 

Os principais reformadores Martinho Lutero, João Calvino, Filipe Melâncton e Martin Bucer compartilhavam uma clara preferência pelo sentido literal ou natural das escrituras, combinado com uma suspeita de alegoria. Lutero argumentou que as escrituras devem ser entendidas “em sua forma mais simples significado tanto quanto possível”. O sentido literal era “o mais alto, melhor, mais forte, em suma, toda a subsistência da natureza e fundamento da Sagrada Escritura”.²²

a tese central de Harrison é que a mudança da interpretação bíblica do medievo, marcada pela interpretação alegórica dos textos, passou a ser predominantemente literal com os reformadores. Segundo esse autor, essa alteração seria o contributo dos teólogos reformados para a ascensão das ciências naturais durante as gerações seguintes, em especial aquelas do século 17.

Se durante o período medieval predominava a interpretação alegórica, que atribuía um caráter simbólico à natureza, a partir dos reformadores, com sua ênfase na interpretação literal da Bíblia, o estudo da natureza passou a ser observado em seu sentido literal. Com essa perda do sentido simbólico, passou-se a investigar a utilidade prática que a natureza poderia desempenhar: “como os animais, as plantas, as pedras e os corpos celestes deixaram de funcionar como sinais, a ordem do mundo natural só poderia ser mantida se fosse possível encontrar propósitos alternativos para eles”.²³ Nessa perspectiva, atribuiu-se às plantas e aos animais venenosos a função de limpeza da terra, porque eles absorviam suas impurezas. As moscas purificavam o ar, posto que estavam sempre próximas de coisas pútridas.

A hermenêutica literalista também estava concentrada na ideia de restauração da condição humana antes do pecado no Jardim do Éden: “De igual importância foi o surgimento da convicção de que os propósitos de Deus na criação só poderiam ser realizados quando as funções das coisas originalmente projetadas para uso humano fossem descobertas”.²⁴ Observando a interpretação da ordem divina para subjugar e dominar a criação que foi atribuída ao homem, Peter Harrison se opõe à relação que é feita na atualidade sobre a legitimação judaico-cristã para exploração do meio ambiente. Segundo Harrison, o ordenamento divino para cuidar e dominar estaria relacionado com o propósito de fornecer o bem-estar ao ser humano, dotando, assim, a relação de aspectos espirituais e materiais, mas, quando o primeiro aspecto foi suprimido de significado, restou apenas a exploração material. Conclui, então, o autor que

O mundo natural deveria ser conhecido e literalmente dominado, e, no processo, seria restaurado em alguma medida à sua perfeição paradisíaca. O literalismo contribui, portanto, para o surgimento da ciência natural de duas maneiras distintas: primeiro, ao esvaziar a natureza de seu significado simbólico; segundo, restringindo os possíveis significados das narrativas bíblicas da criação e da Queda, na medida em que elas não podem ser lidas de outra forma a não ser como uma imposição à raça humana da necessidade de restabelecer seu domínio sobre a natureza.²⁵

Era entendimento dos estudiosos da natureza que, à medida que fossem conhecendo o funcionamento dela, melhor a compreenderiam e poderiam se aproximar de como as coisas funcionavam no Éden. Cultivar a terra, por exemplo, tinha o objetivo de restaurar suas características originais, fertilidade e utilidade: “o tema do domínio restaurado sobre a natureza virou lugar-comum nas primeiras justificações modernas da nova ciência”.²⁶

Se a Queda interrompeu essa relação, em Babel se estabeleceu outra barreira: a confusão das línguas. Na busca para encontrar a forma de comunicação pré-diluviana, iniciou-se uma série de estudos dos idiomas em várias partes do mundo.

Para o século XVII, a Queda não era um conto alegórico nem uma fábula moral. Era um evento histórico que ocorreu em, ou por volta de, 4004 a.c. Suas consequências diziam respeito não apenas à condição espiritual e às perspectivas dos seres humanos em um mundo futuro, mas também às condições materiais do mundo atual. Embora a religião cristã tenha fornecido os meios pelos quais as perdas espirituais da Queda poderiam ser superadas, a redenção completa envolvia um compromisso com o mundo material, que também havia sofrido junto com seus habitantes humanos como consequência da Queda e do Dilúvio.²⁷

Ao apontar essa influência indireta, parece haver algum eco das conclusões de Robert Merton nas colocações de Peter Harrison. Aquele sociólogo afirmou que “a ética religiosa que se origina desses líderes [Lutero e Calvino] convidava à investigação da ciência natural”, ainda que eles fossem hostis quanto a isso, segundo Merton.²⁸ 

Sobre a postura dos reformadores ocorre divergência entre os estudiosos, como apontamos anteriormente. Para Merton, os reformadores foram críticos da ciência: “não é surpreendente ou inconsistente que Lutero em particular, e Melâncton menos intensamente, tenham execrado a cosmologia de Copérnico, e que Calvino tenha reprovado a aceitação de muitas descobertas científicas de sua época”.²⁹ Concepção diametralmente oposta foi colocada por Reijer Hooykaas ao atribuir uma ação positiva de Calvino, pois o reformador seria

de opinião que aqueles que negligenciavam o estudo da natureza eram tão culpados como aqueles que, ao investigarem as obras de Deus, se esqueciam do Criador. Reprovava veementemente aqueles “fantásticos” antagonistas da ciência que diziam que o estudo apenas torna os homens soberbos e que não reconheciam que isto levava ao “conhecimento de Deus e à orientação da vida”. Reiteradas vezes afirmou que a pesquisa científica é algo que penetra muito mais profundamente nas maravilhas da natureza do que a mera contemplação.³⁰

A tendência dos protestantes de abertura à novidade teria sido um ponto que colaborava para que, nos países reformados, ocorresse uma menor resistência às descobertas científicas. Essa postura, segundo Hooykaas, pode ser notada na associação que os católicos teriam feito ao modelo cosmológico de Nicolau Copérnico, o heliocentrismo, ao terem-no caracterizado como “calvinista-copernicano”.³¹ Martinho Lutero, em suas conversas à mesa, alguém anotou que ele teria afirmado sua admiração pela astronomia e pela matemática.³²

Alister McGrath compartilha da percepção de Hooykaas ao afirmar que João Calvino teria elogiado os cientistas naturais, “pois podem vivenciar e apreciar a beleza e a sabedoria divinas por meio daquilo que Deus criou e formou”.³³ Harrison também tem proximidade com McGrath em suas conclusões ao descrever que “a abordagem moderna dos textos, impulsionada pela agenda dos reformadores e disseminada pelas práticas religiosas protestantes, criou as condições que possibilitaram o surgimento da ciência moderna”.³⁴

Chegamos assim no conjunto de características que apontam como o protestantismo abordou o aspecto científico. Visitamos alguns autores que abordaram o tema, entretanto, centramos nas análises do historiador holandês Reijer Hooykaas e do historiador australiano Peter Harrison, ambos reconhecidamente estudiosos da história da ciência.

Conclusão

Um dos casos mais expressivos que demonstra o amálgama entre os aspectos que buscamos enfatizar é o exemplo do astrônomo luterano Johannes Kepler. Ele desejava ser um clérigo, mas, não obtendo aprovação nessa área, passou a se dedicar aos estudos da natureza; nesse ponto, temos a abordagem literal e o exercício do sacerdócio universal, pois, segundo ele, os astrônomos seriam sacerdotes de Deus, e suas atividades eram vislumbradas como uma forma de glorificar a Deus. O próprio Kepler se designava o Lutero da astronomia.

Como a Reforma Protestante impactou os mais diversos campos da sociedade, pois a repercussão da mudança religiosa na Europa ocidental a partir do século 16 tem dimensões indissociáveis dos aspectos políticos, econômicos e culturais, é também possível afirmar que a ciência no período moderno passou pela sua influência. Estando isso demonstrado, analisamos quais traços daquele movimento tiveram maior expressão na atividade humana que poderiam ter efeitos nas ciências.

É praticamente um consenso que a doutrina do sacerdócio universal foi uma característica intrínseca da Reforma Protestante, e Jean Delumeau e Pierre Chaunu, em termos de uma avaliação geral daquele movimento demonstram isso, bem como muitos outros que poderíamos arrolar em nosso texto. Aquela doutrina também teve evidência em análises sobre a ciência, e Robert Merton e Peter Harrison reconheceram seu impacto, mas foi Reijer Hooykaas que a colocou como traço preponderante no protestantismo e nas ciências naturais.

O que buscamos apresentar neste texto é a demonstração dos historiadores Reijer Hooykaas e Peter Harrison sobre a relação entre Reforma Protestante e as ciências modernas ao expressar que esse movimento do cristianismo europeu do século 16 viabilizou a justificativa religiosa para legitimar o estudo da natureza. Ao concatenar as contribuições dos autores supracitados, demonstra-se que suas propostas são complementares, tanto o sacerdócio universal quanto a leitura literal, assim como a glória de Deus no estudo da natureza, forneceram os traços necessários para compor as precondições para o desenvolvimento ou ascensão das ciências no século 17. Em Reijer Hooykaas se tem a preponderância do sacerdócio universal e a centralidade teológica da Reforma na glorificação a Deus; em Peter Harrison se encontra a interpretação literal das Escrituras. Atribuímos uma proximidade das precondições com o que Alister McGrath e Peter Harrison caracterizam como as condições para estudo científico na modernidade.

Ao concatenar as contribuições dos autores supracitados, demonstra-se que suas propostas são complementares, tanto o sacerdócio universal quanto a leitura literal, assim como a glória de Deus no estudo da natureza, forneceram os traços necessários para compor as precondições para o desenvolvimento ou ascensão das ciências no século 17.

Dessa forma, ainda que os reformadores não tenham se dedicado à ciência (filosofia natural) e que, em alguns pontos, eles tenham tido posicionamentos contrários, de maneira geral, não se constata uma postura contrária às ciências. 

 

 

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Referências

Chaunu, Pierre. O tempo das Reformas: história religiosa e sistema de civilização (1250-1550), Vol. 1 A crise da cristandade. Lisboa: Edições 70, 2002.

____________. O tempo das Reformas: história religiosa e sistema de civilização (1250-1550), Vol. 2 A Reforma Protestante. Lisboa: Edições 70, 2002. 

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Harrison, Peter. Os territórios da ciência e da religião. Viçosa, MG: Ultimato, 2017.

____________. “Ciência” e “Religião”: construindo limites. Revista de Estudos da Religião, março 2007, pp. 1-33.

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Hooykaas, Reijer. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.

Lindberg, Carter. História da Reforma. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.

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Merton, Robert K. Ensaios de sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013.

Stone, Lawrence. Causas da Revolução Inglesa (1529-1642). Bauru, SP: EDUSC, 2000.

 

* Ensaio com menção honrosa na 2ª Chamada do Radar ABC². 

1. Chaunu, 2002, p. 14.

2. Lindberg, 2017.

3. Stone, 2000.

4. Lindberg, 2017, p. 43.

5. Mcgrath, 2014, p. 23.

6. Delumeau, 1989.

7. Chaunu, 2002, p. 158.

8. Harrison, 2007, p. 11.

9. Harrison, 2017, p. 34.

10. Ibidem, p. 171.

11. Mcgrath, 2014, p. 297.

12. Mcgrath, 2014, p. 299.

13. Harrison, 2017, p. 149.

14. Weber, 2004.

15. Merton, 2013, p. 15, 16, 23.

16. Hooykaas, 1988, p. 16.

17. Ibidem, p. 142.

18. Ibidem.      

19. Merton, 2013, p. 18, 25.

20. Harrison, 1998, p. 4.

21. Ibidem, p. 8.

22. Ibidem, p. 108.

23. Ibidem, p. 162.

24. Ibidem, p. 168.

25. Ibidem, p. 208.

26. Harrison, 2017, p. 150.

27. Harrison, 1998, p. 226.

28. Merton, 2013, p. 24.

29. Ibidem.

30. Hooykaas, 1988, p. 137-138.

31. Ibidem, p. 171.

32. Lutero, 2017.

33. Mcgrath, 2014, p. 298.

34. Harrison, 1998, p. 266.

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