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Deus é uma hipótese científica?*

Bruno Ribeiro Nascimento |

25/08/2023

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Bruno Ribeiro Nascimento

Doutor em Filosofia (UFRN), Mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas (UFPB), Graduado em Filosofia (UCB) Letras-Português (UFPB) e em Comunicação Social (UFPB). Professor de Filosofia da Religião da Faculdade Internacional Cidade Viva e membro da Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR).

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Como citar

Nascimento, Bruno Ribeiro. Deus é uma hipótese científica? Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Conta o folclore filosófico que, após a leitura completa da obra Mécanique céleste, escrita por Pierre-Simon Laplace, Napoleão Bonaparte questionou o astrônomo sobre a notável ausência de qualquer menção ao nome de Deus na descrição do universo. A resposta apócrifa de Laplace se tornou lendária: “Eu não precisei recorrer a essa hipótese, monsieur!”

A noção de que a crença em Deus é um tipo de “hipótese científica” faz parte do debate que envolve as interações entre ciência e religião, com Deus entendido como a divindade do monoteísmo clássico, tal qual os teístas afirmam venerar e amar. A questão é objeto de disputa não apenas dentro da academia, mas também entre o público mais amplo consumidor de divulgação científica. Richard Dawkins sugere que a crença de que “existe uma inteligência sobre-humana e sobrenatural, que projetou e criou deliberadamente o universo e tudo que há nele, incluindo nós¹ é uma hipótese passível de ser testada pelos métodos da ciência. Nos termos dele, “a presença ou ausência de uma superinteligência criativa é indiscutivelmente uma dúvida científica”.² Dawkins ainda argumenta que as principais crenças cristãs, como a encarnação e a ressurreição, devem ser avaliadas como qualquer outra hipótese científica:

Jesus teve um pai humano, ou sua mãe era virgem na época de seu nascimento? Existam ou não provas suficientes para decidir, trata-se de uma pergunta estritamente científica com uma resposta definida por princípio: sim ou não. Jesus ressuscitou Lázaro de entre os mortos? Voltou ele mesmo à vida, três dias depois de ser crucificado? Há uma resposta para cada pergunta dessas, possamos ou não descobri-la na prática, e é uma resposta estritamente científica. Os métodos que deveríamos usar para solucionar a questão, na improvável hipótese de provas relevantes um dia se tornarem disponíveis, seriam métodos pura e inteiramente científicos.³

A ideia aqui é que a crença em Deus e nas “grandiosas coisas do evangelho” (para usar um termo de Jonathan Edwards em referências às crenças cristãs) seriam um tipo de hipótese científica, introduzida para explicar um conjunto de dados, sendo intelectualmente aceitável à medida que consegue fornecer tais evidências. Como crítico da crença teísta, não é surpreendente que Dawkins conclua que a crença em Deus deixa muito a desejar em termos científicos, sendo, por isso, carente de algum tipo de mérito intelectual. Alvin Plantinga, por sua vez, discorda de Dawkins. A crença em Deus não é, ou não deve ser primariamente, uma questão de hipótese científica; nem sua racionalidade ou justificação intelectual deve estar estritamente relacionada ao modo como as coisas funcionam nas ciências. Nas palavras de Plantinga: 

O ponto crucial aqui é que [...] a crença teísta não costuma ser aceita como uma explicação de algo. Não se trata de o teísta formar uma ideia de como o mundo (incluindo a existência da própria crença teísta) aparentemente se organiza para depois propor a existência de Deus como a melhor explicação dos fenômenos assim constatados. Se ele pensasse assim, o fato de a crença teísta ser explicativamente inerte (se é que o é) com respeito a dado segmento de dados poderia ser pertinente. Mas não é assim que ele pensa [...]. O crente em Deus acredita normalmente de maneira básica, não com base evidencial em outras proposições, e não propõe a crença em Deus como uma explicação seja do que for.⁴

A ideia aqui é que a crença em Deus e nas “grandiosas coisas do evangelho” [...] seriam um tipo de hipótese científica, introduzida para explicar um conjunto de dados, sendo intelectualmente aceitável à medida que consegue fornecer tais evidências.

Plantinga sugere que carregamos uma miríade de crenças, como “1+1 = 2”, “vejo um computador diante de mim”, “o mundo existe há mais de cinco minutos”, “possuo duas mãos” ou “minhas faculdades cognitivas são confiáveis”. No entanto, tais crenças não são adotadas por nós mediante inferências ou como um tipo de hipótese explicativa para um conjunto de fenômenos, como se só pudéssemos acolhê-las racionalmente com base em evidências. Ninguém sugere verdadeiramente que a crença de que minha esposa tem uma mente é baseada em algum tipo de argumento científico (por exemplo, dado que ela exibe a fisionomia de irritação diante de uma situação de desconforto, infiro que ela tem uma mente). Na verdade, a crença de que minha esposa possui uma mente é uma crença natural, imediata e não inferencial, que se forma em mim por meio do funcionamento comum das minhas faculdades cognitivas, ou, de forma mais técnica, como o que Plantinga denomina de crença básica, isto é, crenças que não se fundamentam em outras crenças. Nem todas as crenças que sustentamos são postuladas como uma espécie de hipótese científica, e isso também seria verdade para a crença em Deus ou nas grandiosas coisas do evangelho.

A pergunta que me proponho a responder é a seguinte: seria o teísmo um tipo de hipótese científica, tal como nossas crenças na existência de prótons, nêutrons e elétrons? Ou estaria o teísmo mais alinhado às nossas crenças naturais e imediatas, como a de que outras pessoas têm uma mente ou de que o mundo tem mais de cinco minutos? Para responder essa questão, precisamos visitar o conceito de hipótese.

O que é uma hipótese?

Seria a crença em Deus um tipo de hipótese científica? Bem, como diria o professor C. E. M. Joad, tudo depende do que se quer dizer por hipótese científica.⁵ É preciso, inicialmente, fazer uma distinção importante: primeiro, deve-se esclarecer se a crença em Deus é algum tipo de hipótese; em seguida, se seria uma hipótese científica, pois uma crença pode funcionar como um tipo de hipótese, mas não ser tida como uma hipótese científica. Mas o que vem a ser uma hipótese?

No Dicionário Oxford de Filosofia, Blackburn define o termo hipótese como uma “proposição apresentada como uma suposição, e não como uma afirmação. Pode-se apresentar uma hipótese para discussão ou para que seja testada, possivelmente como um prelúdio à sua aceitação ou rejeição.⁶ A ideia aqui é que uma hipótese desempenha o papel de conjectura que visa explicar um fenômeno ou evento; nesse caso, deve-se avaliar seu mérito à luz da sua capacidade de explanar os dados disponíveis. Stenmark acrescenta outro elemento importante: “todas as hipóteses têm em comum a característica de falarem sobre coisas as quais transcendem a evidência. Elas dizem mais do que podemos ver por nós mesmos”.⁷ Para Stenmark, a hipótese diz algo sobre a realidade que se encontra além do que é diretamente experienciado ou observado e, por isso, parece necessitar ser amparada por algum tipo de justificação evidencial.

Seria a crença em Deus um tipo de hipótese científica? Bem, como diria o professor C. E. M. Joad, tudo depende do que se quer dizer por hipótese científica.

As hipóteses podem diferir de diversas maneiras. Elas podem ser verdadeiras ou falsas, estabelecidas ou especulativas, explícitas ou implícitas, credíveis ou inverossímeis. No entanto, Stenmark lembra que, como as hipóteses dizem algo sobre a realidade que está além do que podemos observar diretamente, então uma hipótese não precisa ser necessariamente científica; ou seja, ela pode ser filosófica, política, jurídica ou do dia a dia, pois todas essas áreas formam hipóteses de diferentes tipos, ainda que não as consideremos como tais.⁸ O leitor chega em casa e vê a parede da sala rabiscada; o leitor também tem uma filha pequena geniosa; você não precisa de um laboratório científico para inferir o que aconteceu. O que é importante ressaltar aqui é que você vai além da evidência direta nessa situação cotidiana e forma a suposição de que as coisas se passaram de determinado modo. O fato de a crença não ter sido aprovada por uma avaliação por pares não a exclui de ser uma hipótese.

Há outro ponto importante que vale a pena destacar. Como vimos, Plantinga sugere que várias de nossas crenças são formadas de modo não inferencial. Na verdade, é possível afirmar que grande parte de nossas crenças são desse tipo; grande parte de nossas crenças são formadas em nós, de modo básico, sem argumentos.⁹ As crenças mais fundamentadas de que dispomos, como a crença de que existe um mundo externo fora de nós, ou um passado, ou outras mentes, ou que nossas faculdades cognitivas são confiáveis, são crenças desse tipo. Só em uma área muito diminuta da nossa estrutura noética é que temos crenças formadas a partir de argumentos. 

Mas, por serem formadas de modo não inferencial, isso não significa que elas são infundadas. Plantinga faz uma sutil distinção entre “fundamento” e “evidência”.¹⁰ Suponha que o leitor me pergunte o que comi no almoço; penso por um momento e lembro-me de que comi feijão verde com arroz. Não  raciocino por meio de algum tipo de indício (por exemplo, restos de feijão nos meus dentes?). Em vez disso, você me pergunta, e a resposta simplesmente me vem à cabeça. A razão para aceitar a crença de que comi feijão verde com arroz consiste na experiência de relembrar. Nesse caso, dadas as condições experienciais apropriadas, crenças como “o mundo existe há mais de cinco minutos” ou “eu vejo um computador” são fundamentadas em experiências desse tipo, e o fato de elas não serem inferidas não é um demérito intelectual para a crença.

Suponha que alguém tente formular um argumento em favor da crença de que o mundo tem mais de cinco minutos ou de que não vivemos numa Matrix. Esse argumento faria alguma diferença no status de sua crença? Provavelmente não. Para Plantinga, acreditar em nossas crenças mais comuns com base em inferências seria tão problemático “como crer na existência do seu cônjuge com base no argumento analógico para outras mentes – extravagante na melhor das hipóteses e de modo algum provavelmente encantador à pessoa em causa.¹¹

Assim, estamos a par do que é uma hipótese e que elas podem ser de tipos distintos; vimos também que nem todas as crenças são hipóteses e que isso não é nenhum demérito para o status intelectual da crença. Nosso próximo passo é perguntar que tipo de crença seria o teísmo.

Que tipo de crença seria o teísmo?

Com o que se assemelha a crença em Deus? Essa questão é importante, pois, ao investigar se o teísmo pode ser considerado uma hipótese científica, é interessante analisar quais tipos de crenças são análogas à crença em Deus e como ela é geralmente concebida. Se a crença em Deus for similar às nossas crenças na existência de prótons, nêutrons e elétrons, então seria mais apropriado tratar o teísmo como uma hipótese de algum tipo. Mas se a crença em Deus for similar às nossas crenças comuns, como a crença em outras mentes, então poderia ser um equívoco tratar o teísmo da mesma forma que tratamos outras hipóteses.

A resposta a essa pergunta é importante não apenas para esclarecer melhor a natureza de nossas crenças religiosas, mas também para avaliar seu status intelectual. Pois há aqui uma questão de “justiça epistêmica” que requer nossa atenção: os padrões de exigência intelectual para uma crença variam de acordo com o domínio em que estamos avaliando. Por exemplo, não podemos empregar o mesmo tipo de rigor e de certeza epistêmica empregados na matemática para avaliar nossas crenças morais; é preciso ser sensível às diferentes características dessas áreas distintas do conhecimento a fim de analisá-las adequadamente. Além disso, tais padrões de aceitabilidade intelectual não devem ser mais rigorosos em um domínio do que em outro, caso as duas áreas estejam em par de igualdade. No nosso caso específico, se a crença em Deus e nas grandiosas coisas do evangelho for mais semelhante à crença em outras mentes do que à crença no Big Bang, então é um erro supor que seu mérito intelectual depende de ser uma hipótese passível de ser avaliada, como acontece nas ciências. Na literatura filosófica, Quinn denomina de argumento de paridade a noção de que “não se deve exigir nem mais, nem menos, justificativa para crenças em uma área de investigação do que em outra.¹² 

os padrões de exigência intelectual para uma crença variam de acordo com o domínio em que estamos avaliando.

Nesta seção, vou sugerir que o melhor análogo para a crença em Deus não parece ser nossas crenças científicas, mas nossas crenças comuns. Argumentos desse tipo não são inéditos dentro da filosofia da religião. Alston argumentou que, em situações em que os teístas parecem ter tido uma experiência direta de Deus, sentindo um forte senso da presença divina, o teísmo se assemelha às crenças perceptuais, como a crença de que “eu vejo um computador na minha frente”.¹³ Plantinga sugeriu que a crença em Deus é semelhante à crença em outras mentes, isto é, a crença de que outras pessoas são capazes de pensar ou sentir algo como nós, de modo que acreditamos que as pessoas humanas com que interagimos em nosso cotidiano têm vidas mentais interiores muito parecidas com a nossa.¹⁴ Stenmark afirma que a crença em Deus parece mais com o resultado de um encontro amoroso com uma realidade pessoal divina, ou seja, é como a crença que mantemos em outras pessoas e por meio da qual desfrutamos de uma teia de relações de confiança e amor.¹⁵ 

Todas essas analogias são interessantíssimas e objeto de forte disputa.¹⁶ Contudo, gostaria de fazer um acréscimo a esse debate e desenvolver, neste ensaio, uma sugestão de Peter van Inwagen:¹⁷ a crença em Deus é semelhante a uma crença filosófica que todos nós temos, mas que não é resultado de uma hipótese científica ou de uma argumentação de qualquer tipo; na verdade, ela seria semelhante à crença no livre-arbítrio.

A definição de livre-arbítrio, geralmente, envolve dois pontos: um relativo à liberdade de ação e outro relativo à fonte da ação.¹⁸ No primeiro caso, o agente possui livre-arbítrio com respeito a uma dada ação se ele é capaz de agir contrariamente ao que se está fazendo. Abro meu computador e decido escrever este ensaio para a Unus Mundus; sou realmente livre apenas se pudesse me abster de escrever este ensaio, ou seja, se pudesse agir de outra maneira, fazendo o contrário do que estou fazendo. No segundo caso, o agente possui livre-arbítrio quando ele é a fonte última da ação, de modo que não é causalmente determinado por fatores que lhe são exteriores ou anteriores. A razão pela qual eu abri meu computador e escrevi este ensaio é que tomei uma decisão consciente de fazer isso; nenhuma lei causal ou condições anteriores determinaram que eu escreveria isso.

Parece que tenho livre-arbítrio (talvez eu até diga que sei que tenho livre-arbítrio). Essa crença não é resultado de algum tipo de hipótese científica; não é fruto de um argumento filosófico dedutivo bem elaborado, na qual a conclusão se segue inescapavelmente das premissas; também não é fruto de um tipo de argumento indutivo na qual levei em conta a totalidade das considerações intelectuais relevantes a fim de examinar se minhas ações são livres ou determinadas. O que acontece é que sempre me pareceu que tenho algum tipo de controle ou poder sobre minhas ações e que pelo menos algumas delas são dirigidas por mim.

Diferentemente de outras crenças científicas que possuo (por exemplo, a crença de que o universo possui astronômicos 13,787 ± 0,020 bilhões de anos), o livre-arbítrio é o tipo de coisa em que acredito desde tempos imemoriais, aparecendo desde cedo na minha vida cognitiva. Ironicamente, eu não lembro de ter escolhido, depois de analisar um pacote de evidências, acreditar que tenho livre-arbítrio, pois até entrar nas águas da filosofia eu não tinha consciência explícita desse tipo de habilidade. O que acontece é que eu, implicitamente, sempre acreditei nisso. Até onde alcança minha memória, sempre me pareceu que consigo agir para realizar determinada ação, de modo que tenho algum tipo de controle sobre minhas escolhas; tenho consciência de ter algum tipo de poder limitado sobre os movimentos do meu corpo (consigo digitar essa frase, mas não abrir escala) ou sobre os movimentos da minha mente (consigo me imaginar ganhando a premiação da Unus Mundus). 

Antes de beber das águas de Aristóteles, São Tomás de Aquino, Thomas Reid, Peter van Inwagen e Robert Kane, sempre me pareceu que sou livre para querer ou me abster de querer ler os argumentos em favor do livre-arbítrio. Mas minha crença não se baseia nesses argumentos. De fato, não existe até o momento razões conclusivas para a crença de que tenho livre-arbítrio. Ainda assim, esse sempre me pareceu ser um tipo de poder ativo que tenho sobre minha vontade. A convicção dessa crença me parece tão enraizada que ela parece estar implícita em todas as minhas deliberações. Sempre que delibero, estou convencido de que a ação que estou pensando em realizar está em meu poder. E uma vez que termino de deliberar, minhas resoluções e meus propósitos implicam a convicção de que tenho poder para executar o que resolvi fazer.

Antes de beber das águas de Aristóteles, São Tomás de Aquino, Thomas Reid, Peter van Inwagen e Robert Kane, sempre me pareceu que sou livre para querer ou me abster de querer ler os argumentos em favor do livre-arbítrio. Mas minha crença não se baseia nesses argumentos.

Na verdade, muitas das operações mentais comuns que realizo implicam que tenho esse poder e que ele é compartilhado pelo restante da humanidade. Ações como prometer, aconselhar, planejar, escolher, visar, parecem pressupor que eu sou livre com respeito a uma dada ação. Parece-me também que a qualidade moral das minhas ações, o tipo de responsabilidade que atribuo a elas, depende desse tipo de liberdade, pois, se sou determinado a realizar uma dada ação, se me é impossível agir de outra forma, de modo que não estava em meu poder agir de outro modo, como posso ser passível de louvor ou culpa, mérito ou demérito, sabedoria ou tolice, virtude ou vício? Pois parece absurdo responsabilizar alguém pelo que ela não poderia deixar de escolher. 

 A crença em Deus parece ser uma crença desse tipo. Grande parte dos teístas, suponho, não acreditam em Deus depois de uma análise cuidadosa dos argumentos ontológicos, cosmológicos e teleológicos. Grande parte dos teístas acreditam que Deus existe muito antes de lerem Platão, São Tomás de Aquino, William Lane Craig e Richard Swinburne. Na verdade, eles acreditam que existe tal pessoa todo-poderosa, completamente boa e que criou o mundo mesmo na ausência de razões conclusivas ou de argumentos publicamente disponíveis. E parece que as coisas são assim desde tempos imemoriais. Nisso, minha crença em Deus é como minha crença no livre-arbítrio. 

Por esse padrão, a crença em Deus não parece se assemelhar às minhas crenças científicas, pois, diferentemente das minhas crenças científicas, a crença em Deus parece surgir em mim naturalmente, assim como a crença no livre-arbítrio, decorrente da predisposição natural de minhas faculdades cognitivas.¹⁹ Assim como a crença no livre-arbítrio, a crença de que há tal pessoa como Deus parece se encontrar profundamente embutida em minha cognição, fazendo parte da maneira ordinária como nós, humanos, pensamos o mundo. Ao mesmo tempo, nossas crenças científicas não são deste tipo. A crença no Big Bang ou na teoria da evolução não são frutos de um suposto mecanismo de formação de crenças científicas; tampouco nossas crenças sobre física quântica são resultado da nossa operação cognitiva ordinária.

Além disso, diferentemente das crenças científicas (como a crença na idade do universo), não é exigida nenhuma competência cognitiva especializada ou algum treinamento cognitivo especial para que os agentes possam “ver” que a crença em Deus ou no livre-arbítrio é avalizada; ela parece, tipicamente e para muitos teístas, ser resultado de um conhecimento direto, de modo que estão em paridade epistêmica. Assim como nos parece que temos uma experiência direta da existência do livre-arbítrio, muitos teístas afirmam possuir experiências da presença direta de Deus; alguns experimentam a presença dele em momentos de oração, outros sentem seu coração arder quando as Escrituras são lidas, e outros, ainda, parecem ver claramente a mão do Senhor dirigindo e guiando suas vidas. Essas experiências mais profundas da presença de Deus são de tal natureza que é difícil duvidar delas. Nesse caso, seria irrazoável pedir a essas pessoas que vejam sua crença em Deus ou nas grandiosas coisas do evangelho como uma hipótese. Ao mesmo tempo, minhas crenças científicas, como a crença no Big Bang ou na Relatividade Geral, não são desse tipo; elas não são o tipo de coisas que posso “perceber” diretamente ao sentir sua presença (ninguém, suponho, sente o universo se expandindo), pois são fruto de um conhecimento indireto, ou seja, baseadas em inferências que faço a partir de outras crenças que são conhecidas como verdadeiras.

Por fim, assim como a crença no livre-arbítrio, a crença em Deus é desafiada por muitas pessoas na academia – pessoas de grande seriedade e inteligência. Há, inclusive, algumas que alegam que determinadas descobertas científicas fragilizam tais crenças, apesar de, quando corretamente interpretadas, isso se mostrar um significativo engano.²⁰ De qualquer modo, há uma panóplia de argumentos e contra-argumentos sobre a cogência da crença em Deus, assim como sobre a cogência da crença no livre-arbítrio, principalmente dentro dos departamentos de filosofia. Eu mesmo estudei algumas dessas razões e penso que elas são cativantes e fortes; poderia argumentar interminavelmente com meus pares sobre isso. Ainda assim, minha crença no teísmo e no livre-arbítrio não se baseia (ou, pelo menos, não se baseia principalmente) nos argumentos que posso apresentar. Elas parecem ter uma base muito mais profunda do que aquelas fundamentadas em razões enunciáveis ou em argumentos publicamente disponíveis nos departamentos de filosofia.

Argumentei que a crença em Deus está em paridade com a crença no livre-arbítrio. Elas parecem pertencer a outra classe de crenças que são diferentes das minhas crenças científicas. Contudo, o fato de a crença em Deus não ser primariamente uma hipótese, ou uma hipótese científica, não significa que ela não possa ser tratada como um tipo de hipótese in totum, pois o fato de não necessitarmos tratar a crença em Deus ou nas grandiosas coisas do evangelho primariamente como hipóteses não significa que elas não possam, em determinados contextos, ser consideradas como hipóteses. Como explica Stenmark: “nós não deveríamos confundir as questões, ‘Devem ou Deveriam os praticantes religiosos verem suas crenças em Deus como uma hipótese?’ e ‘Pode um praticante religioso (ou outro alguém) ver a crença em Deus como uma hipótese?’.²¹

Mesmo que a crença em Deus e a crença no Big Bang sejam frutos de práticas ou operações cognitivas distintas, ou que o melhor análogo para a crença em Deus não sejam nossas crenças científicas, isso não significa que não possa haver qualquer tipo de convergência entre essas duas áreas do pensamento humano ou que elas devam ser tratadas como independentes. Pois, como sugere Stenmark, pessoas racionais deveriam levar em consideração tudo o que puderem aprender em uma área da vida a partir de outra área que pode melhorar sua performance cognitiva.²² O diálogo entre diferentes áreas do conhecimento pode ser epistemicamente fecundo, e os teístas poderiam aprender com outras áreas sobre como melhorar a qualidade epistêmica de suas crenças.

Que tipo de hipótese seria o teísmo?

Se o teísmo pudesse também ser tratado como uma hipótese, que tipo de hipótese seria? Talvez ninguém tenha fornecido uma resposta tão boa a essa pergunta quanto Richard Swinburne. Para ele, o teísmo compartilha um importante paralelo com as grandes teorias e predições da ciência moderna. Apesar de ambas não serem verificadas diretamente por meio da observação ou da experimentação, elas podem ganhar algum suporte probabilístico por meio da análise das evidências.²³ Nesse caso, não haveria razões para a crença em Deus não poder ser considerada passível de avaliação epistêmica do mesmo modo que outras teorias científicas; o teísmo pode ser considerado uma hipótese que consegue cumprir padrões similares de racionalidade das hipóteses científicas.

Contudo, apesar de cumprir padrões similares de racionalidade, o teísmo não seria uma hipótese científica, mas uma hipótese metafísica, pois, nesse caso, seria um tipo de suposição que aborda questões fundamentais sobre a natureza da realidade última, indo além do escopo das investigações empíricas. Diferentemente de hipóteses científicas, que são testadas e validadas por meio de evidências empíricas, as hipóteses metafísicas envolvem tópicos sobre a natureza do universo e sua fonte última. Tais questões filosóficas transcendem as fronteiras da experiência observável e podem ser defendidas por meio de argumentos que não estão sujeitos ao mesmo tipo de validação empírica empregado regularmente nas ciências naturais.

apesar de cumprir padrões similares de racionalidade, o teísmo não seria uma hipótese científica, mas uma hipótese metafísica, pois, nesse caso, seria um tipo de suposição que aborda questões fundamentais sobre a natureza da realidade última, indo além do escopo das investigações empíricas.

O teísmo pode funcionar como um tipo de explicação. Para entender melhor como isso funciona, Swinburne propõe um dualismo de explicação relativo a dois diferentes tipos de causas que servem para explicar como determinada ocorrência foi levada a efeito.²⁴ A primeira é a explicação inanimada, isto é, explicação que apela para a propensão de um fenômeno da natureza exercer seu poder sob certa condição. Quando a água se encontra a 0º, ela congela porque, entre suas propriedades, há a propensão de assim ocorrer sob tais condições. Ela tem de congelar sob aquelas condições e não tem a opção de não congelar. Por outro lado, há a explicação pessoal, que envolve crenças, desejos, propósitos e intenções de agentes racionais. Eu poderia ter decidido colocar a água para congelar – e isso seria uma explicação de natureza diferente da explicação inanimada. Assim, a explicação inanimada envolve poderes e propensões de objetos inanimados; a explicação pessoal envolve crenças e intenções de agentes pessoais. 

Swinburne argumenta que o teísmo forneceria um tipo de explicação pessoal, isto é, a existência de Deus é postulada como uma instância de explicação pessoal para as diferentes evidências que se pretende explicar.²⁵ Nesse caso, quando o teísta apela para a ação de Deus como hipótese explicativa para vários fenômenos, como a existência e a ordem do universo, ele não está defendendo que a ação de Deus funciona como um tipo de explicação científica inanimada; o teísmo não é uma teoria científica empiricamente testável, assim como a hipótese de que existem quarks ou neutrinos. 

Enquanto explicação pessoal, Deus seria um agente livre, e sua existência e seus poderes não dependem dos estados do mundo físico ou das operações das leis naturais. E como um tipo de explicação pessoal, Deus explicaria a ocorrência de um evento em termos de uma pessoa que a leva a efeito intencionalmente, de modo que uma explicação pessoal seria mais razoável que uma explicação do tipo inanimada. Assim, Deus seria aqui concebido como uma pessoa cujos poderes causam a existência do universo e suas muitas características distintivas. Além disso, o tipo de pessoa de Deus que o teísmo postula explica não apenas o que causou o universo e sua ordem, mas também por que elas ocorreram, apelando para a intenção de Deus de criá-las e sustentá-las. 

Mas por que razão o teísmo, com sua explicação pessoal baseada em crenças, poderes e intenções, deveria ser preferível à explicação científica ou inanimada? Para Swinburne, há alguns fenômenos que não podem ser elucidados por meio de uma explicação científica por duas razões: ou eles são estranhos demais para as ciências naturais explicarem, pois  exigem uma explicação tão complexa que quaisquer tentativas de fornecer uma hipótese explicativa as tornaria tão improváveis que seria mais racional descartá-las como explicação apropriada (por exemplo, algum tipo de violação das leis naturais, como uma pessoa se curando de câncer em um minuto ou um homem andando em cima das águas ou algum tipo de probabilidade monumental que seria mais bem explicada por meio de uma inteligência ou design); ou há fenômenos que são grandes demais para a explicação científica, pois fogem do escopo da ciência (por exemplo, a existência do universo, bem como de sua ordem e cognoscibilidade).²⁶ Para Swinburne, esses dois tipos de fenômenos parecem ser mais bem explicados pela ação intencional de um agente pessoal.

Considerações finais

Argumentei que a crença em Deus está em paridade com a crença no livre-arbítrio. Há algo especial com relação a essas crenças – talvez o modo como as formo ou o possível conhecimento direto que tenho delas – que me faz aceitá-las por meio de razões que não necessariamente estão estruturadas como uma hipótese de qualquer tipo. Nesse caso, haveria uma assimetria entre a crença em Deus e as crenças resultantes de uma hipótese. E, como vimos, isso não torna a crença em Deus infundada.

Contudo, a crença em Deus também pode ser considerada uma hipótese que trata de questões sobre a realidade última, sendo, portanto, uma hipótese metafísica. Nesse caso, ao contrário de Laplace, que acreditava ser possível descartar Deus como uma hipótese explicativamente inerte, a ação intencional de Deus deve ser invocada como a melhor explicação para determinado conjunto de fenômenos, como a existência do mundo e sua ordem.²⁷ Daí decorre que, se o teísmo pode ser considerado como compartilhando a mesma estrutura básica de hipóteses explicativas sólidas (nesse caso, como um tipo de explicação pessoal), ele se mostraria uma hipótese intelectualmente respeitável, embora seu status epistêmico não pareça depender desses argumentos.

 

 

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Referências

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* Ensaio classificado em 1º lugar na 2ª Chamada do Radar ABC².

1. Dawkins, 2007, p. 56.

2. Ibidem, p. 90.

3. Ibidem, p. 90 e 91.

4. Plantinga, 2018a, p. 376.

5. Joad foi uma célebre figura britânica nas décadas de 1940 que apresentou o popular programa de rádio The Brains Trust da BBC. Ele era conhecido por começar suas respostas às perguntas dos ouvintes com a seguinte frase: “Depende do que você quer dizer com…”.

6. Blackburn, 1997, p. 183.

7. Stenmark, Mark, 2021, p. 115.

8. Stenmark, 2017, p. 25.

9. Plantinga, 2018a.

10. Ibidem, p. 192-194

11. Plantinga, 2017, p. 193.

12. Quinn, 1991, p. 317.

13. Alston, 2020.

14. Plantinga, 1967.

15. Stenmark, 2021.

16. Veja, por exemplo: McLeod, 1993.

17. Van Inwagen (2005) sugere que a crença em Deus é análoga à crença no livre-arbítrio, mas, infelizmente, ele não desenvolve tal argumento. 

18. Peckham, 2022.

19. Ironicamente, há boas evidências científicas em favor da crença de que temos esta intuição. Veja, por exemplo: Barrett, 2012.

20. Algumas pessoas alegam que determinadas descobertas científicas entram em conflito com a crença em Deus (por exemplo, a teoria da evolução ou a física newtoniana não é compatível com a crença em Deus) e com a crença no livre-arbítrio (por exemplo o experimento de Benjamin Libet mostraria que não temos livre-arbítrio). Para uma análise crítica e refutação da alegação de conflito entre algumas teorias científicas e a crença em Deus, consulte: Plantinga, 2018b. Do mesmo modo, para uma análise crítica e refutação da alegação de conflito entre algumas teorias científicas e a crença no livre-arbítrio, veja: Swinburne, 2013; Balaguer, 2016.

21. Stenmark, 2021, p. 119.

22. Ibidem, p. 95.

23. Swinburne, 2015.

24. Ibidem, p. 41-47.

25. Swinburne, 2019.  

26. Ibidem.

27. Claro que aqui estamos apenas diante de uma alegação. É preciso mais do que minha palavra para aceitar esta afirmação. Infelizmente, não tenho espaço aqui para desenvolver este ponto. Contudo, eu dirigiria o leitor para: Swinburne, 2019; Meyer, 2022.

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