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ENSAIO

Compreendendo a providência divina em face dos males evolutivos*

Uma abordagem baseada na teodiceia cumulativa

Gabriel Reis de Oliveira|

15/09/2023

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Gabriel Reis de Oliveira

Possui graduação e mestrado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, ele está cursando seu doutorado em filosofia na Saint Louis University, localizada nos Estados Unidos.

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Como citar

Oliveira, G.R. Compreendendo a providência divina em face dos males evolutivos: uma abordagem baseada na teodiceia cumulativa. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Introdução

A teoria evolutiva de Darwin, publicada no século 19, revolucionou o entendimento científico da origem das espécies e sua relação com o ambiente natural. Nessa época, ciências como biologia, geologia e paleontologia se consolidavam em apoio à noção de uma Terra antiga e à evolução gradual das espécies ao longo do tempo. Darwin argumentou que a evolução ocorre por meio da seleção natural, um processo aparentemente aleatório, não direcionado e indiferente. Atualmente, sabe-se que a seleção natural atua no nível dos genes, sujeitos a mutações aleatórias. Isso implica que, ao longo de milhões de anos, incontáveis organismos passaram por mutações, incluindo aquelas que resultaram em características prejudiciais à sua sobrevivência. Essas descobertas desafiaram as concepções tradicionais sobre a criação e a providência divina, gerando debates acalorados entre ciência e religião. O objetivo geral deste ensaio é abordar algumas questões suscitadas pela teoria evolutiva nesse debate, especialmente aquelas relacionadas à providência divina e à existência do mal.

Ao longo da história, a relação entre ciência e religião tem sido objeto de debates intensos. Ian Barbour propôs uma taxonomia para classificar as possíveis visões sobre a interação entre ciência e religião. Na perspectiva conflitante, ciência e religião são irreconciliáveis, como exemplificado no conflito gerado pelo neodarwinismo.¹ Essa teoria levanta desafios à existência de Deus, especialmente no que diz respeito ao problema do mal natural, como os males evolutivos resultantes da seleção natural. Esses males, que envolvem competição, morte e sofrimento ao longo da história da Terra, contradizem a ideia de um Deus todo-poderoso, todo-conhecedor e inteiramente bom. Além disso, o neodarwinismo também desafia a doutrina tradicional da providência divina, questionando se a evolução está sob o direcionamento divino e se possui um propósito no plano de Deus. Enquanto a doutrina tradicional defende que Deus controla todos os eventos, a evolução é caracterizada por aleatoriedade, brutalidade e um vasto período de tempo.² Esses desafios têm gerado reflexões sobre a relação entre ciência, religião e a existência de Deus. 

Este ensaio tem como foco os possíveis propósitos últimos de Deus ao criar o mundo, especialmente ao optar por um processo evolutivo que aparentemente envolve elementos de acaso. Robin Collins enfatiza corretamente que a resposta para determinar se Deus influenciou o processo evolutivo está intrinsecamente ligada à compreensão dos propósitos de Deus na criação.³ Os propósitos divinos são as razões subjacentes às ações divinas, como permissão, decreto, abstenção ou influência. Portanto, a pergunta que iremos abordar é: por que Deus criaria um mundo que requer um longo processo evolutivo repleto de eventos acidentais e fortuitos, resultando em sofrimento e morte ao longo de milhões de anos, independentemente de ter influenciado ou não esse processo evolutivo?

Portanto, a pergunta que iremos abordar é: por que Deus criaria um mundo que requer um longo processo evolutivo repleto de eventos acidentais e fortuitos, resultando em sofrimento e morte ao longo de milhões de anos, independentemente de ter influenciado ou não esse processo evolutivo?

Diversos filósofos e teólogos contemporâneos têm se dedicado a desenvolver teodiceias para identificar o propósito divino por trás dos males evolutivos. Essas teodiceias buscam fornecer explicações plausíveis para a existência do mal evolutivo em um mundo criado por um Deus que é considerado bom, onisciente e onipotente. O objetivo específico deste artigo é apresentar uma teodiceia de caso cumulativo, que combina diferentes teodiceias propostas anteriormente de forma isolada, com o intuito de apoiar a tese de que Deus possui razões moralmente suficientes para criar um mundo como o nosso. Michael J. Murray, por exemplo, parece adotar essa perspectiva ao sugerir que o mal generalizado, como a dor e o sofrimento animal, não pode ser explicado apenas por um conjunto limitado de bens que constituíram as razões moralmente suficientes.⁴ É mais plausível considerar que existem diversos bens que Deus pretende alcançar por meio da criação e que certos tipos de males permitidos visam assegurar múltiplos desses bens. 

É necessário discutir o que torna uma teodiceia adequada para explicar os males evolutivos. A próxima seção é fundamental para a argumentação apresentada, pois o sucesso do caso cumulativo depende da nossa compreensão do que constitui uma teodiceia bem-sucedida. Com base nesses critérios estabelecidos, poderemos avaliar de forma apropriada a minha própria proposta e verificar se ela alcança seu objetivo.

Critérios para uma boa teodiceia

Dentro da literatura filosófica contemporânea sobre o problema do mal, a avaliação das teodiceias geralmente envolve a satisfação de três condições: as condições explanatórias, a condição epistêmica e as condições morais. Nesta seção, por questão de espaço, será fornecida apenas uma breve explicação dessas três condições.

As condições explanatórias requerem que uma teodiceia seja capaz de apresentar uma descrição de um estado de coisas possível que seja logicamente consistente com as crenças religiosas relevantes e que implique na existência de um tipo específico de mal. Um estado de coisas possível refere-se a um cenário que tem a capacidade de ser verdadeiro ou de ocorrer. No âmbito da teodiceia, um estado de coisas possível é considerado logicamente consistente com as crenças religiosas relevantes quando não há contradições lógicas entre a descrição do estado de coisas e as crenças religiosas pertinentes. Além disso, ao propor uma teodiceia, é fundamental que o estado de coisas possível descrito leve à existência de um tipo específico de mal, tal como o mal evolutivo. Isso implica que, dentro do cenário descrito pela teodiceia, o mal evolutivo seja uma possibilidade, uma necessidade ou uma inevitabilidade.

A condição epistêmica estabelece que uma teodiceia deve ser mais provável do que não, com base no que temos razões justificadas para acreditar. Em outras palavras, uma teodiceia deve ser coerente com o que sabemos. No contexto do sofrimento dos animais, existem diversas teodiceias propostas, mas muitas delas entram em conflito com o conhecimento científico estabelecido. Por exemplo, a teodiceia que sustenta que o sofrimento dos animais é resultado do pecado de Adão e Eva vai contra a evolução biológica, que explica a existência do sofrimento como um resultado da seleção natural. Portanto, para que uma teodiceia seja plausível, ela deve estar em consonância com o conhecimento científico atual, caso contrário, ela é considerada insuficiente.

As condições morais são um conjunto de condições que estabelecem que o estado de coisas possíveis em uma teodiceia deve demonstrar que Deus tem razões moralmente suficientes para permitir a existência do mal relevante, como o mal evolutivo. Para satisfazer essa condição, Roderick Chisholm propôs a condição de derrota.⁶ Segundo Chisholm, a teodiceia deve demonstrar que o mal será derrotado por Deus. De acordo com ele, para que um mal seja derrotado, é necessário que ele seja integrado em um todo complexo que seja bom em um grau que supere o mal e que não poderia ser bom nesse grau sem a presença do mal. Chisholm ilustra essa condição com o exemplo de alguém que enfrenta o medo e reúne coragem, de modo que o bem complexo, que é a coragem diante do medo, derrota a parte má.⁷

A condição de particularidade é uma das exigências morais para a plausibilidade de uma teodiceia. Essa condição estabelece que uma teodiceia deve demonstrar que os indivíduos que sofrem são ou serão compensados individualmente ou coletivamente por sua experiência dolorosa. Simplesmente afirmar que o mal tem um propósito maior e que o sofrimento é necessário para alcançar esse propósito não é suficiente; é necessário mostrar que cada ser que sofre recebe uma compensação adequada. Caso uma teodiceia defenda que o sofrimento é necessário para atingir um propósito maior, é preciso evidenciar como esse propósito beneficia os animais individualmente ou coletivamente e como eles são recompensados por seu sofrimento. É importante observar que uma abordagem de teodiceia cumulativa permite identificar bens que não atendem à condição de particularidade. No entanto, bens que satisfazem a condição de particularidade devem fazer parte dessa teodiceia.

Após examinar as condições que uma teodiceia deve cumprir para ser considerada bem-sucedida, avançaremos agora para a construção de um caso cumulativo, onde apresentaremos algumas teodiceias propostas na literatura para explicar o propósito divino por trás do sofrimento evolutivo. Concluiremos que essas teodiceias, consideradas em conjunto, satisfazem os critérios necessários para serem consideradas bem-sucedidas.

Uma teodiceia cumulativa

No contexto da filosofia analítica da religião, a resposta que une as explicações contemporâneas de por que Deus usou um processo evolutivo para criar o mundo é que tal processo é necessário para garantir algum bem que supere o mal ou dano sofrido pelos animais. Christopher Southgate descreve três categorias pelas quais se pode colocar tais explicações que ele chama de Análise de Dano-Bem (ADB).⁸ A primeira categoria é a ADB de consequência de propriedade, na qual a existência de um bem como propriedade de um ser ou sistema implica a possibilidade de que a posse desse bem resulte em dano ou sofrimento. A segunda categoria é a ADB de desenvolvimento, que postula que o bem é uma meta que só pode ser alcançada por meio de um processo que inclui a possibilidade ou a necessidade de dano ou sofrimento. A terceira categoria é a ADB constitutiva, em que a existência de um bem está intrinsecamente ligada à experiência de dano ou sofrimento. Vamos explorar exemplos de teodiceias em cada uma dessas categorias.

O bem intrínseco da regularidade nômica

A explicação dos males naturais baseada na regularidade nômica é uma teodiceia que se enquadra na categoria de ADBs de consequência de propriedade. Essa explicação parte do princípio de que a regularidade nômica, que governa a natureza e permite a previsibilidade das leis naturais, é a base para compreender os males naturais. Segundo essa perspectiva, os males naturais são considerados subprodutos necessários resultantes da criação e conservação de um mundo físico que opera de maneira regular. Desastres naturais, doenças, acidentes e outros eventos similares são exemplos de fenômenos que podem ser considerados “mal natural”, afetando diretamente os animais. Nesse contexto, o mal natural seria uma consequência não intencional de um sistema maior, que opera de acordo com a regularidade nômica.

Ao longo dos últimos dois milênios, a regularidade nômica tem sido amplamente defendida por filósofos como uma característica intrinsecamente positiva do Universo. Filósofos como G.W. Leibniz criticaram a ideia de intervenção divina periódica nas órbitas planetárias, sugerindo que isso seria indicativo de uma limitação do poder e conhecimento de Deus.⁹ Para eles, um universo desprovido de regularidade nômica revelaria um Criador com menor poder e sabedoria, incapaz de criar um relógio em movimento perpétuo em vez de ter que ajustá-lo ocasionalmente. Henry Ward Beecher também sustentava que a regularidade nômica em nosso mundo decorre essencialmente da bondade e sabedoria divinas. Ele afirmava que um sistema complexo que se autoconstrói por meio de leis internas possui uma grandeza maior do que um projeto construído por atos singulares.¹⁰ Esses autores defendiam o valor intrínseco da regularidade nômica, que revela, por meio de uma grandiosa criação, os atributos divinos, como sabedoria e poder.

Diversidade dos seres vivos

A regularidade do funcionamento do mundo possibilita um importante bem, que é a grande diversidade de formas de vida presentes em nosso planeta. Essa diversidade é amplamente percebida como positiva e valiosa, evidenciada pelos esforços de movimentos ecológicos voltados para a conservação do ambiente e das espécies. A existência de um mundo com tal variedade de formas de vida parece demandar uma maior regularidade nômica. As leis naturais regulares são responsáveis por garantir a estabilidade e o funcionamento coeso dos ecossistemas, estabelecendo padrões e processos nos quais as espécies interagem entre si e com o ambiente. Por exemplo, a regularidade das leis genéticas determina a herança de características nas espécies, contribuindo para a diversidade genética e a variação dentro das populações. Além disso, a regularidade nômica permite a adaptação e evolução dos organismos ao longo do tempo. A seleção natural, por exemplo, opera de acordo com padrões regulares, favorecendo as características que conferem vantagens adaptativas aos organismos em determinados ambientes. Isso leva à diversificação das espécies ao longo das gerações e à ocupação de nichos ecológicos específicos. A regularidade também desempenha um papel fundamental na estabilidade dos habitats e dos ecossistemas como um todo. As interações entre os diferentes componentes de um ecossistema ocorrem de acordo com as leis naturais que governam essas relações. Essa regularidade permite a existência de complexas cadeias alimentares, ciclos de nutrientes e processos regulatórios que sustentam a diversidade e a integridade dos ecossistemas.

Liberdade das criaturas

Um dos bens instrumentais possíveis via regularidade nômica é a liberdade significativa das criaturas. Tanto a possibilidade de escolher entre cursos de ações moralmente bons ou maus quanto a concretização dessas escolhas afetando nosso mundo são características da liberdade das criaturas que a tornam valiosa. E num mundo sem regularidade nômica, seria impossível formar intenções de agir e afetar o mundo, pois, para ter a intenção de provocar um certo estado no mundo, devemos ter razões para acreditar que, ao realizarmos determinada ação, uma coisa específica sucederá, e não qualquer outra.¹¹

Nobreza dos animais

Richard Swinburne argumenta que os animais, embora não possuam livre escolha, têm a capacidade de realizar ações espontâneas e intencionais virtuosas.¹² Ele defende que a capacidade de experimentar dor e sofrimento é essencial para que os animais se envolvam em uma variedade de ações espontâneas e intencionais disponíveis para eles. A ausência desses estados mentais impediria o desenvolvimento de sentimentos como simpatia, afeto, coragem e paciência.¹³ Swinburne sustenta que os animais não podem evitar o perigo ou guiar sua prole para a segurança, a menos que existam ameaças reais e a possibilidade de perigo. Além disso, as ações nobres e heroicas dos animais dependem do conhecimento das consequências de suas ações, o qual é adquirido por meio da aprendizagem em um mundo com regularidade nômica.¹⁴

Até agora, a regularidade nômica e os bens que ela possibilita não exigem que Deus crie um mundo por um longo processo evolutivo, mas apenas que haja males naturais. Para suprir essa falta, vamos a algumas ADBs de desenvolvimento.

A bondade intrínseca do caos à ordem

Murray utiliza a expressão “caos à ordem” para descrever os mundos evolutivos¹⁵ e distingue entre duas dimensões temporais desses mundos. A dimensão diacrônica refere-se à ordem exibida em um padrão de eventos ao longo do tempo, ao passo que a dimensão sincrônica é a ordem exibida por entidades naturais em determinado momento. A teodiceia do caos à ordem, no contexto de Deus e o mal natural, concentra-se no movimento diacrônico das condições iniciais de caos para estados sincrônicos mais estáveis de ordem. Na ordem sincrônica, dentro da ordem diacrônica, observamos a origem das estrelas, a produção de elementos superiores, a formação de planetas, a síntese de moléculas orgânicas, a origem da vida, e assim por diante.¹⁶ Murray argumenta que, se o universo progride do caos à ordem ao longo do tempo, então os organismos que existem atualmente no mundo surgiram por meio de um processo regular conforme as leis da natureza (já que a regularidade é considerada um bem). Se esse processo começou em um estado altamente caótico, só podemos alcançar o estado atual por meio de um processo que tende a aumentar a complexidade orgânica ao longo do tempo.¹⁷ Isso implica, em primeiro lugar, a possibilidade de sofrimento animal em decorrência da regularidade nômica e, em segundo lugar, em uma longa história planetária na qual ocorre o sofrimento animal, uma vez que o processo evolutivo para chegar aos organismos complexos de forma natural requer a existência de inúmeros organismos predecessores.

Murray e Beecher defendem que um universo em transição do caos para a ordem, funcionando como uma máquina de produção, revela a grandiosidade divina de forma sublime.¹⁸ Eles utilizam as analogias de uma fábrica de relógios e uma máquina de tear automática para ilustrar como a capacidade de criar e manter um sistema de adaptações e produção contínua é uma evidência ainda mais significativa de design do que um produto acabado. A ênfase é colocada no design em massa presente no universo em constante transformação, destacando a magnificência e a sabedoria do criador que possibilita a transição do caos para uma ordem bela e complexa de maneira natural.

A ênfase é colocada no design em massa presente no universo em constante transformação, destacando a magnificência e a sabedoria do criador que possibilita a transição do caos para uma ordem bela e complexa de maneira natural.

A autonomia da criação

A teodiceia da autonomia da criação postula que o processo evolutivo, embora envolva males e sofrimentos, é a única maneira de criar vida de forma autônoma, sem intervenção divina. A autonomia da criação é vista como um bem que só pode ser alcançado por meio de um processo que inclui a possibilidade de danos. John Haught argumenta que um mundo que se torna cada vez mais autônomo, capaz de se desenvolver e alcançar a consciência humana, possui maior integridade e valor do que um mundo determinado por um “projetista divino”.¹⁹ Ele sugere que o mal e os danos são permitidos para que a natureza possa moldar seu caráter e criar a si mesma, o que é valorizado tanto na teodiceia do livre-arbítrio quanto na do aperfeiçoamento da alma.

O caráter de autoesvaziante de Deus

A defesa da autonomia da criação também pode ser justificada com base na compatibilidade entre o processo evolutivo e o caráter kenótico e não compulsivo do amor divino revelado em Jesus. O teólogo George Murphy argumenta que toda ação divina deve estar em consonância com o verdadeiro caráter de Deus, como revelado na obra da cruz, e, portanto, não seria surpreendente que a providência divina na criação também se manifeste de forma autoesvaziante, em vez de trazer a natureza à existência através de um poder arbitrário.²⁰ Essa proposta de kenose oferece uma razão para Deus escolher realizar a criação por meio do processo evolutivo, pois a criação deve refletir o caráter do Criador.²¹ Se o amor divino é autoesvaziante e não compulsivo, a criação como objeto desse amor não é controlada nem guiada. Em outras palavras, ser “criado por um Deus autoesvaziante” é um bem que só pode ser alcançado por meio de um processo que inclui imprevisibilidade, falta de controle e a possibilidade de danos.

Interconexões emergente e ancestral

A teodiceia proposta por Collins argumenta que o processo evolutivo, apesar da dor e sofrimento animal associados, possibilita interconexões de valor significativo entre os seres humanos e a criação não humana.²² Essas interconexões representam as relações de conexão especiais das pessoas com elementos não pessoais da criação. Collins identifica três tipos de interconexões que formam a base de sua teodiceia: emergente, ancestral e redentora.²³

A interconexão emergente refere-se à ideia de que o corpo e a alma humana surgem, em parte, a partir dos materiais básicos existentes no universo. Isso implica uma conexão forte se o corpo resulta de um processo evolutivo e a alma humana, incluindo sua agência libertária, se forma a partir do que já está presente no universo. Isso também implica que, para que a agência libertária surgisse da matéria, o mundo teria que ser indeterminístico tanto quanto a própria agência libertária. A conexão emergente forte possui uma interconexão maior e poderia ser uma razão para Deus criar o universo por meio de um processo evolutivo indeterminístico, em vez de um determinístico.²⁴ A conexão ancestral ocorre quando dois seres compartilham um ancestral comum, como os humanos e os macacos compartilhando um ancestral primata.²⁵ Já a interconexão redentora se enquadra na categoria de ADBs constitutivos, que argumenta que a existência do bem está intrinsecamente ligada à experiência de dano ou sofrimento.

Interconexão redentora

A interconexão redentora refere-se à relação existente entre os seres humanos e a criação, na qual os seres humanos desempenham um papel na redenção do mundo por meio da graça divina, permitindo que a criação participe plenamente da vida de Deus.²⁶ Passagens do Novo Testamento mencionam a redenção da criação como o propósito último de Deus, e afirmam que essa redenção será alcançada por meio das ações dos seres humanos que representam a Igreja, considerada o “corpo de Cristo”.²⁷ Collins argumenta que essa perspectiva fornece uma explicação adicional para a existência do sofrimento e da dor animal: incluir a criação no plano redentor de Deus, permitindo a interconexão redentora.²⁸

Collins argumenta a favor do valor das interconexões entre seres humanos e a não criação humana. Essas interconexões proporcionam uma comunhão mais profunda com a criação, na qual a criação se torna, de certa forma, parte de nossa própria existência. Dentre as razões que Collins oferece para percebemos o valor das conexões entre humanos e a criação, mencionarei duas. Considere a noção de que há um grande bem em permitir que os seres humanos tenham participação significativa na formação de seu caráter futuro. Ao sermos parcialmente responsáveis por nossas próprias almas, nosso caráter se torna plenamente nosso. A interconexão redentora possibilita uma cocriação do mundo com Deus, tornando-se, assim, um trabalho conjunto entre Deus e nós mesmos. Essa interconexão contribui para a integração da criação em nossa própria identidade.²⁹ Ademais, as conexões que estabelecemos com nossos pais e familiares também desempenham um papel importante em nossa identidade. As conexões familiares são percebidas como essenciais, pois tornam essas pessoas parte do que somos como indivíduos. Da mesma forma, as conexões emergentes e ancestrais com o restante da criação, especialmente com os animais superiores, podem contribuir para torná-los parte significativa de nossa identidade. Podemos considerar-nos, de certa forma, uma família com a criação.³⁰ Essas conexões são valorizadas principalmente pelos biólogos.³¹ Joan Roughgarden, por exemplo, vê a continuidade material entre os seres vivos como uma extensão da visão cristã de corpo e família para toda a criação.³²

as conexões emergentes e ancestrais com o restante da criação, especialmente com os animais superiores, podem contribuir para torná-los parte significativa de nossa identidade. Podemos considerar-nos, de certa forma, uma família com a criação.

Com base nessas interconexões e em seu valor de abrir caminho para uma comunhão mais profunda com a criação, que se torna parte de quem somos e é levada à vida divina por meio de nós, Collins propõe a teodiceia da construção de conexão (TCC).³³ A TCC parte da suposição de que as conexões positivas entre indivíduos têm um valor intrínseco compartilhado por todas as partes da conexão. Além disso, hipotetiza que essas conexões têm o potencial de fazer parte da vida de uma pessoa por toda a eternidade, aumentando constantemente seu valor, o que pode superar os males finitos que Deus permite para que essas conexões existam. TCC sugere que o valor das conexões possibilitadas pela evolução supera o sofrimento ocorrido no processo, uma vez que, se essas conexões são eternas, seu valor pode ser considerado imenso ou infinito, superando o sofrimento finito característico do processo evolutivo.

Bem-aventurança eterna dos animais

Ao longo das últimas décadas, tem aumentado o apoio à ideia de que todos os animais também terão um lugar no reino celestial.³⁴ Isso levou a várias propostas sobre a natureza da existência celestial dos animais e sua relação com o problema do sofrimento animal. O argumento a favor dessa ideia geralmente assume a seguinte forma: A perfeição divina implica o amor de Deus por toda a criação, incluindo os animais, considerados suas criações. Assim, Deus estenderia sua benevolência aos animais, concedendo-lhes uma existência extremamente boa e eternamente feliz no céu.³⁵

No entanto, surge a questão de como o sofrimento pode ser necessário para que os animais alcancem alegria eterna nos céus. Permitir que os animais experimentem algum grau de dor e sofrimento durante sua existência terrena pode aumentar a magnitude da bondade associada ao estado final no céu, por meio do contraste entre o sofrimento terreno e a bem-aventurança eterna. Essa explicação é plausível quando consideramos que o sofrimento vivenciado durante a vida terrena é ínfimo em comparação com a felicidade eterna. Além disso, a bondade do estado pós-morte pode ser ampliada pelo contraste, uma vez que os animais terão uma apreciação ainda maior desse estado livre de dor, morte e predação.³⁶

Trent Dougherty propõe que os animais serão santificados no Paraíso, recebendo habilidades cognitivas desenvolvidas, semelhantes às dos humanos, para perceber Cristo e compreender o sofrimento que experimentaram na Terra.³⁷ Isso significa que, se sua tese for verdadeira, os animais serão capazes de desfrutar de diversos benefícios que exigem capacidades cognitivas avançadas, como a percepção dos atributos de Deus na criação de um mundo evolutivo.

Conclusão

Em conclusão, é necessário aplicar os critérios estabelecidos aos bens derivados do mal natural e do sofrimento animal mencionados até o momento. Ao considerar em conjunto os bens mencionados com relação às condições explicativas, como a regularidade nômica, a diversidade dos seres vivos, a liberdade das criaturas e a nobreza dos animais, percebemos que a posse desses bens pode resultar no sofrimento animal. Além disso, os bens desejados, como a transição do caos à ordem no mundo, a autonomia da criação, o mundo como resultado de um Deus autoesvaziante e as interconexões emergentes e ancestrais, só podem ser alcançados por meio de um processo que envolve a possibilidade ou necessidade de sofrimento animal ao longo da história planetária. Os bens da interconexão redentora e da bem-aventurança eterna dos animais estão intrinsecamente ligados à experiência de sofrimento animal. Nenhum desses bens são logicamente inconsistentes com as crenças religiosas relevantes. Com relação à condição epistêmica, considerando aquilo em que estamos razoavelmente justificados em acreditar, parece que nenhum dos bens mencionados é menos provável do que não.

Os bens da interconexão redentora e da bem-aventurança eterna dos animais estão intrinsecamente ligados à experiência de sofrimento animal. Nenhum desses bens são logicamente inconsistentes com as crenças religiosas relevantes.

Com relação à condição de derrota e particularidade, quando os bens mencionados são integrados em um todo complexo, pode-se argumentar que a bondade experimentada pelos animais nesse todo complexo supera o mal em um grau que não poderia ser alcançado sem a presença deste. Embora uma demonstração definitiva de que esse conjunto de bens realmente supere o sofrimento dos animais não possa ser feito em virtude das limitações de espaço e objetivo, a crença teísta pode estar em uma posição mais favorável quando se demonstra que tal sofrimento torna essas criaturas parte de um mundo repleto de valores e bens, onde cada criatura não humana que sofre desfruta de alguns desses bens pela eternidade. Além disso, embora o debate seja atual, nos últimos anos vários autores produziram escritos com o objetivo de identificar bens (consistentes entre si) que são possibilitados pela evolução das espécies. Essa abordagem cumulativa permite destacar outros bens valiosos, diminuindo a impressão de que a evolução, a seleção natural e o sofrimento resultante são incompatíveis com a crença em Deus. Para explorar mais sobre esses bens, sugerimos que o leitor consulte os escritos de Murray,³⁸ Nicola Hoggard Creegan,³⁹ Dougherty,⁴⁰ Southgate,⁴¹ Bethany Sollereder⁴² e John Schneider.⁴³ Esses autores oferecem perspectivas complementares e aprofundadas sobre o assunto.

 

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Referências

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Roughgarden, Joan. Evolution and Christian faith: Reflections of an evolutionary biologist. Island Press, 2006.

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Southgate, Christopher. The Groaning of Creation: God, Evolution, and the Problem of Evil. Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2008.

Swinburne, Richard. Providence and the Problem of Evil. Oxford: Oxford University Press, 1998.

Tennant, F. R. Philosophical Theology. Cambridge: Cambridge University Press, 1928.

 

* Ensaio classificado em 3º lugar na 2ª Chamada do Radar ABC².

1. Barbour, 1997, p. 77-83.

2. Haught, 2003, p. 70.

3. Collins. 2009, p. 241-43.

4. Murray, 2008, p. 205.

5. Para uma exposição mais detalhada dessas condições, veja: Silvestre, 2017, p. 207-225.

6. Chisholm, 1968-1969, p. 21-38.

7. Ibidem, p. 29-30.

8. Southgate, 2008, p. 70.

9. Leibniz, 1956, p. 11-2.

10. Beecher, 1885, p. 114-6.

11. Veja Tennant, 1928, p. 199-200 e Reichenbach, 1982, p. 103-4.

12. Swinburne, 1998, p. 171-5, 189-92.

13. Ibidem, p. 171-2.

14. Ibidem, p. 189-90.

15. Murray, 2008, p. 166-7.

16. Ibidem, p. 167.

17. Ibidem, p. 167-8.

18. Ibidem, p. 180-186; Beecher, 1885, p. 115-6.

19. Haught, 2000, p. 41.

20. Murphy, 2003, p. 372.

21. Collins, 2009, p. 246-59.

22. Ibidem, p. 247.

23. Ibidem, p. 247-8.

24. Ibidem, p. 248-9.

25. Ibidem, p. 249.

26. Ibidem.      

27. Veja as passagens bíblicas de Romanos 8:21, Efésios 1:10, Efésios 4:10, Colossenses 1:20 e 1 Coríntios 15:28.

28. Collins, 2009, p. 250-3.

29. Ibidem, p. 255.

30. Ibidem, p. 256.

31. Ibidem, p. 249.

32. Roughgarden, 2006, p. 18.

33. Collins, 2009, p. 257-8.

34. Veja: Schneider, 2020, cap. 10.

35. Para um desenvolvimento desse argumento a favor da tese de que os animais vão para o céu, bem como respostas às críticas, veja: Dougherty, 2014, p. 145-66.

36. Murray, 2008, p. 126-127. Murray apresenta a tese de que a bondade do estado pós-morte pode ser ampliada pelo contraste e a descarta, alegando que seria uma falha do projeto de Deus, pois ele foi incapaz de criar os animais com a capacidade de experimentar plenamente a bondade sem a experiência do mal. No entanto, apreciar o bem sem uma experiência anterior ou correspondente do mal pode ser possível para Deus e os anjos, mas isso não implica que seja possível para todas as criaturas sencientes que vivem em um mundo nomicamente regular. O fato de algumas entidades serem capazes de apreciar o bem sem o mal não nega a possibilidade de que outras criaturas possam precisar dessa experiência, principalmente se tais criaturas nasceram, viveram e morreram em um mundo nomicamente regular, criado autonomamente etc., onde observamos que a experiência do mal é uma parte intrínseca do desenvolvimento e amadurecimento das criaturas sencientes, permitindo-lhes alcançar um nível mais profundo de apreciação e entendimento do bem, aumentar a gratidão e prover uma maior sensibilidade e apreciação pelas coisas boas da vida.

37. Dougherty, 2014, p. 134-53.

38. Murray, 2008.

39. Creegan, 2013.

40. Dougherty, 2014.

41. Southgate, 2018.

42. Sollereder, 2019.

43. Schneider, 2020.

Outros ENSAIOS [nº 2]

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