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ENSAIO

Imersos na narrativa*

Formação e missão a partir da percepção dramática das Escrituras

Eduardo M. M. Mitre|

08/09/2023

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Eduardo M. M. Mitre

Formado em Ciências Biológicas pela UFMG. Missionário em tempo integral em Alvo da Mocidade – Associação Brasileira de Orientação Cristã para a Juventude.

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Como citar

Mitre, Eduardo M. M. Imersos na narrativa: formação e missão a partir da percepção dramática das Escrituras. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Não há nenhuma história um dia contada que os homens quisessem tanto que fosse verdade, e nenhuma que tantos céticos acolheram como verdadeira por seus próprios méritos. Isto porque a Arte dessa história tem o tom supremamente convincente da Arte Original, isto é, da Criação. Rejeitá-la leva à tristeza ou à ira […] Esta é uma história suprema; e é verdadeira. A Arte se confirmou. – J. R. R. Tolkien.

Introdução

“É impressionante quão pouca atenção os críticos têm dado à História considerada em si mesma”.¹ Com estas palavras, Lewis inicia sua crítica à forma como a literatura estava sendo apreciada em seus dias. Segundo o autor, o anseio por um tipo de prazer inferior, que busca uma satisfação momentânea trazida pelo que chamou de “empolgação”, estava prejudicando as histórias e os leitores: “Na pressa e na correria de suas fugas, a poesia da ideia básica é perdida”.² Lewis acreditava que este tipo de leitura “coloca um silencioso feitiço sobre a imaginação”.³ Ele acreditava e dava singular importância à formação da imaginação, tanto para a apreciação de histórias quanto para o crescimento dos discípulos de Cristo. A partir de sua concepção de “mito”, que para o autor são “histórias que despertam a imaginação humana, incorporam realidades universais e definem os valores de uma cultura”,⁴ Lewis aproxima sua crítica literária da teologia e nos incentiva a pensar em como temos abordado as Escrituras. Refletindo sobre isso, o teólogo Philip Ryken observa:

Ao se aproximar das Escrituras, Lewis descobriu que a narrativa principal funcionava como um conto mítico e também como uma história factual. Como declarou Vanhoozer: “Dessa forma ele se distinguia dos fundamentalistas, que perderam o ‘mito’ (imaginação), e dos críticos modernos da Bíblia, que eliminavam o ‘fato’ (história)”. Na verdade, como Vanhoozer também apontou, a maior crítica de Lewis aos fundamentalistas e aos modernistas era quase a mesma: nenhum dos dois grupos mostrava bom senso literário.⁵

Na tentativa de compreender e promover o pleno desenvolvimento e florescimento  do ser humano do ponto de vista cristão, diversas abordagens filosóficas e teológicas têm surgido, cada uma trazendo sua perspectiva única e suas contribuições para essa busca incessante. Alister McGrath, ao refletir sobre a natureza das Escrituras e o fazer teológico, indica a influência do movimento Iluminista do século 18 como um dos motivos para a mudança de ênfase na interpretação da Bíblia. Segundo o autor, a ênfase racionalista do movimento induziu nossa leitura bíblica a se basear em uma busca por “verdades racionais e universalmente válidas”⁶ que pudessem ser sistematizadas em uma estrutura e determinados pela razão, e “não havia a mínima necessidade de recorrer à história, exceto como argumento de apoio”.⁷ Assim, a abordagem interpretativa, chamada pelo autor de “teologia narrativa”, mas que nós trataremos como teologia bíblica, entrou em declínio. A consequência dessa abordagem puramente racionalista e propositivista pode ser comparada ao problema levantado por Lewis que indicamos anteriormente: ela coloca um poderoso empecilho para a formação de uma imaginação cristã robusta, essencial para o amadurecimento do discípulo como ser humano integral.

A teologia bíblica, uma área relativamente recente, surge como uma opção às formas mais propositivistas e racionalistas do fazer teológico, podendo ser definida como uma “interpretação teológica das Escrituras em e para a igreja”.⁸ Ela procede com sensibilidade histórica e literária, e procura “analisar e sintetizar o ensino da Bíblia sobre Deus e suas relações com o mundo com base nos princípios da própria Bíblia, mantendo em vista o foco narrativo e cristocêntrico geral desta”.⁹ As Escrituras possuem uma riqueza narrativa singular. O gênero predominante nas Escrituras é a narrativa. Reduzir a revelação contida nas Escrituras a pressupostos teológicos ou articulações filosóficas é perder grande parte dos tesouros que podemos encontrar ali. É claro que a Bíblia é um livro informativo, e a intenção aqui não é defender uma área da teologia em detrimento de outra, mas sim aprofundar as nossas possibilidades de comunhão com as Sagradas Escrituras. 

A consequência dessa abordagem puramente racionalista e propositivista pode ser comparada ao problema levantado por Lewis que indicamos anteriormente: ela coloca um poderoso empecilho para a formação de uma imaginação cristã robusta, essencial para o amadurecimento do discípulo como ser humano integral.

Nesse contexto, a presente reflexão visa explorar como a teologia bíblica e o aspecto narrativo da Palavra de Deus, bem como da leitura e do estudo das Escrituras, podem contribuir para o florescimento humano. Portanto, ao longo deste ensaio, iremos discutir como a singularidade narrativa das Escrituras e a atenção do estudante da Bíblia a esse aspecto nos fornecem ferramentas absolutamente úteis para o desenvolvimento da nossa salvação com temor e tremor.

O poder e a riqueza da narrativa

A forma como enxergamos o mundo e encontramos sentido para a nossa existência depende muito das histórias que ouvimos, aprendemos, cremos, nos comprometemos e contamos. Ninguém responde às grandes questões da existência como “onde estamos?”, “quem somos?”, “qual o propósito da vida?”, “o que há de errado com o mundo?”, “qual a solução?”  etc., com uma lista de pressupostos filosóficos ancorados em um nada narrativo. Não. Essas perguntas, bem como outras de fundamental importância, só encontram respostas que sejam coerentes se inseridas em um contexto narrativo que faça sentido e abranja toda a existência. Todas as comunidades humanas vivem com base em alguma história abrangente que sugere o significado e o objetivo da experiência humana, moldando, assim, a vida e a sociedade.

Craig G. Bartholomew e Michael W. Goheen sustentam essa ideia afirmando que existem grandes histórias chamadas “metanarrativas” ou “histórias elementares”, que funcionam como histórias básicas ou fundamentais das civilizações, e que fornecem a compreensão “de todo nosso mundo e do nosso lugar nele”.¹⁰ Eles afirmam que “para estruturar e dar forma e significado à nossa experiência de vida, todos dependemos de uma história em particular”,¹¹ e que cada um de nós, quer tenhamos consciência disso ou não, estamos ancorados e sustentados por alguma narrativa a que nos apegamos como verdadeira – todos têm uma história básica. 

A questão que se levanta é: o que há nessas histórias fundamentais e em seu caráter narrativo que lhes garantem condições de exercer esse tipo de influência sobre pessoas e sociedades inteiras?

Podemos encontrar pistas das respostas a essas perguntas na continuidade dos argumentos dos autores citados anteriormente. Segundo eles, essas “histórias fundamentais” são por princípio “normativas – elas definem pontos de partida, modos de ver o que é verdade – e elas são abrangentes, uma vez que fornecem um relato do todo”.¹² Elas nos informam sobre um conteúdo específico que deve ser recebido com submissão e humildade. Mas não é apenas o conteúdo dessas histórias que as tornam relevantes neste processo de orientar a experiência humana: a sua forma, a qualidade narrativa, dramática e até artística também cumprem este papel. Afinal, “esta é uma das funções da arte: apresentar o que as perspectivas estreitas e desesperadamente práticas da vida real excluem”.¹³

Em sua defesa a favor de uma abordagem “pós-propositivista” da teologia, que acrescenta diversas ferramentas interpretativas que enriquecem e potencializam o fazer teológico, Kevin J. Vanhoozer afirma que reconhecer a importância cognitiva das formas literárias que não são necessariamente declarações ou proposições sistematizadas e objetivas é um exercício fundamental.¹⁴ Para ilustrar o seu ponto, o autor usa justamente o exemplo do “meio narrativo” de comunicação, mostrando o que afirmamos no parágrafo anterior, a saber: que “o próprio estilo faz suas alegações, expressa seu próprio senso do que é importante” e de que “a forma literária não é separável do conteúdo filosófico, mas é, em si, parte do conteúdo – então, uma parte integrante da busca e da declaração da verdade”.¹⁵ Para ele, a estrutura narrativa das Escrituras prestam uma contribuição cognitiva e formativa singular, que vai muito além da mera transmissão de informação, e por isso merece nossa atenção. Nas palavras do autor:  

As narrativas fazem um tipo de sugestão completamente distinta: “Veja o mundo desta forma”. As narrativas vão além da crônica; elas configuram. Configuração é o ato de agrupar pessoas e eventos em um todo que faça sentido [...]. As narrativas explicam por que ocorreu determinado fato, situando-o em um enredo, não apresentando leis causais, mas enquadrando-o em uma história passível de ser compreendida. A narrativa é a forma assumida por uma compreensão distintamente histórica: certas coisas relativas à temporalidade e à teleologia humanas podem ser ditas apenas na forma da narrativa. Seguir uma história exige uma habilidade cognitiva diferente da capacidade de seguir um argumento, mas nem por isso deixa de ser uma postura cognitiva. Aliás, essa inteligibilidade propriamente narrativa tem mais afinidades com a sabedoria prática ou com o juízo moral do que com a razão teórica. [...] Então, ao redigir narrativas e, assim, revelarem um mundo, os autores também comunicam uma cosmovisão. [...] As narrativas não relatam simplesmente uma sequência de eventos, mas também sugerem, às vezes de forma explícita e por vezes implicitamente, como se deve receber a descrição.¹⁶

Conclui-se, então, que uma narrativa, como uma “história fundamental”, não é apenas um estilo literário, mas uma verdadeira ferramenta pedagógica, que comunica e forma de maneira eficiente o que de outro modo não poderia ser comunicado e formado no ser humano. C. S. Lewis afirma que os mitos (e aqui podemos identificar os mitos como “histórias fundamentais”) nos permitem tanto ver quanto experimentar “como concreto algo que de outra maneira pode ser compreendido apenas como abstração”; mas não apenas experimentar, como também se tornar participante do drama que se desenrola.¹⁷  

As Escrituras são a revelação especial de Deus para o Seu povo. Um livro inspirado por Deus e “útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça”, e que tem como finalidade fazer com que o “homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda a boa obra” (2Tm 3:16). É evidente, do ponto de vista cristão, que a Bíblia sagrada é um instrumento imprescindível para a formação humana segundo os parâmetros do Reino de Deus. Mas ela não faz isso de uma maneira qualquer – ela é como um diamante de várias faces, que reflete a vontade de Deus de várias maneiras. E todas essas maneiras estão imersas em um contexto narrativo único, um grande drama universal. Com todos os seus gêneros distintos, ela narra uma história. A história fundamental que está acima de todas as outras concorrentes. A história de como Deus vem redimindo consigo mesmo (sendo o ápice deste movimento a Encarnação, Vida, Morte e Ressurreição de Seu Filho) toda a criação desde o desastroso evento da Queda; de como o Criador tem escolhido homens e mulheres para fazerem parte de uma comunidade que reflita a Sua graça, misericórdia e justiça ao mundo, enquanto são transformados de glória em glória; a história de como todo este drama será levado a bom termo quando todo joelho se dobrar diante do Senhor Jesus, e toda língua confessar que Ele, e somente Ele, é o Senhor do Universo para toda a Eternidade. A própria forma como essa história é narrada nos faz um convite à participação, à imersão e à transformação. A Bíblia não é como um mosaico ou uma colcha de retalhos, onde cada seção, gênero literário, história, promessa, poesia, ordem e lições morais foram acrescentados de maneira aleatória. Não. Ela é “essencialmente coerente. Todas as partes da Bíblia – cada acontecimento, livro, personagem, ordem, profecia e poema – precisam ser compreendidos no contexto de um  enredo único”, do contrário, quando lemos a Bíblia de forma fragmentada e prosaica, “ignoramos a intenção de seu autor divino em moldar nossa vida por meio da história que ele conta”.¹⁸

Todas as partes da Bíblia – cada acontecimento, livro, personagem, ordem, profecia e poema – precisam ser compreendidos no contexto de um enredo único”, do contrário, quando lemos a Bíblia de forma fragmentada e prosaica, “ignoramos a intenção de seu autor divino em moldar nossa vida por meio da história que ele conta”.

Tendo lançado as bases, vamos agora às vias de fato. Iremos analisar três exemplos de como a abordagem teológica focada na natureza narrativa e formativa das Escrituras, que é a “história fundamental” da nossa fé, atua como ferramenta, em indivíduos e comunidades, para formar seres humanos cada vez mais semelhantes com o propósito para o qual foram criados: a honra e glória de Deus. 

Alimentando uma imaginação teleológica

Carregar pedras pesadas de um lado para o outro de um grande pátio, dia após dia, sem nenhum propósito ou finalidade. Apenas carregar, gastando doses cavalares de energia. Essa sem dúvida foi a imagem que mais me impactou na obra de Dostoiévski sobre o dia a dia dos condenados em uma prisão na Sibéria. O trabalho exaustivo, forçado e entediante, sem nenhum propósito estabelecido, pode ser comparado a uma verdadeira tortura.¹⁹ 

Somos seres teleológicos. A palavra grega “telos” remete aos primórdios da filosofia e da civilização grega. Na filosofia aristotélica, “telos” refere-se ao objetivo final para o qual uma entidade ou ação é naturalmente orientada. Os sinônimos que o Dicionário do Grego do Novo Testamento fornece são: “fim, final, término, finalidade”²⁰. Somos seres orientados para um propósito, uma finalidade, uma visão de boa vida (quer saibamos disso ou não), e esse propósito está inteiramente ligado com o caminho que trilhamos rumo ao que Aristóteles chamava de “eudaimonia”, que nada mais é do que o pleno florescimento humano. N. T. Wright inclusive atribui a Aristóteles o que ele chamou de “padrão triplo da transformação do caráter”. Segundo o autor, “primeiro há o alvo, o telos, o final que almejamos; depois, os passos necessários para alcançá-lo, os pontos fortes de caráter que nos capacitarão; e há o processo de treinamento moral que transformará os pontos fortes em hábitos, em segunda natureza”.²¹ 

Portanto, segundo o autor, o primeiro passo para que alcancemos o que Aristóteles denominou “eudaimonia” é estabelecer um alvo concreto.  Uma imagem ou um padrão de boa vida, que representa o que é ser verdadeiramente humano. Como cristãos que confessam a autoridade das Escrituras, esperamos que esse “alvo” esteja revelado nas páginas da nossa Bíblia. Mas será que a maneira como temos lido,  interpretado e ensinado as Escrituras tem contribuído para a formação de uma imaginação teleológica coerente com a revelação bíblica?

Se a nossa relação com a Bíblia se limita à extração de verdades universais, proposições práticas, conselhos ou listas de regras e dicas que podem ser aplicadas no dia a dia para que eu seja uma pessoa melhor, temo que a resposta seja negativa. Essa estrada, trilhada com muito esforço a partir de tentativas moralistas de definir cada passo da vida e cada decisão que se impõe dentro de um sistema de permissões, concessões, negações, regras de comportamento e etc, fatalmente nos leva a um fim muito diferente daquele para o qual fomos criados, ainda que mediante grande esforço. Isso é, na melhor das hipóteses, o que o nosso Mestre ilustrou como “coar o mosquito e engolir o camelo”. 

Mas, se nossa abordagem for humilde e diligente o suficiente para permitir que a Bíblia se revele, por meio da ação do Espírito Santo, da maneira como ela se propõe a fazer, ou seja, aliando conteúdo e forma, creio que obteremos maior sucesso em adquirirmos uma mentalidade bíblica robusta, que inunda toda a nossa vida e imaginação com aquilo para o qual fomos criados: a honra e glória de Deus. A essa altura, vale a pena relembrarmos as palavras de Vanhoozer para reforçar ainda mais o argumento: “A narrativa é a forma assumida por uma compreensão distintamente histórica: certas coisas relativas à temporalidade e à teleologia humanas podem ser ditas apenas na forma da narrativa”.²² A abordagem teológica narrativa não apenas permite que compreendamos o que está sendo revelado na Bíblia de uma maneira melhor, mas forma e alimenta a nossa imaginação teleológica ao nos inserir na história, cativando os nossos afetos, enquanto nos convida a sermos participantes de um drama que se desenrola, inundando a nossa experiência humana de propósito e significado, dando-nos um senso de finalidade que de outra maneira não seria tão rico e transformador. A imaginação é “o poder da visão sinóptica: a capacidade de sintetizar elementos heterogêneos em um todo coeso. A imaginação é a faculdade cognitiva que nos permite enxergar como conjunto o que pessoas sem imaginação enxergam apenas como peças não relacionadas”.²³ Somos seres teleológicos, e imaginar teleologicamente é fundamental para que não cedamos à tentação moralista de ficar gastando a nossa energia carregando pedras por aí.

se nossa abordagem for humilde e diligente o suficiente para permitir que a Bíblia se revele, por meio da ação do Espírito Santo, da maneira como ela se propõe a fazer, ou seja, aliando conteúdo e forma, creio que obteremos maior sucesso em adquirirmos uma mentalidade bíblica robusta, que inunda toda a nossa vida e imaginação com aquilo para o qual fomos criados: a honra e glória de Deus.

Vícios e virtudes

Qual seria a consequência de uma comunidade carente de histórias que determinem o seu “telos”? Ou melhor, que tipo de pessoas seriam formadas em uma comunidade onde, para além da ausência de uma “história fundamental” unificada, existe uma disputa entre metanarrativas que pleiteiam um lugar de destaque?

O filósofo Kent Dunnington, em sua robusta obra sobre as perspectivas teológicas da adicção humana, afirma que “agora, todos vivemos em uma sociedade adicta. E a adicção profunda é a doença sagrada de nosso tempo”.²⁴ E mais adiante ele conclui que “a adicção pode ser interpretada como uma resposta moderna disponível à falta de qualquer consenso comum acerca do telos da ação humana”.²⁵ Segundo o autor, a perda moderna da teleologia se dá pelo fato de que a cultura moderna é caracterizada pela proliferação de visões acerca do que constitui a boa vida para os seres humanos. Consequentemente, a paisagem moral em que nos encontramos nos torna livres para escolher uma dentre as várias possibilidades de narrativas que mensuram o que seria o pleno exercício de “ser” humano. O autor conclui da seguinte maneira:

Com o fracasso do projeto Iluminista em estabelecer uma base puramente racional e, portanto, universal para determinar a estrutura normativa da vida humana, as pessoas modernas herdaram fragmentos de concepções de tradições passadas sobre o telos da vida humana sem possuir uma forma estabelecida de decidir entre essas várias visões. Nossa cultura é, assim, uma cultura em que a decisão de seguir um modo de vida à custa de outro só pode ser entendida como uma escolha arbitrária, uma afirmação existencial do eu privada de qualquer fundamento lógico definitivo. As pessoas modernas não sabem o que fazer porque sabem muito bem quantas coisas poderiam fazer.²⁶

Portanto, com base no que dissemos até aqui, a resposta à pergunta com que iniciamos a presente discussão poderia ser algo como: uma comunidade carente de uma história fundamental compartilhada e robusta forma pessoas com uma imaginação teleológica defasada; essa defasagem, aliada à variedade de opções teleológicas disponíveis, gera uma confusão moral lancinante, cuja alternativa moderna muitas vezes é o vício.

O vício, como entendemos, são aqueles hábitos morais e comportamentais que prejudicam ou desfiguram o ser humano. Há quem  diga que o vício é o contrário da virtude, mas é melhor afirmar que ele é a sua distorção. A virtude, por sua vez, são hábitos de mente e comportamento que potencializam a verdadeira humanidade, elevando o potencial do florescimento humano – pelo menos é assim que propunha Aristóteles. Para ele, os passos rumo ao telos envolviam “exercitar os pontos fortes do caráter que, se desenvolvidos, contribuíam para a formação gradual do ser humano frutífero”.²⁷ A esses pontos fortes de caráter Aristóteles dava o nome de “areté ethikê”, e mais tarde os latinos usaram a  palavra “virtus” para expressar a mesma ideia.²⁸ N. T. Wright defende que havia uma visão ampla e compartilhada no mundo antigo sobre o papel, o significado e a formação das virtudes na vida humana – visão esta que foi herdada e adaptada por Paulo e que pode ser encontrada nas páginas das nossas bíblias de maneira adaptada aos valores e aos desdobramentos teológicos e filosóficos que são frutos da visão de mundo definida pelo Evangelho de Jesus Cristo.²⁹

A intenção aqui não é traçar os pormenores das diferenças e semelhanças entre as duas propostas. Antes, o que quero mostrar com o argumento é que se a ausência de uma história normativa que forme uma imaginação teleológica comum é um dos motivos para termos uma sociedade de viciados, a alternativa lógica, que pavimenta diante de nós um esperançoso caminho, é apenas uma: que uma metanarrativa robusta, uma leitura da Bíblia como uma história fundamental que pode, como dissemos, inundar a nossa imaginação com uma teleologia poderosa o suficiente para orientar a nossa vida a um telos específico, que é a existência para a honra e glória de Deus. Essa história deve ser contada e ensinada exaustiva e apaixonadamente para formar pessoas virtuosas, que florescem em plena humanidade para a glória de Deus. Em outras palavras, as histórias a que nos apegamos têm o poder de nos orientar para o tipo de visão de boa vida que elas contam, moldando nosso caráter até o nível da virtude – ou do vício.

Aqui, nos deparamos com uma boa e uma má notícia diante do cenário atual da igreja. A má notícia pode ser resumida no diagnóstico que o sociólogo Christian Smith faz: segundo o autor, a religião cristã americana está adulterada pelo que ele chama de “deísmo moralista terapêutico”, um tipo de pseudo religião frouxa que tem como dogmas uma visão rasa da intenção criacional de Deus para o ser humano, uma relação impessoal com Deus no que diz respeito à vida cotidiana e uma preocupação terapêutica com o bem estar pessoal que deve ser satisfeito pela religião. O problema dessa abordagem é que cada um de nós possui anseios terapêuticos diferentes e, portanto, a nossa busca por uma satisfação pessoal será plural. Essa pluralidade tem destituído as comunidades de fé de uma metanarrativa comum que as oriente, enquanto faz propostas moralistas sobre uma forma certa de se viver. As consequências são desastrosas do ponto de vista moral.³⁰ 

E a boa notícia é: podemos nos apegar à verdadeira Boa Notícia, a história de como Deus tem redimido consigo o mundo na pessoa de Jesus Cristo para nos tornarmos o tipo de seres humanos que fomos criados para ser. Podemos estudar, ensinar e demonstrar essa história em nossas comunidades de fé enquanto pregamos diligentemente a Palavra de Deus, fazendo resistência aos movimentos moralistas e terapêuticos que têm bebido de uma enxurrada de metanarrativas alternativas e que tem enfraquecido a imaginação teleológica das comunidades, e, consequentemente, seu crescimento em Virtude.

E a boa notícia é: podemos nos apegar à verdadeira Boa Notícia, a história de como Deus tem redimido consigo o mundo na pessoa de Jesus Cristo para nos tornarmos o tipo de seres humanos que fomos criados para ser.

Missão

Meu sobrinho tem três anos, e se você pretende que ele faça algo a contragosto, existe uma estratégia muito simples: dê-lhe uma missão. Envolva-o com uma narrativa onde ele precisa executar uma tarefa, estimule a sua imaginação e veja o pequeno se dedicando inteiramente àquilo que antes ele não queria fazer. Faço essa breve divagação pessoal para introduzir o nosso próximo ponto: as narrativas têm o poder singular de motivar e envolver pessoas em uma missão específica.

Ao lermos o Gênesis, vemos que o Criador deu ao homem e à mulher uma missão que, conforme cremos, é parte formativa da sua identidade como ser humano e da sua vocação: “Sejam férteis, multipliquem-se! Exerçam autoridade sobre toda a criação como Mordomos Reais, cuidando e trabalhando para que tudo seja desenvolvido e potencializado para a Minha honra e glória”. É claro que as palavras foram adaptadas aqui, mas você pode se informar com mais exatidão no livro de Gênesis capítulo 1. O ponto é: no cerne do que significa ser humano, no primeiro capítulo da história fundamental que a Bíblia narra, uma missão é dada, um telos é estabelecido. As palavras do Gênesis gritam: “sejam o tipo de seres humanos que dominem com justiça e amor sobre a criação, envolvendo tudo e todos em um movimento de louvor e adoração ao Criador”. Wright resume essa vocação como “Sacerdócio Real” e defende que cada novo capítulo que se desenrola no enredo da narrativa bíblica revela como podemos participar desta missão e vocação.³¹ 

Mas a narrativa não apenas atribui à missão um telos específico: ela também motiva aquele que tem a imaginação inundada e formada por seu poder. Assim como meu sobrinho, aqueles dois discípulos no caminho para Emaús puderam experimentar o poder que a abordagem teológica narrativa das Escrituras tem em nos motivar para a missão. No capítulo 24 do livro de Lucas, vemos dois discípulos, desolados pela morte do Senhor, caminhando e conversando a respeito das coisas que aconteceram na última sexta feira. Enquanto caminhavam, um “viajante misterioso” lhes perguntou o motivo da preocupação. Depois da pessimista e frustrada resposta dos viajantes, que esperavam que Jesus seria aquele que restauraria o Reino a Israel, mas que testemunharam a sua aparente derrota diante do Império Romano, aquele Viajante começa a lhes contar uma história: “começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lc 24:25-27). Jesus explica aos discípulos que o que acontecera no Calvário não era um evento isolado na história, e que aquela circunstância de aparente derrota e frustração não era o verdadeiro contexto da história que estava sendo escrita naquele momento. É como se Jesus dissesse: “existe uma metanarrativa acima da narrativa. Uma circunstância superior acima dessa que vos aflige”. Jesus convida os discípulos a observarem a história como um todo coeso e coerente, não se apegando a um ponto aparentemente negativo. Depois disso, entraram para jantar, e depois de se revelar, o Mestre imediatamente desapareceu da presença deles. O resultado? Aqueles homens voltaram imediatamente para Jerusalém, percorrendo uma distância razoável pela noite (o versículo 13 afirma que a cidade de Emaús ficava a cerca de 11 quilômetros de Jerusalém) para anunciar que o Senhor está vivo. A missão estava, então, sendo cumprida.

Há um detalhe intrigante no texto que é precioso para a nossa reflexão. Assim que Jesus desapareceu da presença dos discípulos, eles se entreolharam e disseram: “Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, enquanto nos expunha as Escrituras?”. Esse é o poder da narrativa. É isso que acontece quando humilde e diligentemente permitimos que o Senhor nos revele a Sua história por meio da Bíblia. A metanarrativa nos cativa, nos inflama, enche a nossa mente de imaginação teleológica e de motivação apaixonada e cognitivamente embasada para a missão. E quanto mais nos envolvemos de forma saudável com com essa missão/vocação, mais plenamente humanos nos tornamos.

A metanarrativa nos cativa, nos inflama, enche a nossa mente de imaginação teleológica e de motivação apaixonada e cognitivamente embasada para a missão. E quanto mais nos envolvemos de forma saudável com com essa missão/vocação, mais plenamente humanos nos tornamos.

Conclusão

A definição que usamos de teologia bíblica, encontrada no início deste texto, propõe uma interpretação que leve em conta o caráter narrativo das Escrituras e que seja “em e para a igreja”.³² Destacamos que essa abordagem, apesar de não ser a única, carrega consigo um potencial enorme de formar indivíduos e comunidades que floresçam em sua humanidade em direção àquilo que Deus intencionou originalmente. A leitura da Bíblia como a metanarrativa que sustenta a visão de mundo cristã, não apenas como um livro-texto de pressupostos e proposições teológico filosóficas, não apenas informa intelectualmente, mas também forma uma imaginação teleológica que é fundamental para o amadurecimento cristão. 

Mas voltar à definição básica de teologia bíblica que usamos e não falarmos sobre o segundo aspecto apresentado por ela é perder o fio da meada. Além de “narrativa”, o foco da teologia bíblica é sempre cristocêntrico. Jesus Cristo é o centro da história e o eixo central das Escrituras. Em seu pesado discurso contra os judeus que queriam tirar-lhe a vida, Jesus diz: “Examinai as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim” (Jo 5:39). É crucial, portanto, que enquanto estudamos a Bíblia como  metanarrativa formativa de Deus para o seu povo, encontremos e nos submetamos a Cristo, pois, definitivamente, uma coisa não existe sem a outra.

Lewis, cuja influência foi um dos maiores motivos para a elaboração deste ensaio, com certeza tem palavras melhores do que as minhas para uma conclusão digna de nota. Sua visão do “mito” como uma poderosa narrativa capaz de lançar os fundamentos teleológicos e morais de uma sociedade são preciosos. Portanto, deixo com ele as palavras finais, a fim de que nos lancemos em uma reflexão final mais humilde e profunda sobre tudo o que foi dito até então:

Ora, assim como o mito transcende o pensamento, a encarnação transcende o mito. O cerne do cristianismo é um mito que também é um fato. O velho mito do deus que morre, sem deixar de ser mito, desce do céu da lenda e da imaginação para a Terra da história. Ele acontece – em uma data específica, em um lugar específico, seguido por consequências históricas definíveis. [...] Ao tornar-se fato, ele não deixa de ser mito; o milagre é esse. [...] A fim de sermos verdadeiramente cristãos, devemos tanto reconhecer o fato histórico quanto receber o mito (que se tornou fato), com a mesma aceitação imaginativa com que acolhemos todos os mitos.
[...] Aqueles que não sabem que este grande mito se tornou Fato quando a virgem concebeu são, realmente, dignos de pena. [...] Não devemos ter vergonha do brilho mítico que irradia de nossa teologia. [...] Não devemos, em falsa espiritualidade, refrear nossa aceitação imaginativa. Se Deus escolhe ser mitopeico – e não é o céu em si um mito? – devemos nos recusar a ser mitopáticos – afetados pelo mito? Afinal, este é o casamento do Céu e da Terra: o Mito Perfeito e o Fato Perfeito, os quais exigem não só nosso amor e nossa obediência, mas também nossa admiração e nosso deleite, e que se dirigem tanto ao selvagem, à criança e ao poeta em cada um de nós quanto ao moralista, ao intelectual e ao filósofo.³³

É crucial, portanto, que enquanto estudamos a Bíblia como metanarrativa formativa de Deus para o seu povo, encontremos e nos submetamos a Cristo, pois, definitivamente, uma coisa não existe sem a outra.

 

 

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Referências

Alexander, T. D.; Rosner, B. S. Novo Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Editora Vida, 2009

Bartholomew, C. G.; Goheen, M. W.; O Drama das Escrituras: encontrando o nosso lugar na história bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2017

Dostoiévski, Fiódor. Memórias da casa dos mortos. São Paulo: Martin Claret, 2019.

Dunnington, Kent. Vício e Virtude: a adicção sob uma perspectiva teológica. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil; São Paulo: Pilgrim, 2022.

Lewis, C. S. Deus no banco dos réus. 1, ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2018.

__________ . Sobre Histórias. 1. ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.

Mcgrath, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. 1, ed. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

Ortiz, Pedro. Dicionário do grego do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

Ryken, Philip. A Inerrância e o padroeiro do evangelicalismo: C. S. Lewis e a Escritura Sagrada. In. O Racionalista Romântico: Deus, vida e imaginação na obra de C. S. Lewis. 1. ed. Brasília: Editora Monergismo, 2017.

Smith, C.; Denton, M. L. Soul Searching: the religious and spiritual lives of American teenagers. Nova York: Oxford University Press, 2005.

Vanhoozer, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia cristã. São Paulo: Vida Nova, 2016.

Wright, N. T. Eu creio, e agora?: por que o caráter cristão é importante. 1. ed. Viçosa: Editora Ultimato, 2012.

 

* Ensaio classificado em 2º lugar na 2ª Chamada do Radar ABC².

1. Lewis, 2018. p. 31.

2. Ibidem, p. 42. 

3. Ibidem, p. 35.

4. Ryken, 2017. p. 64. 

5. Ryken, 2017, p. 65.

6. McGrath, 2005, p. 209.

7. Ibidem.

8. Alexander; Rosner, 2009, p. 13.

9. Ibidem. 

10. Bartholomew; Goheen, 2017. p. 23.

11. Ibidem.        

12. Ibidem, p. 26.

13. Lewis, 2018. p. 18.

14. Vanhoozer, 2016. p. 293.

15. Ibidem, p. 297.

16. Ibidem, p. 297-299.

17. Lewis, 2018.

18. Bartholomew; Goheen, 2017, p. 14.

19. Dostoiévski, 2019.

20. Ortiz 2008, p. 277.

21. Wright, 2012, p. 44-45.

22. Vanhoozer, 2016, p. 297.

23. Ibidem, p. 296.

24. Dunnington, 2022, p. 132.

25. Ibidem, p. 138. 

26. Ibidem, p. 144.

27. Wright, 2012, p. 45.

28. Ibidem.             

29. Ibidem, p. 47.

30. Smith; Denton, 2005.

31. Wright, 2012, p. 81.

32. Alexander; Rosner, 2009, p. 13.

33. Lewis, 2018, p. 85-86.

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