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ENSAIO

Desespero da finitude*

A doença no espírito por trás de cada indivíduo na sociedade do cansaço

Cássia Fernandes|

06/10/2023

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Cássia Fernandes

Teóloga em formação pelo Seminário Presbiteriano Renovado de Cianorte, pós graduanda em Ciências da Religião pela UFJF com ênfase em Filosofia da Religião. Pesquisadora de Agostinho e visa contribuir com a interação “Fé e Razão” por meio de suas pesquisas.

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Como citar

Fernandes, Cássia. Desespero da finitude: a doença no espírito por trás de cada indivíduo na sociedade do cansaço. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Introdução

Soren Aabye Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarques do século 19, foi um dos grandes pensadores modernos a enfatizar a subjetividade humana, marcando consideravelmente a filosofia e o pensamento ocidental. A sua filosofia não busca um sistema para explicar um sujeito objetificado¹ e, por isso, certamente ele estava à frente de seu tempo. Ele buscou ter um olhar mais subjetivo acerca do ser humano, retirando-o de uma posição de mero pertencente a uma espécie para situá-lo como definidor de sua existência. Seu foco no indivíduo trouxe uma nova perspectiva, mais especificamente uma nova interpretação diante do paradoxo existência e subjetividade, e permitiu um aprofundamento no conhecimento sobre os elementos constitutivos do ser humano, como o desespero e a angústia.

O avanço tecnológico decorrente da revolução industrial² poderia proporcionar mais tempo de descanso e contemplação, uma vez que as máquinas é que seriam as responsáveis por tarefas repetitivas e mecânicas, e isso seria o início do tempo em que a humanidade se aliviaria das exigências de trabalho com cargas horárias extremas; todavia, a história nos mostra que não foi bem esse o curso que se tomou.

A revolução tecnológica nos apresentou inúmeras ferramentas para aumentar a produtividade e facilitar o trabalho, porém, ainda é possível ver pessoas sofrendo de doenças psicossomáticas derivadas da exaustão e do esgotamento.³ Os sistemas de comunicação, inteligências artificiais, algoritmos, internet, dentre outros, nos poupam tempo, energia, além de proporcionar uma vida mais ágil e de fácil deslocamento como nunca antes na história. Entretanto, cada vez menos estamos desfrutando de tempo de qualidade, um tempo dedicado a valores que transcendem o próprio chronos, e isso pode ser chamado de desespero da finitude. 

Há dois séculos, o filósofo Kierkegaard já pronunciava que o homem é uma síntese de finitude e infinitude, e que se inclinar inteiramente ou demasiadamente para apenas um desses polos é a má relação da síntese, o que é chamado de desespero.⁵ Além disso, a finitude e a temporalidade do homem estão em contraste com a infinitude e o kairós da relação que o estabeleceu como espírito.⁷ Nesse sentido, a sociedade de hoje enfrenta a exaustão porque mergulha inteiramente e cada vez mais na dimensão natural, na vida rotineira e na grande demanda imposta pela positividade, de que se tem uma obrigação fundamental de se conquistar bens materiais, crescimento financeiro, pois é isso o que, para ela, significa ter sucesso. Assim, a carência que se pode notar nos dias atuais, segundo o conceito de desespero kierkegaardiano, é justamente de espiritualidade, liberdade de transcender, encontrar-se, entender sua identidade enquanto indivíduo e deparar-se com seu verdadeiro eu⁸ por meio da fé. É justamente sobre isso que trataremos a seguir. 

cada vez menos estamos desfrutando de tempo de qualidade, um tempo dedicado a valores que transcendem o próprio chronos, e isso pode ser chamado de desespero da finitude.

A análise proposta nesse texto é dos efeitos do positivismo na sociedade do século 21, apresentados pelo autor Byung Chul Han em sua obra A sociedade do Cansaço, através das lentes de Kierkegaard e de seu conceito de desespero da finitude explicitado na obra A doença para a morte: uma exposição psicológico-cristã para edificação e despertar. Em um mundo capitalista, do desempenho, da tecnologia, de informações instantâneas, das redes sociais e da influência virtual ou midiática da vida ativa, pode-se ver a busca pelo sentido de cada indivíduo alterada.⁹ A pergunta que surge, então, é: será que sabemos administrar todas as influências que recebemos desenfreadamente no dia a dia? A verdade é que a compreensão profunda do que é eterno e do que é temporal nos parece cada dia mais comprometida. 

Desde já, é preciso destacar que este artigo comparativo entre esses dois grandes filósofos e autores, e entre o pensamento de cada um sobre a sociedade de seu tempo, exige uma grande consideração com as especificidades da cultura e contexto histórico de cada pensador examinado. Porém, este estudo permite unir as ideias desses dois grandes pensadores mesmo diante das diferenças históricas, mas que são passíveis de comparação em seus aspectos fundamentais.

Existencialismo em Kierkegaard

O ponto de partida para explicar a definição de ser humano por meio do conceito de síntese de finitude e infinitude, de eterno e temporal, de possibilidade e necessidade, do anímico e corpóreo e do encontrar-se a si mesmo por meio da fé, será realizado pela determinação ético-religiosa,¹⁰ que examina o ser humano tornando-se indivíduo quando realiza a síntese do finito e infinito em si mesmo.¹¹ 

O ser humano é espírito (em potência). Espírito (em ato) é o si-mesmo. O si-mesmo é uma relação que se relaciona a si mesma. A relação em si ainda não é o si-mesmo. O si-mesmo só se constitui quando a relação se relaciona a si mesma. O ser humano é uma síntese de polaridades descrita, neste ponto, como sendo entre infinito e finito, temporal e eterno, e liberdade e necessidade. Uma síntese enquanto relação entre dois ainda não é o si-mesmo. O si-mesmo é o terceiro que surge da união das polaridades quando a relação se relaciona a si mesma. O si-mesmo é uma relação derivada, estabelecida por um outro e que, ao se relacionar a si mesma, se relaciona a este outro que estabeleceu toda a relação.¹²

Para o autor, o homem é espírito, e o espírito é caracterizado como um voltar-se para si, não no sentido de refletir sobre a própria vida, mas de uma relação consigo mesmo, e nisso consiste precisamente o eu.¹³ Esse voltar-se a si é em suma conhecer sua Imago Dei,¹⁴ o que pode ser mais bem compreendido como “voltar-se para a fonte que o estabeleceu” e o faz ser. Em outras palavras, é ter consciência da sua identidade originária e do que o constitui.

Mas não só isso, “o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade; é, em resumo, uma síntese”.¹⁵ Nota-se aqui o paradoxo e a dialética da existência, demonstrando que o eu não é somente finito, com escolhas limitadas, com agendas naturais, buscas por capital, sucesso e bens materiais, mas também infinito, que é o espiritual, por assim dizer, a fé, amor e principalmente a relação com Deus como a fonte que dá sentido ao eu.¹⁶ Como aponta Feijoo e Protásio, “o finito (concreto) delimita a existência, e o infinito (ideal) ilimita o homem, abrindo-o para todas as possibilidades”.¹⁷

Kierkegaard afirma que o corpo é temporal e a alma, eterna, e aquilo que mantém ambos unidos é o espírito; e aqui novamente vemos o paradoxo entre o infinito e o finito: a alma eterna, que pode relacionar-se com Deus (infinito e eterno) e o corpo, temporal, concreto e vivente deste mundo. O espírito, o eu, é aquele que tem de realizar um equilíbrio entre ambas as partes. Porém, o viver neste mundo não é e nem deve ser encarado como profano ou como uma prisão da matéria, mas sim como uma das partes necessárias e constituintes da existência humana, não sendo esta a única que o constitui e nem o fundamento da sua existência.

Mas não só isso, "o homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade; é, em resumo, uma síntese".

Esse eu não é apenas união em si do eterno e do temporal, mas é ter o elo dessa união realizado por um terceiro, que une alma e corpo.¹⁸ Quando o homem reconhece a si mesmo numa atitude que reconhece tanto o finito quanto o infinito em sua existência, este se encaminha para desejar estabelecer a síntese e, então: 

Na relação entre dois, a relação é o terceiro como unidade negativa, e os dois se relacionam com a relação; assim, sob a determinação de alma, a relação entre alma e corpo é uma relação. Se, ao contrário, a relação relaciona-se consigo mesma, então essa relação é o terceiro positivo, e este é o si-mesmo.¹⁹

A união entre o finito e infinito ocasiona um terceiro, o espírito. O terceiro positivo de que o autor fala é quando ocorre o autorreconhecimento de si, ou seja, quando temos a síntese estabelecida e nos reconhecemos como Imago Dei. Nesse sentido, a forma pela qual o indivíduo irá exercer o seu espírito, o seu eu, diferencia-se, diante da sua atitude perante a vida. 

Olhando para a tradição judaico-cristã, a Bíblia apresenta na criação do homem e, no cenário posterior, descritos em Gênesis 1–3, a relação entre esses dois polos. Exploremos, então, o ponto inicial da existência humana por intermédio da análise dos textos bíblicos. Em Gênesis 1.1-2 está escrito: “No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”.²⁰ 

No princípio, criou Deus o céu e a terra; o atemporal, kairós, criando o temporal, o chronos. E o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas; infinito sobre o finito. Atentando para a criação do homem, o texto bíblico diz:E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26). A humanidade foi feita em carne, no mundo material, mas dotada de espírito, que é o fôlego de Deus. Homem e mulher são criados em perfeita harmonia de síntese finitude/infinitude, pois estavam em relação constante com a fonte que fundamentava o seu eu, e esta é Deus, como em Gênesis 2.7 afirma: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito um ser vivente”.

Então, pode-se dizer que o sentido da vida humana só se dá na resposta do indivíduo a uma sintonia entre os dois polos que o formam, porém, o grande problema que circunda a busca pelo sentido está em procurar no finito e temporal aquilo que só é possível encontrar no infinito e atemporal. O finito por si só jamais alcança o infinito, e a única possibilidade é o infinito vir ao finito. Em Adão, a despolarização acontece mediante o que a teologia vai chamar de Queda. Na união de Adão com Deus, havia sintonia entre o finito e infinito, união de si consigo mesmo e reconhecimento da sua identidade como Imago Dei, bem como união e amor puro de si com o próximo [Adão e Eva], pois estavam ligados a fonte do amor, que era Deus; havia também união de si mesmo com a natureza de forma saudável, pois fazia parte da essência [espírito] do homem cultivar e cuidar de toda a criação. 

Esse cenário bíblico, se analisado a partir de uma perspectiva agostiniana da queda e descrita com os termos kierkegaardianos, pode ser apresentada como o salto de Adam;²¹ da humanidade para o desespero. Acontece a desunião entre infinito e finito, homem e Deus, homem e seu próximo, homem e natureza, não só no primeiro homem, mas em todos que viriam após a Queda, necessitando de um mediador para redenção. Adão e Eva cometeram algo – pecado original – que se tornou alvo de grandes debates teológico-filosóficos nas obras de Agostinho, Pelágio e Kierkegaard. Para este último, cada indivíduo possui no campo da possibilidade a opção de não cair em desespero, não condicionando o desespero como necessidade de cada indivíduo. 

Independente da vertente, ambos os posicionamentos têm muitas questões a responder, mas a ênfase aqui é analisar especificamente o desespero daquele que se lança inteiramente no finito e, por isso, se afasta, por assim dizer, da formulação de sua síntese, do si-mesmo. Quando analisamos o pecado original a partir do pensamento agostiniano sobre Criação, Queda e Redenção com os termos kierkegaardianos de imediatidade,²² mediação e imediatidade mediada, vemos seguir a linha de: criação = imediatidade; queda = mediação; redenção = imediatidade mediada. Os texto de Gênesis 3.23,24 aponta para o seguinte:

O Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado. E havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da árvore da vida.

Após a Queda, o desejo é retornar a imediatidade, à perfeita relação da síntese, voltar-se a Deus, mas esse caminho não é possível para o homem que tenta por si só chegar a esse lugar ㅡ e vemos essa tentativa na narrativa da Torre de Babel,²³ na qual eles desejavam chegar a Deus, ao eterno, ao infinito por si mesmos, mas esse plano é logo frustrado. Um exemplo prático disso é uma criança que perdeu a inocência, descobriu como mentir para os pais e, portanto, jamais retornará à completa inocência de não saber como mentir; então, faz-se necessário uma nova realidade de imediatidade que seja mediada: após uma boa conversa com os pais e pelo exemplo destes, a criança entenda o que é certo e errado, tome consciência de seu estado de erro e, com a ajuda e condução dos pais, que são seus mediadores até a ação correta, aprende a constantemente optar pela verdade e honestidade por saber que é o certo. 

Em muitos casos, associa-se redenção a retorno, mas, na verdade, um significado melhor seria ressignificação, pois um ser humano que não está em relação com Deus perdeu o si-mesmo e, portanto, necessita de uma mediação pela fé para ressignificar sua existência, proporcionando-lhe sentido novamente. Como afirma o autor Jonas Roos

Vivemos o paradoxo de querer nos infinitizar a partir da finitude, querer nos eternizar a partir da temporalidade, caminhamos em direção a um horizonte que nunca chega, tentando preencher um vazio infinito a partir da finitude.²⁴

Por isso a sociedade está cansada, pois procura desesperadamente preencher sua necessidade do eterno com elementos puramente temporais.

O desespero da finitude

A finitude, carecendo de infinitude e se relacionando com essa ausência, comprime e limita o indivíduo sob esse desespero, e ele vive agora atribuindo valor descomunal e um tanto quanto desequilibrado às coisas indiferentes, bem como vive das exigências morais e sociais, e esquece-se de que sua carência real é concretizar-se espiritualmente. O si-mesmo escoa por entre seus dedos enquanto o tal se fecha no finito, e cada vez mais se afasta de sua identidade,tornando-se mais um número. Essa má relação da síntese é identificada por uma característica comum, o mundanismo, uma rendição a ações exaustivas frente à vida. 

Esse é o tipo de pessoa que, como diria Paul Tillich (1886-1965),²⁵ atribui incondicionalidade ao condicional e, para tal, o trabalho, o dinheiro e o sucesso são o fim pelo qual existe, e o fracasso ou a possibilidade de fracassar em qualquer uma dessas coisas é perder totalmente o sentido de sua vida. Trata-se de alguém que está tão ancorado na temporalidade que se perde à medida em que ela se esvai, e isso, para Tillich, é justamente idolatria. E essa pessoa, presa à falácia do capitalismo, aprende que o fundamento da vida são suas conquistas, quando, na verdade, o fundamental da vida não é conquistado, mas recebido como dádiva: amar e ser amado.

No livro A morte de Ivan Ilitch,²⁶ Tolstói nos conduz a uma jornada a respeito do sentido da vida, e o desespero da finitude é visível em Ivan Ilitch, personagem principal. Essa jornada nos faz perguntar para que vivemos, para que trabalhamos, e também qual a função da família e dos amigos, entre outros questionamentos. Ivan está diante da morte iminente, mas é um ser humano que atingiu todas as exigências que se espera de um adulto: tem uma profissão, é um juiz renomado, se casa e tem filhos, possui amigos e vive o que acredita ser uma vida decente e feliz. 

O ponto principal da vida de Ivan, que é justamente sobre o que Tolstói quer que eu e você reflitamos: para a sociedade, ele é o modelo de homem bem-sucedido e feliz, mas, sob o verniz do que se chama de perfeição em sua vida, há uma profunda ausência de propósito e sentido, de modo que ele é guiado apenas pela ambição e pelo padrão de sucesso até se deparar com a morte e perceber que gastou todos os seus dias sem ao menos se aproximar do que seria verdadeiramente um propósito para sua existência.

Comparando friamente, Ivan Ilitch é um retrato do homem contemporâneo que está no desespero da finitude. O mesmo só mantém relações que o proporcionem algo material e se esquece de que os verdadeiros valores de uma relação estão no âmbito transcendental, como: amor, fidelidade, companheirismo e afins. Tornando-se um consumidor de relações, descarta valores eternos em detrimento do egoísmo e da autossatisfação, bem como se propõe a gastar seus dias, seu tempo e todas as suas forças somente no que lhe rende capital e no que é apresentado na mídia como a ‘vida dos sonhos’, mas sem perceber que isso está longe do que é realmente viver; na verdade, isso é vivenciar a morte.²⁷ 

Comparando friamente, Ivan Ilitch é um retrato do homem contemporâneo que está no desespero da finitude.

O homem que está em desespero e, por assim dizer, inclina-se para a finitude, esquecendo-se de que é espírito composto da relação entre necessidade e possibilidade, ainda não encontrou liberdade²⁸ e, por isso, está preso ao campo da necessidade e, assim como Ivan, corre o risco de chegar ao fim da vida e perceber que nunca se fundamentou em critérios que dão verdadeiro valor à sua existência. 

Liev Tolstói nos conduz ao sentimento do que é desesperar-se na finitude por meio dos sofrimentos e das angústias vivenciados por Ivan Ilitch no fim de sua vida, um momento no qual ele procura intensamente um significado real para que sua existência não tenha sido baseada apenas em leis e padrões financeiros. Todavia, o protagonista vê que alicerçou toda sua vida em mediocridade.²⁹

O indivíduo cansado na sociedade da finitude

O homem que se desligou de seu autor torna-se um ser apático espiritualmente, mesmo que de maneira inconsciente, e pode até desejar que seu eu seja sintetizado e concretizado, mas a carência da eternidade que ocupa profundamente seu interior o faz buscar essa síntese de forma desoladora na multidão, na massa, em qualquer coisa natural, esquecendo-se do si-próprio, do seu espírito e, entre tantas vozes, perdendo-se e passando a não se preocupar mais com seu nome divino, sua identidade originária.³⁰ Ser si-próprio é uma afrontosa realidade em meio à abstração da massa, que impõe a ‘cartilha capitalista’ como o padrão de vida desejosa; é por isso que, para esse indivíduo, torna-se confortável e atraente ser apenas mais um na multidão.

E então, passa a ser bem-visto, como erguendo-se na sociedade enquanto está de fato disfarçando enganosamente seu desespero. Acaba por ser considerado um referencial de vida, o que lhe dificulta enxergar sua situação. Então, esse desespero inconsciente o afunda profundamente na finitude, fazendo com que seu status ante a sociedade lhe seja algo de muito valor e prestígio. A espiritualidade é a última coisa que lhe ocorre, afinal, não há tempo a se perder com subjetividade. Mas não é essa a maior perda? Isto é, a de perder a si-próprio? Sua situação, para Kierkegaard, é esta: “o que quer que tenhas ganhado ou perdido, para ti tudo está perdido”.³¹ 

O indivíduo no desespero carece de fé,³² e essa realidade é o retrato estampado da sociedade atual. Existe uma miopia espiritual que faz com que o indivíduo moderno não veja nada além das exigências da vida comum e rotineira, tais como: trabalhar, ter dinheiro, casar, ter filhos, ter um bom carro e uma boa casa, e, para ele, não existe nada mais significativo além disso. Este segue liturgicamente o que outros fizeram antes dele e, posteriormente, outros também reproduzirão tal padrão em uma busca pelo reconhecimento por via de números; nesse cenário, a última coisa digna de atenção é o próprio eu, seu caráter, seu valor. Optam por uma vida que parece aceitável a todos os outros, ao que a sociedade impõe como o que seria vencer na vida e ao que a mídia lhe oferece pelos inúmeros influencers

O mal que acomete a contemporaneidade, segundo os conceitos do autor Byung-Chul Han, é o cansaço; e esse mal é uma resposta do organismo ao excesso de positividade e cobrança que a sociedade impõe.³³ Han expressa que a positividade é mais uma das conveniências articulosas do capitalismo para produzir pessoas mecanizadas e centradas no que é essencial para o avanço do lucro.³⁴ O sucesso na carreira profissional se tornou o propósito de vida para o indivíduo deste tempo, e a cobrança pelo desempenho atinge profundamente suas inseguranças,  levando-o ao desgaste de si.  

As pessoas procuram um sentido maior, procuram por fé, procuram uma síntese, porém, o desespero da finitude as impede de depositar sua carência da eternidade no lugar certo, a saber, em Deus. Ainda que se tornem conscientes de seu desespero, sua inclinação está distante do espírito e, por isso, até acreditam estar livres para tomar suas próprias decisões de vida; entretanto, não se trata verdadeiramente de liberdade, não são inteiramente conscientes e aceitam tomar as decisões mais importantes de sua vida baseando-se naquilo que lhes é imposto como a verdade fundamental. Esse indivíduo da finitude é aclamado por seguir os padrões estabelecidos mesmo quando tais padrões ferem sua liberdade e humanidade.³⁵ Todavia, há esperança, pois, no mais profundo de si, há sussurros, não há completa paz no seu interior, e em algum lugar ele é constantemente convidado a sua verdadeira liberdade.

O mal que acomete a contemporaneidade, segundo os conceitos do autor Byung-Chul Han, é o cansaço; e esse mal é uma resposta do organismo ao excesso de positividade e cobrança que a sociedade impõe.

O ponto principal da discussão de Han é precisamente a ideia de falsa liberdade e como ela compõe o processo destrutivo na sociedade contemporânea. O autor faz uso do pensamento de Nietzsche e critica o excedente uso da positividade da nossa época, trazendo luz ao mostrar que a condição atual da sociedade é nada mais do que o desdobramento da modernidade ocidental decadente. Em 1878, Nietzsche já afirmava que, por falta de repouso, “nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto […]”.³⁶ Byung-Chul Han define a hiperatividade deste tempo e toda sua positividade como uma espécie de esgotamento espiritual dos nossos dias.

O tédio institui o auge do descanso espiritual,³⁷ e é justamente contra isso que se levanta nos dias atuais, reforçando um indivíduo que submerge, inquieto, na atividade constante. É interessante destacar que justamente a transcendência de Deus em Gênesis 2.2 está na liberdade do tédio e do descanso que não lhe eram necessários justamente por ser Deus, mas foram apresentados ao homem como parte da sua espiritualidade.³⁸ Estamos perdendo a liberdade do tédio e da contemplação, sempre preenchendo nosso tempo com entretenimentos, de modo que até a qualidade de sono e o repouso do indivíduo tem sido comprometida. No livro 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono,³⁹ pode-se notar o sentido da experiência social criticado por Han.

Nesse livro, Jonathan Crary evidencia de que maneira os estímulos constantes não facilitam o desligamento do indivíduo que dorme hoje em sleep mode. Isso significa que ele está em modo de consumo reduzido, sempre em alerta e nunca totalmente no “ligado/desligado”; tal expressão é inspirada nas máquinas, “de maneira que nada está de fato ‘desligado’ e nunca há um estado real de repouso”.⁴⁰

A vita contemplativa, para Byung-Chul Han, é uma pedagogia do ver: “habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar aproximar-se de si.⁴¹ Muitas pessoas fogem do tédio, pois esse é um lugar de encontrar-se consigo mesmo; sendo assim, se a pessoa não tem uma boa afinidade com a existência e está com a síntese mal estabelecida, o tédio é o lugar da crise existencial. Para Han, o que vai distinguir o avanço tecnológico da inteligência humana é justamente a liberdade de “parar” e contemplar. Vejamos o que Han afirma:

A sociedade do desempenho e a sociedade ativa geram um cansaço e esgotamento excessivos. Esses estados psíquicos são característicos de um mundo que se tornou pobre em negatividade e que é dominado por excesso de positividade. Não são reações imunológicas que pressuporiam uma negatividade do outro imunológico. Ao contrário, são causadas por um excesso de positividade. O excesso da elevação do desempenho leva a um infarto da alma.⁴²

Um infarto da alma é nada mais do que um indivíduo vivenciando o morrer, em desespero da finitude, com sua síntese mal estabelecida e distante da fonte que o estabeleceu. O que de mais precioso e interior está em jogo na sociedade do cansaço é que, não conhecendo o valor próprio, o indivíduo jamais atribui valor ao outro também; desse modo, as relações e os vínculos de comunidade não são baseados no amor, e sim no egoísmo. Nesse sentido, somos cegados pelo desempenho, de modo que o próximo se torna apenas uma ferramenta vazia e sem vida que se usa abusivamente para conquistar algo.  

Doenças psicossomáticas, como depressão e burnout, são a representação do resultado dessa falsa liberdade e da profunda perda do si-mesmo.⁴³ Nesse sentido, o indivíduo liquida a própria vida e a de terceiros, extermina o belo da existência para sobreviver a um consumismo que o transforma, como afirma Han, “num morto-vivo. Nós nos transformamos em zumbis saudáveis e fitness, zumbis do desempenho e do botox. Assim, hoje, estamos por demais mortos para viver, e por demais vivos para morrer”.⁴⁴

Conclusão

Se nos encontramos “por demais mortos para viver”, no conceito de imediatidade mediada de Kierkegaard é necessário um salto para uma nova realidade na qual a síntese se estabelece, mas jamais poderíamos alcançar a infinitude por meio da finitude; antes, a infinitude precisa vir até nós, como afirma o próprio autor, e isso só se dá por meio da fé. Não apenas fé na vida, mas fé no amor que encarnou, no paradoxo do Deus-Homem que trouxe a infinitude novamente aos homens. Kierkegaard endossa:

Por amor Deus se torna humano, ele diz: vê, aqui está o que é ser um ser humano, mas ele acrescenta, presta atenção, pois eu sou também Deus ㅡ e bem-aventurado aquele que não se escandaliza de mim. Como ser humano, ele assume a forma de um servo humilde, ele mostra o que é ser uma pessoa humilde, para que nenhuma pessoa se sinta excluída, ou acredite que é a reputação humana, ou a reputação entre as pessoas, o que aproxima alguém de Deus.⁴⁵

Com base nos autores, a resposta para uma sociedade cansada é espiritualidade, e espiritualidade é relacionar o infinito com o finito por meio da fé e, assim, também relacionar a necessidade e a possibilidade de encontrar liberdade. É anímico e corpóreo, é chronos e kairós, é o homem que encontrou o si-mesmo e é espiritual, e, portanto, está automaticamente  inclinado à alteridade e até mesmo à boa relação com a natureza, pois isso faz parte da essência.

O indivíduo do nosso tempo está adoecido e necessita crer⁴⁶ que existe um salto para uma nova realidade de vida para viver o mundo de possibilidades dessa nova vida. Então, que cada um examine-se a si mesmo⁴⁷ para tomar consciência de seu estado e encarar as possibilidades, pois a espiritualidade em si não está sendo apresentada como a cura de doenças psicossomáticas, mas sim como cura para o cansaço da alma, para perder o si-mesmo, para a falta de amor consigo, com o outro e com a natureza.

As enfermidades causadas por esse tempo só serão  vistas como necessárias de se submeter a um tratamento profissional por um indivíduo que vê valor na vida, que tem motivos para viver e ancorou sua fé nisso ao ponto de aprender a amar a própria existência para além dos elementos temporais, e também que entende que seu valor está muito acima de simplesmente produzir ou conquistar. Sendo assim, o indivíduo não objetificado e que entendeu o lugar da subjetividade tenderá ao crescimento, tendo como resultado pessoas comprometidas em cuidar de si em todos os níveis. Um ser humano que estabeleceu sua síntese e encontrou sentido na sua existência está em paz e, ainda que os elementos da vida finita o aflijam em algum nível, estará ancorado na infinitude, podendo se angustiar, mas sem se desesperar. Nesse sentido, espiritualidade aqui é a capacidade de relacionar as coisas imanentes com as transcendentes.

Como aponta Kierkegaard: “Por amor Deus se torna humano, ele diz: vê, aqui está o que é ser um ser humano”.⁴⁸ Partindo desse lugar, o paradoxo Deus-homem é o modelo de resgate da relação com o divino, com o infinito, o supremo e, ao mesmo tempo, é admiração e valor atribuídos ao olhar sobre a vida. Assim, a fé no amor encarnado dá uma nova perspectiva de vida em que existe liberdade por meio de uma conversão, segundo o próprio Kierkegaard, ‘através de um nascer de novo’. É como aquela criança que foi conduzida pelos pais a tomar a decisão de seguir seu conselho e seu exemplo, e ser verdadeira dia após dia.

Por fim, a fé é o abandono paradoxal de si mesmo na condição de desespero em direção a Deus, sabendo que, indo nessa direção, será conduzido a encontrar-se plenamente, assim como, na narrativa bíblica Abraão sobe a montanha com Isaque com a consciência de que o entregaria em sacrifício, mas com sua fé ancorada na possibilidade de descer a montanha com seu filho ainda em vida.⁴⁹ Em resumo, tornar-se cristão é sacrificar-se, abandonar-se, na realidade de desespero em direção ao amor de Deus, mas com a fé ancorada na possibilidade de que, por meio disso, encontrará vida. O evangelho de Mateus 11.28,29 apresenta:

Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas

Essa é a resposta do puro cristianismo apresentado na visão filosófico-teológica de Kierkegaard e no resultado das reflexões de Byung Chul Han⁵⁰ a cada indivíduo no desespero da finitude e, por isso, cansado: fundamentar sua existência por meio da fé na relação com o divino de tal forma que configure genuinamente sua concepção, sua visão e seu sentido diante do valor da vida, encontrando, assim, descanso para a alma.

 

 

 

 

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Referências

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Tolstoi, Liev. A Morte de Ivan Illich. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34, 2009.

 

* Ensaio classificado em 5º lugar na 2ª Chamada do Radar ABC². 

1. Sujeito objetificado é aquele que na visão capitalista é reduzido ao que possui e consome e não é reconhecido por quem de fato é em sua essência. Zygmunt Bauman trata profundamente a respeito desse assunto em Modernidade Líquida. 

2. A Revolução Industrial foi o período de grande desenvolvimento tecnológico que teve início na Inglaterra a partir da segunda metade do século 18  e que se espalhou pelo mundo, causando grandes transformações. Ela garantiu o surgimento da indústria e consolidou o processo de formação do capitalismo. Oliveira, 2004, p. 84-85.

3. Han, 2017, p. 20-21.

4. “Chronos significa o tempo físico e cronológico, compreendido como anos, meses, dias, horas, minutos e segundos”. Arantes, 2015, p. 4.

5. Kierkegaard, 2022, p. 62.

6. “Kairós significa momento oportuno, ocasião certa, oportunidade”. Arantes, 2015, p. 4.

7. Para Kierkegaard: “O ser humano é espírito (em potência). Espírito (em ato) é o si-mesmo. O si-mesmo é uma relação que se relaciona a si mesma” Ver: Kierkegaard, 2022, p. 23. No tópico seguinte do texto trataremos de maneira mais abrangente o significado de espírito para Kierkegaard. 

8. Eu ou si-mesmo é apresentado por Kierkegaard como o espírito concretizado, a relação de finitude e infinitude estabelecida e sintetizada. Kierkegaard, 2022, p. 61.

9. Han, 2017, p. 19-20.

10. Kierkegaard, 2022, p. 81.

11. Ibidem, p. 61.

12. Ibidem, p. 43.

13. Ibidem, p. 63.

14. Lenz,1972, p. 232.

15. Kierkegaard, 2022, p. 81.

16. Ibidem, p. 81.

17. Feijoo; Protasio, 2011, p. 11-22.

18. Ibidem, p. 43.

19. Kierkegaard, 2022, p. 43-44.

20. Bíblia King James 1611, 2015.

21. A raiz da palavra adam possui significados distintos: Homem, ser humano, indivíduo ou alguém, humanidade, o nome próprio Adão, quem, aquele que é gente. Hubner, 2016. 

22. Kierkegaard, 2022, p. 90-91

23. Gn. 11.4 [KJ].

24. Roos, 2019, p. 23.

25. Tillich, 1974, p. 12.

26. Tolstoi, 2009.

27. Kierkegaard, 2022, p. 49.

28. Ibidem.

29. Tolstoi, 2009, p. 50.

30. Han, 2017, p. 128.

31. Kierkegaard, 2022, p. 60.

32. Ibidem, p. 44. Ver também: Kierkegaard, 2022, p. 74.

33. Han, 2017, p. 20.

34. Ibidem, p. 107.

35. Ibidem, p. 127.

36. Nietzsche apud Han, 2017, p. 37.

37. Han, 2017, p. 33-34.

38. Ibidem, p. 76.

39. Crary, 2016. 

40. Ibidem, p. 22-23.

41. Nietzsche apud Han, 2017, p. 51.

42. Han, 2017, p. 70-71.

43. Ibidem, p. 96-97.

44. Ibidem, p. 119.

45. Kierkegaard, 2022, p. 195.

46. Han, 2017, p. 127.

47. Gl. 6.4 [KJ].

48. Kierkegaard, 2022, p. 195.

49. Kierkegaard, 1979b, p. 145.

50. Han, 2017, p. 128.

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