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ENSAIO

Fake News como Apocalipse*

Epistemologia e Teologia Política

Henrique Souza Santos|

01/07/2023

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Henrique Souza Santos

Evangélico. Bacharel em teologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Mestrando em teologia na Escola Superior de Teologia (EST). Com um interesse especial na intersecção entre teologia e teoria política.

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Como citar

SANTOS, Henrique Souza. Fake News como Apocalipse: Epistemologia e Teologia Política. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

De que serve a sutil especulação sobre questões misteriosas e obscuras, de cuja ignorância não seremos julgados?
Tomás de Kempis

Não é novidade que o fenômeno das fake news atravessou os últimos pleitos eleitorais no Brasil de forma generalizada, abrangendo todos os espectros políticos. De qualquer maneira, o fenômeno foi muito mais notável (ou explícito) entre os eleitores do candidato de direita, o então presidente vigente e o preferido do público cristão. É absolutamente provocador o fato de que uma campanha que foi feita sob a invocação das palavras de Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, também tenha se baseado na produção em massa de mentiras, o que levanta um problema: por que o público cristão tem inclinação a aceitar e disseminar informações falsas? Meu propósito aqui neste ensaio não é fazer uma abordagem sociológica, com um amplo levantamento de dados sobre a forma como essa grande rede de falsas informações se manifestou, mas analisar esse fenômeno sob as lentes da teologia política e da epistemologia política.

Fake News

Antes, permita-me falar um pouco sobre fake news em si.  Traduzido para o português, “notícias falsas”, que existem desde que o mundo existe, porque mentira, o “falso testemunho”, existe desde que o mundo existe. Contudo, esse termo se popularizou de alguns anos para cá, especialmente nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, em 2016.¹ Esse novo contorno semântico diz respeito a um fenômeno, que, mesmo que não seja inédito, intensificou-se com o aumento exponencial do engajamento e troca de informações nas redes sociais, especialmente dentro do debate e campanha política. Claro que, num sentido mínimo, notícias falsas, como já foi mencionado, são próprias da nossa condição humana e social, e na história do jornalismo também se verifica, de forma ampla, uma série de notícias falsas.² Mas o uso contemporâneo do termo mostra como as configurações modernas dão um tom especial no processo de criação e divulgação das chamadas fake news: 

No século 21, fake news podem ser descritas da seguinte maneira: conteúdo enganoso que circula principalmente por meio de redes sociais, criadas deliberadamente para moldar determinado ponto de vista público ou percepção de algum tópico. É amplamente entendido como um texto (incluindo texto ou vídeo) que propõe ser uma notícia, mas que é intencionalmente falso, e verificável que assim o é, que pretende enganar os leitores e viewers.³

Os avanços tecnológicos facilitam ainda mais a criação de notícias, que põem o sujeito numa situação de desvantagem com relação à informação para julgar sua veracidade, pois não somente informações falsas são divulgadas, mas embasadas em fontes igualmente falsas. Por isso, quando se fala de fake news no mundo atual, normalmente está se referindo à criação proposital de notícias mentirosas, de forma meticulosa, para fins políticos, ideológicos e quaisquer outros — muito embora os dois primeiros sejam os motivos mais frequentes e notáveis.

Acontece que outro termo entra em discussão neste tópico, que é a tal de “pós-verdade”. Se “fake news” foi eleita a palavra do ano pelo Collins English Dictionary em 2017, “post-truth” foi eleita palavra do ano pelo Oxford Dictionary em 2016. E foi definida pelo dicionário nos seguintes termos: “relating to circumstances in which people respond more to feelings and beliefs than to facts” [relativo a circunstâncias nas quais as pessoas reagem mais a sentimentos e crenças do que a fatos].⁴ Pode-se perceber que fake-news e pós-verdade são palavras que estão lidando com o conceito de verdade, a primeira como antagônica e a última como superação ou abandono desta. Só que o conceito de verdade é bastante amplo e disputado, e, por uma questão de espaço, impossível de ser contemplado de forma “digna” aqui. A verdade é um tema difícil, e a objetividade e neutralidade de uma informação dita verdadeira também podem ser discutidas. O que pretendo investigar, no entanto, não é (pelo menos não de forma detalhada) em que medida são possíveis as conclusões contundentes a respeito do que é verdade e do que não é, do relato do fato até sua interpretação, mas o que leva as pessoas, nesse caso cristãos, a nem sequer se preocuparem em avaliar a veracidade de uma informação, e se isso for impossível de forma exaustiva, pelo menos manterem uma postura cética, que evita tomar decisões precipitadas. 

De qualquer maneira, a primeira coisa que pode ser posta como paradigma é que informação e verdade não são a mesma coisa, do factual ao princípio moral. É por isso que, talvez, a melhor pista para entendermos a “era das fake news e da pós-verdade” seja o fato de que ela é também a “era da informação”. Nas palavras de Byung-Chul Han, que trabalha a partir dessa perspectiva para avaliar a sociedade contemporânea: “A informação é cumulativa e aditiva, enquanto a verdade é exclusiva e seletiva […] Não há massa de verdades, [mas] há, em contrapartida, massa de informações”.⁵ Essa exclusividade privilegia a verdade como algo valioso, difícil de definir, e é isso que faz que tenhamos o nosso primeiro motivo de ceticismo em relação às informações. Além de critérios, precisamos de uma consciência dos limites da nossa capacidade de saber, especialmente da nossa capacidade de saber no meio político.

a primeira coisa que pode ser posta como paradigma é que informação e verdade não são a mesma coisa, do factual ao princípio moral. É por isso que, talvez, a melhor pista para entendermos a “era das fake news e da pós-verdade” seja o fato de que ela é também a “era da informação”.

Epistemologia política

Um campo importante para continuar esta reflexão pode ser o da “epistemologia política”, que busca estudar as confluências entre a epistemologia e a filosofia política. Quando se faz uso do conceito, normalmente se está referindo a como se dá o conhecimento no meio e na ação política, e isso envolve, então, a reflexão de como as capacidades e os meios de conhecer atravessam a vida política do sujeito. Sendo assim, os debates giram em torno de entender os limites da consciência do cidadão na hora de votar; de como as ideologias políticas influenciam o imaginário social e conduzem a forma de enxergar a realidade; se um chefe de estado tem capacidade cognitiva de liderar e tomar decisões certeiras; quais são as possibilidades de acessar, conceber e articular a verdade no meio político; como uma crença se justifica epistemicamente na esfera pública e assim por diante. Muito pode ser dito sobre epistemologia política e os tópicos que o acompanham — o compendio The Routledge Handbook of Political Epistemology⁶ faz um excelente trabalho de exploração nesse campo, cuja leitura me fez despertar para o tema, em especial o capítulo 14, “The point of political belief”. Para resumir, quero chamar a atenção para o fato de que entender algumas facetas da epistemologia cristã — sob o risco de ser vago e generalista demais, quero me referir a uma forma de conhecer a partir da influência da fé cristã — aplicadas à política é um empreendimento importante e necessário para avaliar a forma como os cristãos têm se engajado nas fakes news e a razão de fazerem isso.

O porquê de as pessoas acreditarem em notícias falsas tem recebido uma série de respostas, entre elas: (i) a fé e as convicções pessoais; (ii) a falta de preparo cognitivo dos sujeitos falta de inteligência mesmo ; (iii) a ignorância diante de um mar de informações; (iv) o engajamento político e ideológico. Poderíamos mencionar algumas outras, pois é um campo aberto, mas essas respostas serão as mais importantes para este ensaio.⁷ Das possíveis respostas citadas anteriormente, a primeira e última lidam com o fato de que o conhecimento é influenciado por visões de mundo e por fé: aderimos com mais facilidade àquilo que encontra harmonia com os pressupostos que compõem a lente pela qual enxergamos (e imaginamos) e lidamos com a realidade, assim como com os compromissos do nosso coração em nível individual e coletivo. É sobre essas duas possibilidades de resposta que irei refletir de forma mais focada, sem descartar as duas do meio, que irei articular, mesmo que perifericamente, por meio do desenvolvimento das reflexões.

Diante de tudo isso, proporei um motivo em particular — tenho convicção de não ser o único que pensa assim — de por que os cristãos têm acreditado em fake news. A problemática pode ser colocada nos seguintes termos: quais aspectos de seu imaginário tem influenciado os cristãos, epistemologicamente inclusive, a aceitar e propagar de forma tão efusiva fake news, particularmente no que se refere ao engajamento político? A partir daí, tentarei entender que facetas do imaginário cristão podem ser mais bem trabalhadas para combater esse fenômeno.

Esperança e resistência 

O aspecto apocalíptico da fé cristã, do Novo Testamento, e em especial do apocalipse de João, não foi deixado de lado na formação da imaginação cristã e da forma como os cristãos encaram o mundo político. Pelo contrário, desde sempre foi utilizado, mas nem sempre da melhor maneira, seja por má fé, ou má teologia, ou má exegese, ou por todos os motivos juntos. O livro do apocalipse foi muitas vezes instrumentalizado como arma política, como capital simbólico para discursos ideológicos diversos,⁸ e isso desde as formas variadas (mais ou menos triunfalista) de milenarismos que foram articuladas política e ideologicamente durante a história, até um dispensacionalismo radical, pretensamente apolítico, mas que de apolítico não tem nada.⁹ Chama-me a atenção o fato de que, na maioria dos casos, o aspecto retirado do Apocalipse para uso político, e que é posto sob análise de forma mais enfática, é o escatológico, catalítico; mas o que quero ressaltar, no entanto, é o aspecto revelatório (não que esses dois aspectos devam ser desvinculados) — aliás, apocalipse (do grego apokalypsis) quer dizer exatamente “revelação”. A “imaginação apocalíptica”¹⁰ perpassa o Novo Testamento, mas especialmente, como gênero literário, o livro do Apocalipse de João.¹¹ Vou retornar a essas questões adiante em uma abordagem mais atenta, mas cabe dizer que uma das coisas que o livro faz é desnudar a corrupção e a imoralidade do império e mostrar todo juízo de Deus sobre ele. Isso constitui um ponto importante para fazer da experiência cristã uma experiência da suspeita, da desconfiança com relação aos arranjos do mundo presente. O próprio evangelho é uma mensagem a respeito de um mistério que estava oculto (Cl 1.26), o que faz da comunidade do Messias portadora de uma verdade “alternativa” sobre a salvação e o futuro do mundo, que não foi dado aos intérpretes da lei, mas para os pequeninos (Lc 10.21).¹² 

Os apocalipses, e isso inclui o Apocalipse de João, nascem em um contexto de resistência política ou, pelo menos, com potencial de provocá-la.¹³ Discursos de desvelamento são importantes para promover esperança, pois o desnudamento do mal é o primeiro passo para vencê-lo. Dar um rosto ao seu inimigo é a melhor maneira de torná-lo um alvo, mas, sobretudo, oferecem subsídios para resistência e desalienação por proporcionarem uma sensação de superioridade epistêmica.

Mas o que isso tem a ver com as fake news? Ora, existem fake news de vários assuntos, mas no campo político as mais propagadas são as de caráter conspiratório, claro, porque normalmente servem para reforçar e/ou enfraquecer a imagem de um candidato/partido, por isso elas se apresentam como uma realidade dos fatos, com a impressão de que quem estaria supostamente sendo prejudicado com esses “fatos” fez de tudo para que eles não fossem conhecidos. Esse tipo de informação caminha lado a lado com “teoria da conspiração”, e isso traz uma sensação de iluminação, por isso é uma sensação de liberdade. Talvez seja por esse motivo que João 8.32 seja tão usado, pois as pessoas, diante de um mundo mal, querem sentir que não estão amarradas com as teias da manipulação. Todavia, uma das maneiras mais poderosas de alienar é fazer as pessoas pensarem que não são alienadas. Dito isso, as falsas notícias, assim como as teorias da conspiração, oferecem um apocalipse paralelo, um discurso de fé, que exige fé para alimentar o senso de resistência aos poderes vigentes bem como a sensação de vantagem epistêmica diante de um mundo não confiável , que é presente na formação imagética dos cristãos, como demonstrada anteriormente. Esse tipo de fé causa uma série de dificuldades, pois, além de acreditar em remédios falsos para problemas existentes, mas mal formulados, é incapaz de reconhecer que a verdade não tem dono (entre nós seres humanos, digamos assim). Diante disso, a informação só é aceita na medida que atende às narrativas que se apresentam como escape em um mundo cruel e que se alimentam da ingenuidade e do medo. A verdade não é mais um critério, ou, pior, a verdade é tudo que a minha ideologia, meu partido ou meu líder político disser ou propagar daí a idolatria. As fake news se viabilizam de forma tão intensa e eficaz quando o critério de verdade não é mais o Messias, e sim o(s) messias.

Todavia, uma das maneiras mais poderosas de alienar é fazer as pessoas pensarem que não são alienadas.

Esse é o motivo pelo qual, a partir de uma análise teológica-política, encontro a adesão massiva de muitos cristãos às fake news e aos discursos conspiratórios. Poderia chamar isso de uma maneira gnóstica de se posicionar perante as estruturas do mundo, o que não seria um erro, pois há uma lógica gnóstica envolvida nessa adesão. Contudo, prefiro chamá-la de uma disposição apocalíptica que está plantada na forma cristã de ver o mundo desde de sua gênese pois me parece que a metanarrativa que envolve o imaginário cristão dos militantes mais engajados concebe uma escatologia bem definida, com as imagens de cristo e anticristo se estabelecendo como uma binaridade paradigmática para interpretar o mundo político. Uma mera disposição gnóstica no máximo gera paranoicos desinteressados dos assuntos do “mundo”, mas uma perspectiva apocalíptica distorcida gera paranoicos ativistas e muito interessados politicamente. 

Entre os cristãos, a linguagem bíblica foi e continua sendo muito explorada nos discursos da direita bolsonarista no Brasil. Enquanto escrevo este ensaio, estou diante das notícias da invasão no congresso, STF e o Palácio do Planalto (8/01/2023) por muitas pessoas que pertencem a esse movimento político e, para não ser injusto, sei que tem uma parte desse movimento que não concorda com esse tipo de manifestação, e em todo tempo fizeram protestos pacíficos. No entanto, acabei de entrar num grupo aberto do Telegram, um dos quais foi usado para articular essa invasão, e descobri que o nome do grupo é “A queda de Babilônia”, uma alusão clara ao livro do Apocalipse (Ap. 18). Bourdieu não é o meu sociólogo favorito, mas concordo com ele que, pelo menos em muitos casos, revoluções políticas não acontecem sem que haja uma revolução simbólica promovida pela figura profética: 

Tal aptidão constitui o capital inicial que permite ao profeta exercer uma ação de mobilização sobre uma fração suficientemente poderosa dos leigos, simbolizando por seu discurso e por sua conduta extraordinários o que os sistemas simbólicos ordinários são estruturalmente incapazes de exprimir, em especial no caso das situações extraordinária.¹⁴

Isto tudo mostra como o texto bíblico, o Apocalipse de João em especial, oferece uma rede de símbolos que estão penetrados na construção ideológica desse grupo, chamando a nossa atenção para o fato de que não apenas as fake news se oferecem como um apocalipse, mas que o apocalipse bíblico é rearranjado, de forma explícita inclusive, não só como uma narrativa plantada no profundo do imaginário social, mas com o uso direto do texto bíblico, para sustentação do discurso ideológico. 

Contudo, uma boa abordagem no texto de Apocalipse pode ser um caminho de elucidação em toda esta “bagunça”, porque ainda acredito numa disposição apocalíptica como sendo positiva para experiência epistêmica em contexto político, no entanto, uma disposição apocalíptica mais bem qualificada. 

Não quero dizer que só uma abordagem exegética do livro do Apocalipse, que é disputadíssimo nesses termos, reivindica o jeito certo de manejá-lo para ser um recurso importante e positivo para a epistemologia política cristã. Tirando as formas triunfalistas extremadas de um pós-milenismo radical, ou uma abordagem conspiratória que enxerga a visão de João como uma série de códigos a serem desvendados e que correspondem exatamente a eventos e pessoas do tempo presente isso sempre dá errado , que é muito próprio de um dispensacionalismo mais popular à la Left Behind, acredito que qualquer teólogo sério, das diversas matizes, há de concordar comigo no que se refere à abordagem (incipiente) sócio-literária do livro, algo de que terei de lançar mão justamente para mostrar o que o apocalipse bíblico tem de radicalmente diferente dos apocalipses falsos, como ele se mostra suficiente para nós (cristãos) e como ele têm potencial para provocar uma postura política cheia de virtude. Obviamente não farei aqui algo nem próximo de uma abordagem extensiva, e também não farei (infelizmente) uma revisão bibliográfica abrangente, mas trarei alguns pontos importantes:

  1. O Apocalipse de João não tem o propósito de ser uma descrição historiográfica (em termos modernos) dos fatos, e ele os interpreta por meio de uma visão espiritual sobre o passado, presente e futuro, e literariamente, por isso dispõe de uma linguagem altamente simbólica. Não é um retrato impressionista da realidade, mas um retrato místico, poético, e, por isso, profundo. A respeito da potência da linguagem do Apocalipse, a brilhante Adela Yarbro Collins diz o seguinte:

O apocalipse lida habilidosamente com os pensamentos, atitudes e sentimentos dos seus leitores, usando símbolos eficazes e um enredo narrativo que convida à participação imaginativa. Essa combinação do uso de símbolos poderosos e um enredo sofisticado e engenhoso é a chave do poder retórico apocalíptico.¹⁵

  1. Não quer dizer que não faça referência a fatos históricos, especialmente para mim, que acredito que o Apocalipse de João não dispõe de um pseudônimo. Então, além de João ser alguém que realmente existiu, ele menciona Jesus, sua exaltação no céu, seu retorno, menciona as sete igrejas, faz claras referências a Nero e ao Império Romano¹⁶ quando faz retratos da besta. Por isso, não se trata de um empreendimento parabólico, mas, por meio de uma linguagem peculiar a sua tradição literária, faz denúncias às estruturas políticas e sociais reais.
  2. Assim, as cartas de Cristo às igrejas condenam certos comportamentos acomodativos. Os selos, as trombetas e as taças mostram o quanto Deus reprova e não deixará impune as estruturas de poder corruptas e corruptoras, denunciando a injustiça, a exploração econômica e o culto imperial.¹⁷
  3. João usa a Babilônia para fazer referência ao que praticava o Império Romano no presente, e esse jogo de referências, somado à potência da linguagem apocalíptica, serve não apenas para denunciar um período histórico específico, no passado ou no presente, mas para expor uma série de comportamentos e tendências espirituais presentes naquela configuração política, mas não somente nela, que estão potencialmente contidas em todos reinos humanos. 
 

A besta é mais que uma personagem histórica no passado ou no futuro: é uma personagem arquetípica, um tipo de gente e autoridade civil. Se haverá uma pessoa no futuro que vai se estabelecer como a forma plena e final desse arquetípico (teologicamente, eu acredito que sim), não vem ao caso; o que quero dizer é que qualquer estrutura humana de autoridade pode, em alguma escala, se “bestializar” até que venha o rei perfeito, Jesus. É isso que quer nos revelar o Apocalipse de João: as estruturas profundas por trás dos reinos deste mundo, que nenhuma informação jornalística daria conta de dar. 

Além de serem mentirosas, as fake news são danosas, pois fazem um jornalismo apocalíptico (especialmente no mundo político), e nenhum jornalismo deveria se apresentar como um discurso apocalíptico, pois, se assim o faz, retira do interlocutor a chance da dúvida, já não se trata mais de meras notícias, e sim de uma revelação definitiva, exigindo do fiel uma aceitação acrítica: a força de aceitação das fake news reside nisto: que elas se tornaram apocalipse, mais do que jornalismo. O Apocalipse de João não trabalha com essas categorias, de modo que, mesmo quem não acredita, não pode dizer que é fake news. Veja bem, em nenhum momento João divulgou fatos específicos escondidos nos bastidores da política imperial, pois não se trata de uma revelação dos bastidores da política não é jornalismo , mas dos bastidores do coração humano é uma visão divina. Não se trata de uma rede de informações alternativas para promover uma realidade alternativa. O Apocalipse de João não foge da realidade; em vez disso, por meio de uma visão mística, a realça. 

O Apocalipse de João não foge da realidade; em vez disso, por meio de uma visão mística, a realça.

Ceticismo da fé

Então, que impacto positivo pode causar uma apropriação, nesse caso mais bem qualificada, do Apocalipse de João para a epistemologia política? Como confiar nele e não nos apocalipses falsos, nas fake news, pode ajudar o cristão a melhor situar-se politicamente, sob o ponto de vista epistêmico sobretudo? Michael Oakeshott escreveu um livro chamado The Politics of Faith and the Politics of Skepticism [A política da fé e a política do ceticismo], no qual põe em contradição esses dois “tipos” de política, sendo a segunda a mais positiva para ele ainda que ele entenda a importância de certa tensão , um conservador, evidentemente. Mas o que quero fazer não é introduzir o livro e suas teses até porque Oakeshott não estabelece uma relação direta com questões epistêmicas, uma vez que sua análise está primeiramente relacionada com estilos de fazer e conceber política , apenas brincar com o título e com essa certa convenção de que uma pessoa cética é uma pessoa sem fé. Quando lia artigos de múltiplas disciplinas para estudar o porquê de as pessoas acreditarem em fake news, a fé e os afetos eram sempre tidos como vilões. Eu tendo a concordar em partes [levando em conta tudo aquilo que já tenho dito], pois aquilo em que a pessoa deposita a fé e para quem ela orienta os afetos realmente pode fazê-la acreditar em qualquer coisa: qualquer informação mentirosa. Contudo, não tem como vivermos sem fé e sem afeto que bom! e, sinceramente, não é preciso esforços desmedidos para comprovar que não existe “razão neutra” muito embora isso não queira dizer que a razão deva ser demonizada, como o fazem alguns pós-modernos —; trata-se de um “mito” que caiu há muito tempo. Não tem como pensar, saber e compreender sem pressupostos de fé, sem afetos e sem imaginação, e, diferentemente de um tratado político cheio de proposições abstratas, o Apocalipse tem muito mais chance de impactar essas três coisas, que, como disse, estão ligadas à nossa capacidade de saber. 

Minha intenção é mostrar que a fé na revelação de Jesus dada por João sobre os rumos da história, o Apocalipse, reproduz uma episteme política bem cética, que, assim como Oakeshott, considero ser uma virtude política. Portanto, não se trata de um ceticismo sem fé (como se fosse possível), mas um ceticismo que vem de uma fé muito convicta. Mas convicta de quê? Convicta de que nenhuma autoridade política deve ser adorada, que estruturas humanas são maculadas, que o pecado faz que qualquer arranjo político possua em si mesmo potencial de se constituir como uma besta, que todos os reinos dos homens têm fim, que o reino dos homens não pode transformar o mundo miraculosamente etc. Diante de tudo isso, quaisquer ideologias, partidos, políticos e “profetas” merecem ao menos um espaço de desconfiança da nossa parte. E, em virtude de estarmos diante de um mundo caído, em que a verdade e os fatos são facilmente manipulados, especialmente numa era de produção massiva de informações, é necessário que entendamos os limites do nosso saber, especialmente no mundo político. Uma disposição epistêmica atravessada pela revelação de João, e por toda revelação bíblica no final das contas, é (ou deveria ser) não só cética, mas humilde. 

Meu esforço aqui não é convencer que o que está no Apocalipse vai acontecer, nem quero [diretamente] fazer essa crença passar por uma processo de justificação pública, mas mostrar que as pessoas que assim acreditam podem dispor de qualidades ou virtudes epistêmicas importantes para a formação de suas crenças políticas e, por consequência, do seu comportamento cívico. E, para mim, o fundamento disso que venho defendendo é que o apocalipse faz surgir em nós um ceticismo, mas um ceticismo especial.

Uma disposição epistêmica atravessada pela revelação de João, e por toda revelação bíblica no final das contas, é (ou deveria ser) não só cética, mas humilde.

O ceticismo pelo ceticismo pode, em último caso, tornar-se uma forma de paranoia e de negação de qualquer verdade ou do acesso a ela. Não é, no entanto, esse tipo de ceticismo que a fé no Apocalipse de João provoca, pois crer nele é crer no Cristo que nele se revela, e nesse Cristo se tem o critério de verdade: apesar de ser impossível ter acesso a todos os fatos ocorridos e à maneira como ocorreram, temos acesso a uma história universal misticamente dada que não só afirma essa impossibilidade, como também que a consumação da história terá um desfecho positivo, num mundo sem trevas, em que não só teremos acesso a toda verdade, como seremos possuídos por ela. O tipo de ceticismo [da fé] que defendo não é o que provoca inércia, mas é o que provoca a prudência, sem que se perca esperança a fé na revelação nos apresenta a esperança como uma virtude epistemológica, pois a esperança, posta no lugar certo, provoca um ceticismo não fatalista. E se provoca prudência, evita o fanatismo. 

Platão via dificuldades com a democracia sob o pretexto de que não é qualquer pessoa que tem a qualidade intelectual suficiente para eleger e ser eleita.¹⁸ Mas, em um mundo como retratado pelo Apocalipse, e em um mundo como o de hoje, mais do que nunca vemos que não há inteligência nenhuma imune às armadilhas dos discursos mal intencionados, das articulações maldosas, das histórias mal contadas, das fake news e das teorias da conspiração. Sendo assim, nesse cenário é mais vantajoso que sejamos pessoas humildes e prudentes do que necessariamente inteligentes (no sentido de especialistas). A democracia funciona, mas não funciona melhor com uma sociedade de filósofos, e sim com pessoas que têm facilidade de admitir o erro, e assim o fazem, pois sua esperança está em outro lugar. Democracia é o regime dos [epistemicamente] humildes. 

Por fim, uma das coisas fundamentais contra as quais nos alerta o Apocalipse é a idolatria política, pois ela é o que nos torna extremados e faz com que nos apeguemos a outros discursos de resistência e a outros quadros de esperança, os quais não podem ser quebrados, e é por isso que qualquer informação que os afirme é aceita e propagada, independentemente de ser verdade ou não. Uma confiança no Apocalipse faz que desenvolvamos uma forma de conhecer livre para poder duvidar de qualquer coisa. Não é o fim das opiniões e das convicções políticas, mas é o fim do apego irrestrito a cada uma delas; é o fim da violência e o início do diálogo, porque, se eu reservo um espaço de desconfiança e ceticismo para todas as minhas opiniões políticas, nenhuma delas valerá a pena ser mantida se, para isso, tiver que odiar e maltratar o meu próximo.

Não é o fim das opiniões e das convicções políticas, mas é o fim do apego irrestrito a cada uma delas; é o fim da violência e o início do diálogo, porque, se eu reservo um espaço de desconfiança e ceticismo para todas as minhas opiniões políticas, nenhuma delas valerá a pena ser mantida se, para isso, tiver que odiar e maltratar o meu próximo.

Um ceticismo da fé, como proponho aqui e como já disse, não nega a verdade; em vez disso, ele  afirma que ela não está restrita a ninguém: ela não precisa ser: ela é. Em outras palavras: se um dia me deparar com uma informação que confronte minhas opiniões políticas, não há nenhum problema caso ela seja verdadeira, pois minha esperança derradeira não depende disso. Se assim não for, se minha confiança se descola do apocalipse inspirado e se realoca nos apocalipses criados, passo a precisar que sejam verdadeiros, pois minha esperança depende deles. E, sim, verdade e informação não são a mesma coisa, como já vimos, mas não é por isso que ela, a verdade, nos será inacessível; mas ela exige de nós prudência. E se acreditamos na Verdade (Cristo), temos um espaço aberto para que nele sejamos livremente cautelosos e cultivemos os fatos com toda paz possível, evitando ao máximo as fake news. E se por acaso não tivermos sucesso, não tenhamos conclusões precipitadas,  pois não precisamos delas. O que nos resta é a humildade, a prudência e a esperança naquilo que verdadeiramente pode nos dar esperança. Não é necessário combater as trevas com as trevas, até porque nas trevas habitam as bestas, mas na luz habita o Cordeiro, e este está nos conduzindo para os portões da cidade de Deus.

 

 

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Referências

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POST-TRUTH in: Oxford Learners Dictionary, Oxford University Press. Clique aqui para acessar.

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* Ensaio com menção honrosa na 1ª Chamada do Radar ABC².

1. Hunt Allcott and Matthew Gentzkow escreveram um artigo seminal para abordar o fenômeno das Fake News, especialmente no contexto das eleições de 2016: ALLCOTT, Hunt; GENTZKOW, Matthew. Social media and fake news in the 2016 election. Journal of economic perspectives, v. 31, n. 2, p. 211-36, 2017.

2. Ver: WINSTON, Brian; WINSTON, Matthew. The roots of fake news: Objecting to objective journalism. Routledge, 2020.

3. COVER, Rob; HAW, Ashleigh; THOMPSON, Jay Daniel. Fake News in Digital Cultures: Technology, Populism and Digital Misinformation. Emerald Group Publishing, 2022, p. 2, tradução nossa.

4. POST-TRUTH in: Oxford Learners Dictionary, Oxford University Press. Clique aqui para acessar.

5. HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Editora Vozes Limitada, 2018, p. 74-75.

6. HANNON, Michael; DE RIDDER, Jeroen (Ed.). The Routledge handbook of political epistemology. Routledge, 2021.

7. Ver: LEVY, Neil; ROSS, Robert M. The cognitive science of fake news. In: The Routledge handbook of political epistemology. Routledge, 2021. p. 181-191; PENNYCOOK, Gordon; RAND, David G. The psychology of fake news. Trends in cognitive sciences, v. 25, n. 5, p. 388-402, 2021.

8. DE VILLIERS, Pieter GR. Reading the Book of Revelation politically. Stellenbosch Theological Journal, v. 3, n. 2, p. 339-360, 2017.

9. Uma pincelada sobre isso: CLOUSE. Robert G.. Fundamentalist Theology in: WALLS, Jerry (Ed.). The Oxford handbook of eschatology. OUP USA, 2010, p. 263-269.

10. Estou pegando como empréstimo o termo que ficou conhecido com John J. Collins: COLLINS, John J. The apocalyptic imagination: An introduction to Jewish apocalyptic literature. Wm. B. Eerdmans Publishing, 2016.

11. COLLINS, Adela Y. Apocalypticism and Christian Origins in: COLLINS, John Joseph (Ed.). The Oxford Handbook of Apocalyptic Literature. Oxford Handbooks, 2014, p. 327.338.

12. Claro que isso não é um distintivo original do cristianismo, até porque o apocalipsismo é um traço do judaísmo do segundo templo, que é o berço daquilo viria a ser esta religião fundamentada no fato de Jesus de Nazaré é ser Messias de Israel. Mas além disso, pode-se dizer que essa resistência perante ao mundo que se apresenta seja, em alguma medida, uma característica da experiência religiosa no geral, Peter Berger mostra que a religião não é só um instrumento de legitimação cósmica do poder político, e fator de alienação do sujeito perante às estruturas de autoridade civil, mas também é desalienante, pois pelo apelo às autoridades sobre humanas pode desmistificar estas mesmas estruturas e a elas resistir: BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. São Paulo: Paulus, 1985, p. 133-138.

13. PORTIER-YOUNG, Anathea. Apocalypse against Empire: Theologies of resistance in early Judaism. Wm. B. Eerdmans Publishing, 2011.

14. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 73.

15. COLLINS, Adela Yarbro. Crisis and Catharsis: The Power of the Apocalypse. Philadelphia: Westminster Press, 1984, p.145, tradução nossa.

16. BAUCKHAM, Richard. Climax of Prophecy. New York: T&C Clark, 1997, p. 384-452.

17. Um estudo seminal sobre isso: KRAYBILL, J. Nelson. Culto e comércio imperiais no Apocalipse de João. São Paulo: Paulinas, 2004.

18. Dentre algumas passagens da República, as sessões 488 e 489, livro IV, demonstram bem a crítica de Platão. 

Outros ENSAIOS [Nº 2]

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